O fim do gene egoísta?


PZ Myers, Jerry Coyne e Richard Dawkins

Três dos meus biólogos e comunicadores preferidos encontram-se em polémica. Trata-se de PZ Myers, da Universidade de Minesotta Morris, com o blogue Pharyngula; Jerry Coyne, da Universidade de Chicago, com o blogue Why Evolution Is True; e o célebre Richard Dawkins, com, entre outros areópagos, a sua Richard Dawkins Foundation for Reason and Science. O que está em discussão é a possível morte, ou não, do conceito de gene egoísta.


O Gene Egoísta é o título de um livro de Richard Dawkins, publicado em 1976, onde é apresentada a ideia de que o elemento decisivo na evolução não é o indivíduo nem a espécie, mas o gene, de que os seres vivos são ferramentas de que os genes "se servem" para sobreviver de geração em geração. Muitos dos comportamentos contrários à sobrevivência dos indivíduos, como o heroísmo, são aí explicados pela defesa da sobrevivência dos genes.

A ideia teve um sucesso estrondoso. Tornou-se a corrente principal das ideias hoje ensinadas sobre os mecanismos da evolução e encontra-se também embebida na estrutura de toda a moderna biologia e genética.

Recentemente, porém, alguns cientistas têm posto em causa a validade deste paradigma. Não que pensem que a hipótese está errada, mas sim que é insuficiente para explicar a realidade.

Os dados que parecem pôr em causa o gene egoísta provêm da pesquisa em genética, em que a maior compreensão do papel do gene revoga a ideia de uma ligação direta entre o genótipo e o fenótipo. Hoje sabe-se que os genes podem exprimir-se de formas diferentes no organismo vivo, em função da presença de outros genes ou mesmo consoante o ambiente em que o organismo se desenvolve.

Há o caso dos gafanhotos que normalmente são individualistas, mas quando a pressão da sobrevivência é grande se podem tornar em bichos muito diferentes, gregários, de pernas maiores, asas mais curtas, cérebro maior e outras cores, numa questão de horas. E há também, no fim de contas, todos nós, que nos tornamos macho ou ou fêmea com praticamente a mesma informação genética, apenas a partir do modificador dos cromossomas sexuais.

Os dois campos recentes do saber onde este tipo de objeções se tem vindo a colocar são a epigenética, que estuda como os traços genéticos se exprimem ou não, em função de factores para além do que está escrito no DNA, e a biologia evolutiva do desenvolvimento, mais conhecida por evo-devo, que estuda os vários factores que influenciam o desenvolvimento dos indivíduos e como isso condiciona a forma como a genética se exprime.

Mas, leigo que sou, não quero dizer muito sobre estes assuntos, com medo de me espalhar.

Esta polémica começou com a publicação de um artigo de David Dobbs, um divulgador científico, não um cientista, intitulado "Morre, Gene Egoísta, Morre" ("Die, Selfish Gene, Die").

O artigo baseia-se no trabalho de, entre muitos outros cientistas, Mary Jane West-Eberhard, uma bióloga teórica no Smithonian Institution da Costa Rica, que estuda as vespas há muitos anos, em particular certas espécies que se podem tornar gregárias ou individualistas em função de factores ambientais. Publicou em 2003 Developmental Plasticity and Evolution (Plasticidade do Desenvolvimento e Evolução), um livro muito influente sobre as relações complexas entre o genótipo e o fenótipo.


Mary Jane West-Eberhard
PZ Myers gostou do artigo, Jerry Coyne não gostou nada e Richard Dawkins também não.

Tanto Coyne como Dawkins defendem que se mantém a validade do conceito do gene egoísta, que todos os mecanismos que têm sido estudados relativamente à expressão ou não dos genes já se encontravam previstos na teoria e que a tendência moderna para encontrar factores não genéticos é uma heresia lamarckiana.

Não tenho forma de saber quem tem razão. Eventualmente a poeira há-de assentar. Mas transcrevo aqui parte do que diz PZ Myers num artigo sequente, porque é uma bela descrição dos passos da química e da genética da célula:

Antes de mais, vamos esclarecer um ponto: eu digo que compreender os genes é fundamental, importante e produtivo, mas não é suficiente para explicar a evolução, o desenvolvimento ou a biologia da célula.

Mas que diabo quero eu dizer com "gene"? Certo, é uma sequência transcrita num genoma que produz um produto funcional; a sua actividade é dependente, num grau significativo, da sequência de nucleótidos dentro dele, e podemos identificar genes similares em múltiplas linhagens e analisar variações em função, ao mesmo tempo, da história evolutiva e muitas vezes, de funções adaptativas. Isto é material excelente que mantém a ciência a zumbir só a descobrir coisas a esse nível. Repito, não estou a desprezar esse nível de análise, nem penso que seja trivial.

No entanto, eu olho para isto como um biólogo da célula e do desenvolvimento e há muito mais. O estado de transcrição desse gene vai depender das histonas que o dobram e dos enzimas que o podem ter modificado; vai depender da sua vizinhança genética e de outros genes à sua volta; não está lá sentadinho a fazer o seu papel a solo. E vocês põem-se aos gritos: mas isto são apenas produtos de outros genes, genes de histonas, enzimas de metilação e proteínas de ligação ao DNA e a sua sequência de nucleótidos! E eu concordo, mas não há nada de "apenas" acerca disto. A expressão de cada um destes genes depende das suas histonas e do seu estado de metilação. E além disso, essas propriedades são contingentes com a história e o desenvolvimento da célula — não se pode descrever o estado do primeiro gene recitando as sequências de todos os outros genes.

Mais ainda, o estado desse gene é dependente de activadores e repressores, sequências aceleradoras e silenciadoras. E mais uma vez, dizem-me que isso são apenas sequências genéticas e que se pode compilar todos esses padrões sem problemas. E eu digo mais uma vez, a sequência não chega: é preciso saber a história de todos os pedacinhos interligados. Que activadores e repressores estão presentes não é simplesmente derivável apenas dos genes.

E digo mais: indico que uma vez que o gene é transcrito, o RNA pode ser cortado (por vezes de forma alternativa) e editado, processado intensivamente e ser sujeito a ainda mais oportunidades de controlo. Dirão de novo que esses processos são, no fim de contas, produto de genes, mas eu direi em vão... mas não se dá conta de todos os eventos celulares e ambientais com informação sequencial!

E então esse RNA é exportado para o citoplasma, onde encontra outros micro-RNAs e se vê num rico e complexo meio, competindo com outros produtos genéticos pela translação, enquanto é inspecionado por enzimas que o seccionam.

Sim, é um meio cheio de produtos de genes. Nesta altura já conhecem a minha objeção.

E então é traduzido em proteína de algum modo regulada por outros factores na célula (sim, produtos genéticos em muitos casos), e é escoltada e transportada e metilada e ecetilada e glicosada e ubiquitinada e fosforilada, e montada em complexos proteicos com todos os produtos genéticos, e o seu comportamento vai depender de sinais e da fosforilação, etc., estado das outras proteínas, e eu de bom grado estipulo que se pode traçar para trás muitos destes eventos até outros genes, e que eles respondem de formas interessantes a mudanças na sequência desses genes.

Mas também vos digo rudemente: não compreendemos o processo ainda. Conhecer os genes não chega.

(...) É o perigo de um programa de pesquisa de sucesso, historicamente produtivo. Ficamos trancados num modelo; existe o apelo de se ser capaz de usar protocolos sólidos e estabelecidos para recolher montes de dados publicáveis, e de continuar a fazê-lo indefinidamente. É informação real e é útil, mas também propaga a ilusão da compreensão. Não nos motivamos para saltar da máquina imparável da recoleção de dados para repensar as nossas teorias.

Esquecemo-nos que as nossas teorias são puros constructos humanos desenhados para nos ajudar a simplificar e tornar compreensível um universo complexo, e não conseguimos seriamente ver que as nossas teorias enformam a nossa interpretação dos dados... e enformam os dados que nós procuramos! Essa é a minha objeção ao modelo de evolução no Gene Egoísta: é decerto útil, demasiado útil, e há barreiras pendentes na nossa compreensão da biologia que vão precisar de um outro Dawkins para as disseminar.

É sempre fascinante ver estas polémicas terem lugar. Talvez um novo paradigma esteja a desenvolver-se, talvez não. Os leigos como eu são apenas espectadores desta luta. É assim que o conhecimento avança.

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