O caminho para um futuro habitável

Entrevista de Stan Cox a Noam Chomsky em Commondreams.org

Noam Chomsky é professor de Linguística (aposentado) no MIT. É autor de muitos livros e artigos sobre assuntos internacionais e questões sócio-políticas, e um participante de longa data em movimentos ativistas. Os seus livros mais recentes incluem: "Who rules the World?" (2017); "Power Systems: Conversations on Global Democratic Uprisings and the New Challenges to U.S. Empire" (2013 com o entrevistador David Barsamian); “Making the Future: Occupations, Interventions, Empire and Resistance” (2012); "Hopes and Prospects" (2012); e "Profit Over People: Neoliberalism & Global Order" (1998). Os livros anteriores incluem: "Failed States" (2007), "What We Say Goes" (2007 com David Barsamian), "Hegemony or Survival" (2004) e o "Essential Chomsky" (2008).

Stan Cox, junto com Paul Cox, é o autor de "How the World Breaks: Life in Catastrophe’s Path, From the Caribbean to Siberia", e de “The Path to a Liveable Future”.

Stan Cox: A maioria das nações que se reunirão em Glasgow para a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, de 31 de outubro a 12 de novembro de 2021, fizeram promessas de redução de emissões. Na maioria das vezes, essas promessas são totalmente inadequadas. Que princípios acha que deveriam guiar o esforço para prevenir uma catástrofe climática?

Noam Chomsky: Os iniciadores do Acordo de Paris pretendiam ter um tratado vinculativo, não acordos voluntários, mas havia um impedimento. Chama-se Partido Republicano. Era claro que o Partido Republicano nunca aceitaria nenhum compromisso vinculativo. A organização republicana, que perdeu qualquer pretensão de ser um partido político normal, dedica-se quase exclusivamente ao bem-estar dos super-ricos e do sector corporativo, e não se preocupa absolutamente com a população ou com o futuro do mundo. A organização republicana nunca teria aceite um tratado. Em resposta, os organizadores reduziram o seu objetivo a um acordo voluntário, que contém todas as dificuldades que você mencionou.

Perdemos seis anos, quatro sob o governo Trump, que se dedicou abertamente a maximizar o uso de combustíveis fósseis e desmontar o aparato regulatório que, em certa medida, tinha limitado os seus efeitos letais. Até certo ponto, esses regulamentos protegiam setores da população da poluição, principalmente os pobres e as pessoas de cor. Mas são eles que, é claro, enfrentam o principal fardo da poluição. São as pessoas pobres do mundo que vivem no que Trump chamou “países de merda” que mais sofrem; eles são os que menos contribuem para o desastre e são os que mais sofrem.

Não tem que ser assim. Conforme você (Stan Cox) escreve no seu novo livro, “The Path to a Liveable Future”, há de facto um caminho para um futuro habitável. Existem maneiras de ter políticas responsáveis, sãs e racialmente justas. Cabe a todos nós exigi-las, algo que os jovens de todo o mundo já estão a fazer.

Outros países as têm suas próprias responsabilidades, mas os Estados Unidos têm um dos piores registos do mundo. Os Estados Unidos bloquearam o Acordo de Paris antes que Trump finalmente assumisse o cargo. Mas foi sob as instruções de Trump que os Estados Unidos se retiraram totalmente do acordo.

Se você olhar para os democratas menos loucos, que estão longe de estar inocentes, existem pessoas chamadas moderadas como o senador Joe Manchin (Democrata da Virgínia Ocidental), o principal receptor de financiamento de combustíveis fósseis, cuja posição é a das empresas de combustíveis fósseis, que é, como ele disse, não eliminação, apenas inovação. Essa também é a visão da Exxon Mobil: “Não se preocupem, nós cuidaremos de vocês”, dizem eles. “Somos uma empresa com alma. Estamos a investir em algumas formas futurísticas de remover da atmosfera a poluição que estamos a despejar nela. Está tudo bem, basta confiar em nós.” Sem eliminação, apenas inovação, que pode ou não vir e, se vier, provavelmente será tarde de mais e muito limitada.

Noam Chomsky

Noam Chomsky

Veja o relatório do IPCC que acabou de aparecer. É muito mais terrível do que os anteriores e diz que devíamos eliminar os combustíveis fósseis passo a passo, todos os anos, e livrar-nos deles completamente dentro de algumas décadas. Poucos dias depois do relatório ser divulgado, Joe Biden fez um apelo ao cartel do petróleo OPEP para aumentar a produção, o que reduziria os preços do combustível nos Estados Unidos e melhoraria a sua posição perante a população. Houve euforia imediata nas publicações do petróleo. Há muito lucro a obter, mas a que custo? Foi bom ter a espécie humana por algumas centenas de milhares de anos, mas evidentemente que isso é tempo suficiente. Afinal, a vida média de uma espécie na Terra é aparentemente de cerca de cem mil anos. Então, porque devemos bater o recorde? Porquê organizar-se por um futuro justo para todos quando podemos destruir o planeta, ajudando corporações ricas a ficarem mais ricas?

Stan Cox: A catástrofe ecológica está a aproximar-se de nós em grande parte porque, como você disse uma vez, “todo o sistema socioeconómico é baseado na produção para o lucro e num imperativo de crescimento que não pode ser sustentado”. No entanto, parece que só a autoridade estatal pode implementar as mudanças necessárias de forma equitativa e justa. Dada a emergência que enfrentamos, acha que o governo dos EUA seria capaz de justificar a imposição de restrições de recursos nacionais, como regras para alocação de recursos ou racionamento de quinhões, políticas que necessariamente limitariam a liberdade das comunidades locais e indivíduos nas suas vidas materiais?

Noam Chomsky: Bem, temos que enfrentar algumas realidades. Eu gostaria de ver um movimento em direção a uma sociedade mais livre e justa – produção por necessidade em vez de produção por lucro, trabalhadores capazes de controlar as suas próprias vidas em vez de se subordinarem a senhores por quase toda a sua vida. O tempo necessário para ter sucesso em tais esforços é simplesmente demasiado para enfrentar esta crise. Isso significa que precisamos resolver isto dentro da estrutura das instituições existentes, que podem ser melhoradas.

O sistema económico dos últimos 40 anos foi particularmente destrutivo. Infligiu um grande ataque à maioria da população, resultando num enorme crescimento da desigualdade e ataques à democracia e ao meio ambiente.

Um futuro habitável é possível. Não temos que viver num sistema em que as regras tributárias foram alteradas para que bilionários paguem taxas mais baixas do que os trabalhadores. Não temos que viver numa forma de capitalismo de estado em que 90% dos assalariados de renda mais baixa foram roubados em aproximadamente US $ 50 triliões, em benefício de uma fração de 1%. Essa é a estimativa da RAND Corporation, uma estimativa muito subestimada se olharmos para outros dispositivos que foram usados. Existem maneiras de reformar o sistema existente basicamente dentro da mesma estrutura de instituições. Eu acho que elas deveriam mudar, mas teria que ser numa escala de tempo mais longa.

A questão é: podemos prevenir a catástrofe climática dentro da estrutura de instituições capitalistas de estado menos selvagens? Acho que há uma razão para acreditar que podemos, e há propostas muito cuidadosas e detalhadas sobre como fazê-lo, incluindo algumas no seu novo livro, bem como as propostas do meu amigo e co-autor, o economista Robert Pollin, que trabalhou muitas dessas coisas em grandes detalhes. Jeffrey Sachs, outro excelente economista, usando modelos um tanto diferentes, chegou praticamente às mesmas conclusões. Essas são basicamente as linhas das propostas da Associação Internacional de Energia, de forma alguma uma organização radical, que nasceu das corporações de energia. Mas todos eles têm essencialmente a mesma imagem.

Na verdade, existe até uma resolução (PDF) do Congresso, de Alexandria Ocasio-Cortez e Ed Markey, que descreve propostas muito próximas disto. E acho que está tudo dentro da faixa de viabilidade. As suas estimativas de custo de 2% a 3% do PIB, com esforços viáveis, não só resolveriam a crise, mas criariam um futuro mais habitável, sem poluição, sem engarrafamentos, e com trabalho mais construtivo e produtivo, melhores empregos. Tudo isso é possível.

Mas existem barreiras sérias – as indústrias de combustíveis fósseis, os bancos, as outras instituições importantes, que são projetadas para maximizar o lucro e não se preocupam com mais nada. Afinal, esse era o slogan anunciado do período neoliberal – o pronunciamento do guru económico Milton Friedman de que as corporações não têm responsabilidade para com o público ou com a força de trabalho, que a sua responsabilidade total é maximizar o lucro para poucos.

Por razões de relações públicas, empresas de combustíveis fósseis como a ExxonMobil muitas vezes apresentam-se como pessoas comoventes e benevolentes, trabalhando dia e noite para o benefício do bem comum. Chama-se lavagem verde (greenwashing).

Stan Cox: Alguns dos métodos mais amplamente discutidos para capturar e remover dióxido de carbono da atmosfera consumiriam grandes quantidades de biomassa produzida em muitos milhões de hectares, ameaçando assim os ecossistemas e a produção de alimentos, principalmente em nações de baixa renda e baixas emissões. Um grupo de especialistas em ética e outros estudiosos escreveu recentemente que um “princípio fundamental” da justiça climática é que “as necessidades básicas urgentes das pessoas e dos países pobres devem ser protegidas contra os efeitos das mudanças climáticas e das medidas tomadas para as limitar”. Isto parece descartar claramente esses planos de “emitir carbono agora, capturá-lo mais tarde”, e há outros exemplos do que podemos chamar “imperialismo de mitigação do clima”. Acha que o mundo pode enfrentar cada vez mais esse tipo de exploração à medida que as temperaturas sobem? E que acha você dessas propostas de bioenergia e captura de carbono?

Noam Chomsky: É totalmente imoral, mas é uma prática padrão. Para onde vão os resíduos? Não vão para o seu quintal, vão para lugares como a Somália, que não podem proteger-se. A União Europeia, por exemplo, tem despejado os seus resíduos atómicos e outros tipos de poluição na costa da Somália, prejudicando as áreas de pesca e as indústrias locais. É horrível.

O último relatório do IPCC pede o fim dos combustíveis fósseis. A esperança é que possamos evitar o pior e alcançar uma economia sustentável em algumas décadas. Se não fizermos isso, chegaremos a pontos de inflexão irreversíveis e as pessoas mais vulneráveis – as menos responsáveis pela crise – sofrerão primeiro e mais severamente as consequências. Pessoas que vivem nas planícies do Bangladesh, por exemplo, onde ciclones poderosos causam danos extraordinários. Pessoas que vivem na Índia, onde a temperatura pode passar de 49ºC no verão. Muitos podem testemunhar partes do mundo a torna-se inabitáveis.

Houve relatórios recentes de geocientistas israelitas condenando o seu governo por não levar em conta o efeito das políticas que estão a adotar, incluindo o desenvolvimento de novos campos de gás no Mediterrâneo. Desenvolveram uma análise que indicava que, dentro de algumas décadas, durante o verão, o Mediterrâneo estaria a atingir o calor de um jacuzzi e as planícies baixas seriam inundadas. As pessoas ainda viveriam em Jerusalém e Ramallah, mas as enchentes afetariam grande parte da população. Porque não mudar de curso para evitar isso?

Stan Cox: A economia neoclássica subjacente a essas injustiças vive em modelos de clima económico conhecidos como “modelos de avaliação integrados”, que se resumem a análises de custo-benefício baseadas no chamado custo social do carbono. Com essas projeções, os economistas estão a tentar jogar e perder o direito das gerações futuras a uma vida decente?

Noam Chomsky: Não temos o direito de jogar com as vidas das pessoas no Sul da Ásia, em África ou com pessoas em comunidades vulneráveis nos Estados Unidos. Você quer fazer análises como essa no seu seminário académico? Ok, vá em frente. Mas não ouse traduzi-las em política. Não se atreva a fazer isso.

Há uma diferença notável entre físicos e economistas. Os físicos não dizem, eh, vamos tentar uma experiência que pode destruir o mundo, porque seria interessante ver o que aconteceria. Mas os economistas fazem isso. Com base nas teorias neoclássicas, eles instituíram uma grande revolução nos assuntos mundiais no início dos anos 1980, que descolou com Carter e acelerou com Reagan e Thatcher. Dado o poder dos Estados Unidos em comparação com o resto do mundo, o ataque neoliberal, uma grande experiência de teoria económica, teve um resultado devastador. Não era preciso ser um génio para descobrir. O seu lema é: “O problema é o governo”.

Isto não significa que se elimine decisões; significa apenas que são transferidas. As decisões ainda precisam de ser tomadas. Se não forem tomadas pelo governo, que está, de forma limitada, sob influência popular, serão tomadas por concentrações de poder privado, que não têm responsabilidade perante o público. E seguindo as instruções de Friedman, não têm nenhuma responsabilidade para com a sociedade que lhes deu o presente da incorporação. Têm apenas o imperativo de auto-enriquecimento.

Margaret Thatcher chega então e diz que não existe sociedade, apenas indivíduos atomizados que de alguma forma estão a administrar o mercado. Claro, há uma pequena nota de rodapé que ela não se preocupou em acrescentar: para os ricos e poderosos, há muita sociedade. Organizações como a Câmara de Comércio, a Business Roundtable, ALEC, todos os tipos de outras. Elas reúnem-se, defendem-se e assim por diante. Há muita sociedade para eles, mas não para o resto de nós. A maioria das pessoas tem que enfrentar a devastação do mercado. E, claro, os ricos não. As corporações contam com um estado poderoso para salvá-las sempre que houver algum problema. Os ricos precisam de ter um Estado poderoso – bem como dos seus poderes de polícia – para garantir que ninguém se atravesse no seu caminho.

Stan Cox: Onde vê esperança?

Noam Chomsky: Nos jovens. Em setembro, houve uma greve climática internacional; centenas de milhares de jovens saíram para exigir o fim da destruição ambiental. Greta Thunberg recentemente levantou-se na reunião de Davos, dos grandes e poderosos, e deu-lhes uma palestra sóbria sobre o que estão a fazer. “Como ousam vocês”, disse ela, “vocês roubaram os meus sonhos e a minha infância com as vossas palavras vazias”. Vocês traíram-nos. Essas são palavras que deveriam ser gravadas na consciência de todos, especialmente das pessoas da minha geração que as traíram e continuam a trair a juventude e os países do mundo.

Agora temos uma luta. Pode ser vencida, mas quanto mais se atrasa, mais difícil será. Se tivéssemos resolvido isto há dez anos, o custo teria sido muito menor. Se os EUA não fossem o único país a recusar o Protocolo de Kyoto, teria sido muito mais fácil. Bem, quanto mais esperarmos, mais trairemos nossos filhos e netos. Essas são as escolhas. Não tenho muitos anos; outros de vocês têm. A possibilidade de um futuro justo e sustentável existe e há muito que podemos fazer para chegar lá antes que seja tarde de mais.

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