Vidas

Acontece-me por vezes contemplar a minha vida como vidas. Períodos que, se alguém os historiografasse, podiam ser classificados da mesma forma que o Cretássico e o Jurássico. Não são milhões de anos, mas talvez o sejam na minha memória. Cada período com distintas caraterísticas na consciência do tempo, nas relações afetivas, nas expetativas pessoais, nas esperanças políticas, na perceção do mundo, nos milhões de bits de informação que fazem uma pessoa concreta.

Estava eu hoje a jantar sozinho, como é habitual. Tinha feito uma massa com camarões e o pitéu sabia-me bastante bem. Estava bem comigo e com o mundo, digamos assim.

No andar de cima da minha mansão, ouvia a Sagração da Primavera, de Stravinsky. Lembrei-me então de uma imagem de quando este bailado foi uma sensação em Lisboa, com coreografia de Maurice Béjart. Ia eu pela Rua da Escola Politécnica, junto à Faculdade de Ciências, que certamente ainda não tinha ardido. A minha mulher de então falava com entusiasmo da peça. Eu mandei uma piada idiota, homofóbica, que já não recordo. Ela, escandalizada, deu-me uma bofetada na cara. Eu dei-lhe outra. Nada de grave, amávamo-nos demasiado para nos agredirmos, e certamente fizemos ternas pazes a seguir.

(Foi há quase cinquenta anos. Não me lixem com as piadas homofóbicas. Aprendi alguma coisa nos anos que se passaram.)

No andar de cima, acabou o Stravinsky e começou uma valsa. Um trecho que eu conhecia, mas não me lembrava bem do autor. Não era uma valsa clássica, porque tinha um tom de ironia e dissonância mais próprio do século XX. Era talvez a recordação de um sonho, uma evocação sobre uma valsa, com uns laivos de pesadelo. Como eu a pensar numa valsa, não a presenciá-la. Como a Laurie Anderson a dizer: “This is the time, and this is the record of the time.” O tempo recordado é muito diferente do tempo vivido.

Depois descobri que era “La Valse” de Maurice Ravel.

Terminado o jantar, resolvi ficar sentado mais um pouco e beber mais um copo de vinho, a ouvir a valsa e a saborear a estranheza dos acordes dissonantes, entre o vivido e o recordado.

Provavelmente pensei nestes aspetos paleontológicos da minha biografia porque tive uma conversa por texto com uma querida amiga, muito mais nova que eu e que só me conheceu muito depois do asteróide ter exterminado os dinossauros. Estive a contar-lhe que havia eras passadas da minha vida que ela desconhecia de todo.

É próprio dos velhos gastarem tempo a recordar o passado, talvez por uma razão muito simples: porque o têm. Na vida de cada um há imensa informação que (por vezes — é bom que não seja sempre) vale a pena processar. E porque eu sou a pessoa que viveu essas coisas. Sou o resultado do que vivi.

É inevitável imaginar que, sabendo o que sei hoje, teria encontrado muito melhores soluções para os problemas que me afligiram no passado. Mas, evidentemente, eu só sei o que sei hoje porque vivi essas aflições. E os amores e os prazeres também.

A valsa de Ravel terminou numa cacofonia inquietante, mas eu estava em paz. Tão em paz que até resolvi escrever este texto.

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