Do lado dos que lutam pela liberdade

No Reino Unido, por estranho que pareça, funcionam tribunais islâmicos da Xaria. O seu objetivo não é decidir questões criminais ou do direito geral do país, mas aplicar o costume e a tradição nas vastas comunidades islâmicas inglesas. Coisas como heranças e afins. Mas a Xaria foi concebida como a lei para todos e os seus tribunais têm tendência a invadir e atacar direitos de mulheres, de LGBT+, de outras persuasões religiosas, e o próprio estado secular.

Com respeito aos muçulmanos, alguma esquerda tem vindo a confundir o anti-imperialismo e a defesa da emancipação dos povos (notavelmente os palestinianos) com o apoio a organizações e ideologias profundamente antidemocráticas, ou até a tolerar o mais grosseiro antissemitismo, sexismo e obscurantismo desses grupos, partidos e estados. Isto leva a legitimar, com um verniz de esquerda, posições reacionárias; a trair os cidadãos das culturas muçulmanas, que lutam pelos seus direitos humanos e pela sua cidadania. Por exemplo, grupos de ex-muçulmanos, a que se refere este artigo de Maryam Namazie no blogue do Centre for Women's Justice, também publicado no site Europe Solidaire sans Frontières, queixam-se de serem isolados ou até atacados pela esquerda, que apoia quem defende a pena de morte para a apostasia, o uso forçado da burca, a segregação das mulheres ou o casamento infantil. Eis o artigo:

Fundei o Conselho de Ex-Muçulmanos da Grã-Bretanha e o One Law for All (Uma Lei para Todos) há mais de uma década para mobilizar publicamente a dissidência contra leis religiosas. Um grito de «em meu nome não» e um desafio ao Alcorão, ao Islão e ao islamismo como os maiores obstáculos no caminho da emancipação de mulheres, livres-pensadores e outros (se me é permitido «parafrasear» a sufragista norte-americana Elizabeth Cady Stanton, que falava da Bíblia e da Igreja1).

Maryam Namazie é uma escritora, ativista comunista e feminista nascida no Irão e vencedora conjunta do Prémio Memorial Emma Humphrey 2019. É a porta-voz da One Law for All e do Conselho de Ex-Muçulmanos da Grã-Bretanha. Produz um programa de televisão semanal transmitido no Irão, nas noites de sábado, em persa e inglês, chamado Bread and Roses.

Tendo fugido do regime islâmico no Irão — onde há uma reação anti-islâmica profunda e um movimento de libertação das mulheres — achei surpreendente como os tribunais da Xaria, as leis de apostasia e o estatuto de subserviência das mulheres eram legitimados como defesa dos «direitos das minorias» na Grã-Bretanha e no ocidente.

Como é maquiavélico promover a defesa dos fundamentalistas como defesa de uma suposta «comunidade» minoritária homogénea! Como é paternalista supor que aqueles de nós que pertencem a minorias são tão «diferentes» de todos os outros que só podemos esperar viver dentro dos limites de estruturas patriarcais predefinidas!

O fato é que a lei da Xaria viola os direitos das mulheres, inclusive aqui na Grã-Bretanha, tal como os tribunais eclesiásticos cristãos, os Beth Din (tribunais religiosos hebraicos) ou os Loya Jirgas (tribunais tribais do Afeganistão e Paquistão). Em qualquer tribunal religioso ou tribal, as probabilidades estão contra as mulheres que são vistas como propriedade e honra dos homens responsáveis ​​e não como cidadãs individuais com direitos.

Os tribunais da Xaria legitimam e incentivam a violência contra as mulheres, considerando que o depoimento de uma mulher vale metade do do homem, normalizando a poligamia e o «casamento» infantil ou considerando o estupro conjugal uma prerrogativa do marido, entre outros. A jurisprudência e a prática dos tribunais da Xaria violam todos os artigos da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDCM), promovendo inclusive o conceito de «zina» que criminaliza o sexo fora do casamento.

Em qualquer tribunal religioso ou tribal, as probabilidades estão contra as mulheres, que são vistas como propriedade e honra dos homens responsáveis ​​e não como cidadãs individuais com direitos.

A lei Xaria também viola os direitos das minorias religiosas, pensadores livres, ex-muçulmanos, ateus, apóstatas, blasfemadores e LGBT... Em mais de uma dúzia de países sob a Xaria, apostasia, blasfémia e homossexualidade são puníveis com a pena de morte. Também na Grã-Bretanha, os juízes da Xaria fizeram declarações a justificar o assassinato de apóstatas; basta o rótulo de apóstata para acarretar o grave risco de ostracismo, violência e morte por questão de honra.

O estabelecimento do Conselho de Ex-Muçulmanos da Grã-Bretanha e o One Law for All foram esforços para que fôssemos ouvidos e vistos; para insistir na nossa cidadania igual e nos nossos direitos e liberdades individuais, diante de um relativismo cultural que apaga qualquer dissidência e só reconhece direitos ao «grupo» e à «comunidade». Dado que é quem está no poder quem determina os «direitos» de um grupo, a defesa de uma «comunidade muçulmana» essencializada acaba por tornar-se um exercício de defesa dos fundamentalistas e de culpar as vítimas. Não se enganem. A defesa dos tribunais da Xaria ou, já agora, o uso do véu em crianças e a segregação sexual nas escolas, ou a oposição ao programa «No Outsiders» (Ninguém de Fora, programa nas escolas contra a discriminação LGBT+) é uma defesa do projeto islâmico de controlar mulheres, discordâncias e dúvidas e nada tem a ver com promover a liberdade religiosa ou combater a intolerância.

Um breve olhar às organizações fundadoras do mais antigo tribunal da Xaria na Grã-Bretanha, o Conselho Islâmico da Xaria, por exemplo, mostra claramente os laços islâmicos transnacionais. As organizações incluem:

  • London Central Mosque and Islamic Cultural Center (cujos curadores incluem funcionários dos governos do Paquistão, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Brunei, Catar, Egito, Iémen, Jordânia — muitos dos quais punem a apostasia com a pena de morte e têm leis de família discriminatórias).
  • Muslim World League (que propaga o wahabismo saudita; a Irmandade Muçulmana desempenhou um papel na sua fundação).
  • Markazi Jamiat Ahl-e-Hadith (envolvido na promoção do sectarismo e da jihad no subcontinente indiano).
  • UK Islamic Mission (inspirada em Jamaat e Islami e no imã paquistanês Syed Abul A'la Maududi e compartilha a mesma ideologia que o Hamas e a Irmandade Muçulmana).
  • Dawatul Islam, UK (filial britânica do Jamaat e Islami do Bangladesh. Em 1971, alguns dos Jamaat e Islami estavam envolvidos na atividade de esquadrões da morte e na organização de linchamentos contra pessoas que exigiam independência).
  • Jamia Mosque & Islamic Center, Birmingham (cujos manifestantes marcharam da mesquita, após as orações de sexta-feira, para o Alto Comissariado do Bangladesh em Birmingham, contra a execução de um islamita do Bangladesh, condenado por atrocidades cometidas durante a guerra de independência de 1971 com o Paquistão, por sentença do tribunal de crimes de guerra do país).
  • Muslim Welfare House, Londres (foi fundada por Kamal Helbawy, da Irmandade Muçulmana, que elogiou Osama Bin Laden. Têm fatwas a defender a poligamia e a proibir as mulheres muçulmanas de se casar com homens não muçulmanos, além de fazerem campanha para impedir a venda de álcool).

O que conta é como cada um de nós se posiciona quando os direitos são violados e os fundamentalistas apaziguados.

Ao contrário dos argumentos da extrema-direita, que visam promover o fanatismo e a xenofobia antimuçulmana, não se trata de um choque de civilizações, mas de um conflito entre teocratas e secularistas em todo o lado, com crentes e não crentes, incluindo minorias e migrantes, de ambos os lados. As identidades são irrelevantes e não estão em questão; é a sua política que importa. O que conta é como cada um de nós se posiciona quando os direitos são violados e os fundamentalistas apaziguados. Como diz o refrão da velha canção do movimento trabalhista: «De que lado estás?» Será que estamos todos, como continua a canção — «do lado dos que lutam pela liberdade»?


Para obter mais detalhes sobre os tribunais da Xaria na Grã-Bretanha, consulte uma submissão do One Law for All ao Home Affairs Select Committee: https://onelawforall.org.uk/6997-2/

Para mais detalhes sobre o trabalho do Conselho de Ex-Muçulmanos da Grã-Bretanha, clique aqui: https://www.ex-muslim.org.uk/2019/12/cemb-timeline/


1 A sufragista norte-americana Elizabeth Cady Stanton [1850-1902] disse: «A Bíblia e a Igreja têm sido os maiores obstáculos no caminho da emancipação das mulheres".

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