Em memória amorosa de nosso amigo, camarada e mentor, David Graeber

Andrej Grubačić compartilha alguns pensamentos sobre seu o falecimento repentino
Tradução de um artigo de Europe Solidaire Sans Frontières

David Graeber

David Graeber foi o meu mentor e o meu amigo mais próximo nos últimos vinte anos. Participámos em dezenas de projetos políticos e escrevemos várias coisas juntos. Foi, de longe, a pessoa mais brilhante que já conheci. Todos nós temos uma ou duas boas ideias, mas o David sempre foi capaz de apresentar muitas, às vezes na mesma frase. Não tenho dúvidas de que foi o pensador anarquista mais significativo da minha geração.

Tenho ainda menos dúvidas de que foi um dos antropólogos mais importantes do nosso tempo. O seu primeiro livro, Toward an Anthropological Theory of Value, mudou a maneira como teorizamos o valor. Inspirado pelo trabalho do seu falecido mentor Terry Turner e pela sua inspiração intelectual ao longo da vida, o antropólogo francês Marcel Mauss, este livro demonstrou o caminho para além dos debates substantivistas e ofereceu uma síntese entre Marx e Mauss. O seu livro-panfleto Fragments of An Anarchist Anthropology foi um trabalho pioneiro e inovador que estabeleceu a antropologia anarquista como um campo legítimo de investigação. Nesse sentido, os seus livros Possibilities, Revolutions in Reverse e Direct Action: An Ethnography forneceram aos jovens antropólogos ferramentas para estudar os movimentos sociais "de dentro". Como um colega certa vez observou sobre Possibilities, cada capítulo deste livro fenomenal poderia ter sido uma monografia académica inovadora. Este livro e alguns outros dos seus principais trabalhos antropológicos foram publicados por uma editora anarquista, e não pela imprensa académica. É um paradoxo amargo que o melhor teórico antropólogo da sua geração nunca se tenha sentido totalmente à vontade nos círculos antropológicos estabelecidos. Ele odiava com paixão as conferências académicas. Não foi apenas por causa da vergonhosa decisão de Yale de se livrar dele por causa de seu ativismo político; David era uma pessoa da classe trabalhadora que detestava, com cada fibra de seu ser, qualquer indício de elitismo académico, networking e conversa fiada. Com muito custo pessoal, rejeitou esses estranhos rituais sectários da vida académica. Era o amigo e colega mais generoso que alguém poderia esperar ter e o oponente mais formidável do snobismo académico.

Depois de ser despedido de Yale, David candidatou-se a mais de vinte empregos académicos nos Estados Unidos. Não foi selecionado para um único. Mas era impossível livrarem-se de David Graeber. Poucos anos depois de ter sido enviado para o exílio académico em Inglaterra, em 2011, publicou uma das obras clássicas da antropologia, Debt: The First 5,000 Years. O livro foi um clássico instantâneo. Falámos ao telefone quando ele estava a organizar com o Occupy Wall Street em Nova Iorque. Iria usar breves momentos entre ações diretas para escrever capítulos de Debt. Os seus livros posteriores, Lost People (o seu trabalho de campo de doutoramento em Madagascar), On Kings (com o grande Marshall Sahlins), The Democracy Project, The Utopia of Rules e Bullshit Jobs foram excelentes e originais.

Quando morreu, David tinha acabado de terminar o seu livro mais recente, no qual trabalhou por vários anos. Juntou-se ao arqueólogo britânico David Wengrow para desafiar algumas das suposições mais teimosas da ciência social dominante. Este foi um dos projetos mais ambiciosos em que David embarcou e deve ser publicado em 2021. David também esteve envolvido em vários projetos com a PM Press, incluindo o seu livro Uprisings, que concebeu junto com a sua esposa, a artista russa Nika Dubrovsky. Era um amigo de longa data do Movimento pela Liberdade Curda e, juntos, trabalhámos em vários comunicados à imprensa da PM dedicados à causa curda.

O seu ensaio sobre Ajuda Mútua, que pretende ser um prefácio ao grande trabalho de Kropotkin, é provavelmente o último ensaio que David escreveu. Decidimos publicá-lo e colocá-lo à disposição de todos, em memória amorosa de nosso amigo, camarada e mentor.

Andrej Grubačić, dissidente anarquista, historiador e autor de Don't Mourn, Balkanize!: Essays After Yugoslavia, e Wobblies and Zapatistas: Conversations on Anarchism, Marxism and Radical History

Introdução do futuro Mutual Aid: An Illuminated Factor of Evolution, de David Graeber e Andrej Grubačić

Ajuda Mútua: Um Fator Iluminado de Evolução

A sair em Maio de 2021

Andrej Grubačić
Andrej Grubačić

Às vezes — não com muita frequência — um argumento particularmente convincente contra o senso comum político dominante apresenta tal choque para o sistema que se torna necessário criar um corpo teórico inteiro para o refutar. Essas intervenções são elas próprias eventos, no sentido filosófico; isto é, revelam aspetos da realidade que eram amplamente invisíveis mas, uma vez revelados, parecem tão óbvios que nunca podem deixar de ser vistos. Grande parte do trabalho da direita intelectual é identificar e afastar tais desafios.

Deixem-nos oferecer três exemplos.

Na década de 1680, um estadista da nação indígena da América do Norte Huron-Wendat chamado Kondiaronk, que tinha estado na Europa e estava intimamente familiarizado com as sociedades de colonos francesa e inglesa, engajou-se numa série de debates com o governador francês de Quebec e um de seus principais assessores, um certo Lahontan. Neles, ele apresentou o argumento de que a lei punitiva e todo o aparato do estado existem, não por causa de alguma falha fundamental na natureza humana, mas devido à existência de outro conjunto de instituições — propriedade privada, dinheiro — que, pela sua própria natureza, levam as pessoas a agir de forma a tornar necessárias medidas coercivas. Igualdade, argumentou ele, é, portanto, a condição para qualquer liberdade significativa. Esses debates foram posteriormente transformados num livro de Lahontan, que nas primeiras décadas do século XVIII foi um grande sucesso. Tornou-se uma peça de teatro em cena durante vinte anos em Paris e, aparentemente, todo o pensador iluminista escreveu uma imitação. Por fim, esses argumentos — e a crítica indígena mais ampla da sociedade francesa — tornaram-se tão poderosos que os defensores da ordem social existente, como Turgot e Adam Smith, tiveram de inventar efetivamente a noção de evolução social como uma resposta direta. Aqueles que primeiro propuseram o argumento de que as sociedades humanas podem ser organizadas de acordo com estágios de desenvolvimento, cada um com as suas próprias tecnologias e formas de organização características, foram bastante explícitos que era disso que se tratavam. “Todos amam liberdade e igualdade”, observou Turgot; a questão é quanto de cada uma delas é consistente com uma sociedade comercial avançada baseada numa sofisticada divisão de trabalho. As teorias de evolução social resultantes dominaram o século XIX e ainda estão entre nós, embora de forma ligeiramente modificada, hoje.

No final do século XIX e início do século XX, a crítica anarquista do estado liberal — que o império da lei era basicamente baseado na violência arbitrária e, em última instância, simplesmente uma versão secularizada de um Deus todo-poderoso que poderia criar moralidade porque era exterior — foi levada tão a sério pelos defensores do estado que teóricos do direito de direita como Karl Schmitt acabaram por inventar a armadura intelectual para o fascismo. Schmitt termina sua obra mais famosa, Teologia Política, com um discurso retórico contra Bakunin, cuja rejeição do "decisionismo" — a autoridade arbitrária para criar uma ordem jurídica, mas, portanto, também para colocá-la de lado — era, em última análise, afirmou ele, tão arbitrária como a autoridade a que Bakunin afirmava opor-se. A própria concepção de teologia política de Schmitt, fundamental para quase todo o pensamento de direita contemporâneo, foi uma tentativa de responder ao Deus e o Estado de Bakunin.

O desafio apresentado pelo Ajuda Mútua: um fator de evolução (em português, PDF), de Kropotkin sem dúvida, é ainda mais profundo, uma vez que não se trata apenas da natureza do governo, mas da natureza da natureza, ou seja, da própria realidade.

As teorias da evolução social, que Turgot chamou "progresso", podem ter começado como uma forma de neutralizar o desafio da crítica indígena, mas logo começaram a assumir uma forma mais virulenta, à medida que liberais radicais como Herbert Spencer começaram a representar a evolução social, não apenas como uma questão de crescente complexidade, diferenciação e integração, mas como uma espécie de luta hobbesiana pela sobrevivência. A frase “sobrevivência do mais apto” foi realmente cunhada em 1852 por Spencer, para descrever a história humana — e em última análise, presume-se, para justificar o genocídio europeu e o colonialismo. Só foi retomada por Darwin uns dez anos depois, quando, em A Origem das Espécies, usou-a como forma de descrever as formas de seleção natural que havia identificado na sua famosa expedição às Ilhas Galápagos. Na época em que Kropotkin estava a escrever, nas décadas de 1880 e 90, as ideias de Darwin tinham sido adotadas por liberais do mercado, mais notoriamente o seu "buldogue" Thomas Huxley, e o naturalista inglês Alfred Russel Wallace, para propor o que se costuma chamar "visão de gladiador" da história natural. As espécies digladiam-se como boxeurs num ringue ou corretores na bolsa; os fortes prevalecem.


Edição inglesa de Ajuda Mútua, de Piotr Kropotkin. A versão portuguesa pode ser descarregada em PDF aqui.

A resposta de Kropotkin — que a cooperação é um fator tão decisivo na seleção natural como a competição — não foi inteiramente original. Nunca fingiu que o era. Na verdade, não estava apenas a utilizar o melhor conhecimento biológico, antropológico, arqueológico e histórico disponível na sua época, incluindo as suas próprias explorações na Sibéria, mas também uma escola alternativa russa de teoria evolucionária que sustentava que a escola hipercompetitiva inglesa era baseada, como ele disse, "num tecido de absurdos": homens como "Kessler, Severtsov, Menzbir, Brandt — quatro grandes zoólogos russos e um quinto menor, Poliakov e, finalmente, eu, um simples viajante".

Ainda assim, devemos dar crédito a Kropotkin. Ele era muito mais do que um simples viajante. Esses homens foram ignorados com sucesso pelos darwinianos ingleses, no apogeu do império — e, de fato, por quase todos os outros. O tiro certeiro de Kropotkin não o foi. Em parte, isto foi sem dúvida porque ele apresentou as suas descobertas científicas num contexto político mais amplo, de uma forma que tornava impossível negar o quanto a versão reinante da ciência darwiniana era apenas um reflexo inconsciente de algo dado como certo, as categorias liberais. (Como disse Marx de maneira tão famosa: “A anatomia do homem é a chave para a anatomia do macaco”.) Foi uma tentativa de catapultar as visões das classes comerciais para a universalidade. O darwinismo naquela época ainda era uma intervenção política consciente e militante para remodelar o senso comum; uma insurgência centrista, pode-se dizer, ou melhor, uma pretensa insurgência centrista, já que visava a criação de um novo centro. Ainda não era bom senso; foi uma tentativa de criar um novo senso comum universal. Se não foi, em última análise, completamente bem-sucedida, foi em certa medida devido ao próprio poder do contra-argumento de Kropotkin.

Não é difícil ver o que deixava esses intelectuais liberais tão inquietos. Considerem a famosa passagem de Ajuda Mútua, que realmente merece ser citada na íntegra:

“Não é o amor, nem mesmo a simpatia (entendida no seu sentido próprio) que induz uma manada de ruminantes ou de cavalos a formar um círculo para resistir a um ataque de lobos; não é o amor que induz os lobos a formarem uma alcateia para a caça; não é o amor que induz gatinhos ou cordeiros a brincar, ou uma dúzia de espécies de pássaros jovens a passar os dias juntos no outono; e não é nem o amor nem a simpatia pessoal que induzem muitos milhares de gamos espalhados por um território tão grande como a França a formarem-se em vinte rebanhos separados, todos a marchar em direção a um determinado local, a fim de cruzar ali um rio. É um sentimento infinitamente mais amplo do que o amor ou a simpatia pessoal — um instinto que se desenvolveu lentamente entre os animais e os homens ao longo de uma evolução extremamente longa, e que ensinou aos animais e aos homens a força que podem obter da prática da ajuda e apoio mútuos, e as alegrias que podem encontrar na vida social... Não é no amor e nem mesmo na simpatia que se baseia a sociedade na humanidade. É a consciência — mesmo que apenas no estágio de um instinto — da solidariedade humana. É o reconhecimento inconsciente da força que cada homem toma emprestado da prática da ajuda mútua; da estreita dependência da felicidade de cada um da felicidade de todos; e do senso de justiça ou equidade que leva o indivíduo a considerar os direitos de todos os outros indivíduos como iguais aos seus. Sobre este fundamento amplo e necessário, são desenvolvidos os sentimentos morais ainda mais elevados.”

Basta considerar a virulência da reação. Desde então, pelo menos dois campos de estudo (reconhecidamente sobrepostos), sociobiologia e psicologia evolucionária, foram criados especificamente para reconciliar os pontos de Kropotkin sobre a cooperação entre animais com a suposição de que todos somos, em última análise, movidos, como Dawkins acabaria por dizer, pelos nossos “genes egoístas”. Quando o biólogo britânico J.B.S. Haldane disse que estaria disposto a sacrificar a sua vida para salvar "dois irmãos, quatro meio-irmãos ou oito primos de primeiro grau", estava simplesmente a repetir o tipo de cálculo "científico" que foi introduzido em todo o lado para responder a Kropotkin, da mesma forma que o progresso foi inventado para controlar Kondiaronk, ou a doutrina do estado de exceção, para controlar Bakunin. A frase “gene egoísta” não foi escolhida fortuitamente. Kropotkin tinha revelado um comportamento no mundo natural que era exatamente o oposto do egoísmo: todo o jogo dos darwinistas agora é encontrar algum motivo, qualquer motivo, para continuar a insistir que mesmo o comportamento mais brincalhão, amoroso, caprichoso, heroicamente abnegado ou sociável é mesmo egoísta, afinal.

Os esforços da direita intelectual para enfrentar a enormidade do desafio apresentado pela teoria de Kropotkin são compreensíveis. Como já apontámos, é exatamente isso que eles têm que fazer. É por isso que são chamados “reacionários”. Não acreditam realmente na criatividade política como um valor em si — na verdade, acham-na profundamente perigosa. Como resultado, os intelectuais de direita estão lá principalmente para reagir às ideias apresentadas pela esquerda. Mas e a esquerda intelectual?

É aqui que as coisas se tornam um pouco confusas. Enquanto os intelectuais de direita procuraram neutralizar o holismo evolucionário de Kropotkin, desenvolvendo sistemas intelectuais inteiros, a esquerda marxista fingiu que sua intervenção nunca tinha ocorrido. Pode-se até arriscar dizer que a resposta marxista à ênfase de Kropotkin no federalismo cooperativo foi desenvolver ainda mais os aspetos da própria teoria de Marx que puxaram mais fortemente na outra direção: isto é, seus aspetos mais produtivistas e progressistas. Ricos insights da Ajuda Mútua foram, na melhor das hipóteses, ignorados e, na pior, afastados com um riso condescendente. Tem havido uma tendência tão persistente nos estudos marxistas e, por extensão, nos estudos de tendência esquerdista em geral, de ridicularizar o "socialismo salva-vidas" e o "utopismo ingénuo" de Kropotkin que um biólogo renomado, Stephen Jay Gould, se sentiu compelido a insistir, num ensaio famoso, que “Kropotkin não era maluco”.

Existem duas explicações possíveis para essa eliminação estratégica. Um é puro sectarismo. Como já observado, a intervenção intelectual de Kropotkin era parte de um projeto político mais amplo. O final do século XIX e o início do século XX viram as bases do estado de bem-estar, cujas instituições-chave foram, na verdade, em grande parte criadas por grupos de ajuda mútua, totalmente independentes do estado, e então gradualmente cooptadas por estados e partidos políticos. A maioria dos intelectuais de direita e esquerda estava perfeitamente alinhada com isso: Bismarck admitiu plenamente que criou instituições de bem-estar social alemãs como um “suborno” à classe trabalhadora para que não se tornassem socialistas; os socialistas insistiam que tudo, desde o seguro social às bibliotecas públicas, não fosse administrado pela vizinhança e pelos grupos sindicais que realmente os criaram, mas por partidos de vanguarda de cima para baixo. Neste contexto, ambos viram como um imperativo supremo a eliminação como tolice das propostas éticas socialistas de Kropotkin. Também vale a pena lembrar que — em parte por esta mesma razão — no período entre 1900 e 1917, as ideias anarquistas e marxistas libertárias eram muito mais populares entre a própria classe trabalhadora do que o marxismo de Lenin e Kautsky. Foi necessária a vitória do ramo de Lenin do partido bolchevique na Rússia (na época, considerada a ala direita dos bolcheviques) e a supressão dos sovietes, do Proletkult e de outras iniciativas de baixo para cima na própria União Soviética, para finalmente enterrar esses debates.

No entanto, há outra explicação possível, que tem mais a ver com o que pode ser chamado "posicionalidade", tanto do marxismo tradicional como da teoria social contemporânea. Qual é o papel de um intelectual radical? A maioria dos intelectuais ainda afirma ser radical de algum tipo ou de outro. Em teoria, todos eles concordam com Marx que não é suficiente entender o mundo; o objetivo é mudá-lo. Mas que significa isso realmente na prática?

Num importante parágrafo do Ajuda Mútua, Kropotkin oferece uma sugestão: o papel de um estudioso radical é "restaurar a proporção real entre conflito e união". Isso pode parecer obscuro, mas ele esclarece. Os estudiosos radicais são “obrigados a fazer uma análise minuciosa dos milhares de fatos e indícios ténues acidentalmente preservados nas relíquias do passado; interpretá-los com o auxílio da etnologia contemporânea; e depois de ter ouvido tanto sobre o que costumava dividir os homens, reconstruir pedra por pedra as instituições que costumavam uni-los”.

Um dos autores ainda se lembra do seu entusiasmo juvenil depois de ler essas linhas. Que diferente é do treino sem vida recebido na academia centrada na nação! Esta recomendação deve ser lida em conjunto com a de Karl Marx, cuja energia foi canalizada para a compreensão da organização e do desenvolvimento da produção capitalista de mercadorias. No Capital, a única atenção real à cooperação é um exame das atividades cooperativas como formas e consequências da produção da fábrica, onde os trabalhadores "apenas formam um modo particular de existência do capital". Parece que os dois projetos se complementam muito bem. Kropotkin teve como objetivo entender exatamente o que tinha perdido um trabalhador alienado. Mas integrar os dois significaria entender como até o capitalismo é em última análise fundado no comunismo (“ajuda mútua”), mesmo que seja um comunismo que não reconhece; como o comunismo não é um ideal abstrato e distante, impossível de manter, mas uma realidade prática vivida em que todos nos engajamos diariamente, em diferentes graus, e que mesmo as fábricas não poderiam operar sem ele — mesmo se grande parte dele operar às escondidas, entre as brechas, ou turnos, ou informalmente, ou no que não foi dito, ou de forma totalmente subversiva. Ultimamente, está na moda dizer que o capitalismo entrou numa nova fase na qual se tornou parasita de formas de cooperação criativa, principalmente na internet. Isso não faz sentido. Tem sido sempre assim.

Este é um projeto intelectual digno. Por algum motivo, quase ninguém está interessado em realizá-lo. Em vez de examinar como as relações de hierarquia e exploração são reproduzidas, recusadas e emaranhadas com relações de ajuda mútua, como as relações de cuidado se tornam contínuas com relações de violência, mas ainda assim mantêm os sistemas de violência unidos de forma que não se desintegrem totalmente, tanto o marxismo tradicional como a teoria social contemporânea rejeitaram obstinadamente quase tudo que sugerisse generosidade, cooperação ou altruísmo como algum tipo de ilusão burguesa. Conflito e cálculo egoísta provaram ser mais interessantes do que "união". (Da mesma forma, é bastante comum para os esquerdistas académicos escreverem sobre Carl Schmidt ou Turgot, enquanto é quase impossível encontrar aqueles que escrevem sobre Bakunin e Kondiaronk.) Como o próprio Marx se queixou, sob o modo de produção capitalista, existir é acumular, nas últimas décadas, ouvimos pouco mais do que exortações implacáveis ​​sobre as estratégias cínicas usadas para aumentar o nosso respetivo capital (social, cultural ou material). Estas são enquadradas como críticas. Mas se tudo o que desejamos falar é sobre aquilo a que afirmamos opor-nos, se tudo o que podemos imaginar é aquilo a que afirmamamos opor-nos, então em que sentido realmente nos opomos? Às vezes, parece que a esquerda académica acabou, como resultado, gradualmente internalizando e reproduzindo todos os aspetos mais angustiantes do economicismo neoliberal a que afirma opor-se, a tal ponto que, lendo muitas dessas análises (vamos ser simpáticos e não mencionar nenhum nome), alguém se pergunta: qual é a diferença de tudo isto, na verdade, em relação à hipótese sociobiológica de que o nosso comportamento é governado por "genes egoístas!"

É certo que esse tipo de internalização do inimigo atingiu o seu apogeu nas décadas de 1980 e 1990, quando a esquerda global estava em plena retirada. As coisas mudaram. Kropotkin é relevante novamente? Bem, obviamente, Kropotkin sempre foi relevante, mas este livro está a ser lançado na crença de que há uma nova geração radicalizada, muitos dos quais nunca foram expostos a essas ideias diretamente, mas que mostram todos os sinais de serem capazes de fazer uma avaliação mais clara da situação global do que os seus pais e avós, até porque sabem que, se não o fizerem, o mundo queb lhes está reservado cedo se tornará num inferno absoluto.

isso já está a começar a acontecer. A relevância política das ideias defendidas pela primeira vez no Mutual Aid está a ser redescoberta pelas novas gerações de movimentos sociais em todo o planeta. A revolução social em curso na Federação Democrática do Nordeste da Síria (Rojava) foi profundamente influenciada pelos escritos de Kropotkin sobre ecologia social e federalismo cooperativo, em parte por meio das obras de Murray Bookchin, em parte voltando à fonte, em grande parte também com base nas suas próprias tradições curdas e experiência revolucionária. Os revolucionários curdos assumiram a tarefa de construir uma nova ciência social antagónica às estruturas de conhecimento da modernidade capitalista. Os envolvidos em projetos coletivos de sociologia da liberdade e jineoloji começaram de facto a “reconstruir pedra por pedra as instituições que costumavam unir” pessoas e lutas. No Norte Global, em todos os lugares, de vários movimentos de ocupação a projetos de solidariedade que enfrentam a pandemia de Covid-19, a ajuda mútua surgiu como uma frase-chave usada por ativistas e jornalistas convencionais. Atualmente, a ajuda mútua é invocada nas mobilizações de solidariedade de migrantes na Grécia e na organização da sociedade zapatista em Chiapas. Há rumores de que até mesmo os estudiosos a usam ocasionalmente.

Quando a Ajuda Mútua foi lançada pela primeira vez em 1902, havia poucos cientistas suficientemente corajosos para desafiar a ideia de que o capitalismo e o nacionalismo estavam enraizados na natureza humana, ou que a autoridade dos Estados era, em última análise, inviolável. A maioria dos que o fizeram foram, de facto, considerados malucos ou, se fossem obviamente importantes de mais para serem descartados dessa forma, como Albert Einstein, eram considerados “excêntricos” cujas opiniões políticas tinham tanta importância como os seus penteados incomuns. O resto do mundo, entretanto, está a avançar. Será que os cientistas — mesmo, possivelmente, os cientistas sociais — o vão seguir?

Escrevemos esta introdução durante uma onda de revolta popular global contra o racismo e a violência do Estado, à medida que as autoridades públicas vomitam veneno contra os "anarquistas" da mesma forma que o faziam na época de Kropotkin. Este parece ser um momento peculiarmente adequado para fazer um brinde àquele velho “desprezador da lei e da propriedade privada” que mudou a face da ciência de formas que continuam a afetar-nos hoje. Os estudos de Pyotr Kropotkin foram cuidadosos e coloridos, perspicazes e revolucionários. Também envelheceu excecionalmente bem. A rejeição de Kropotkin do capitalismo e do socialismo burocrático, as suas previsões de onde o último poderia levar, foram justificadas repetidas vezes. Olhando para trás, para a maioria das discussões que grassaram na sua época, não há realmente nenhuma dúvida sobre quem estava mesmo certo.

Obviamente, ainda existem aqueles que discordam de forma virulenta nesse ponto. Alguns apegam-se ao sonho de embarcar em navios há muito zarpados. Outros são bem pagos para pensar o que pensam. Quanto aos autores desta modesta introdução, muitas décadas depois de encontrar pela primeira vez este livro encantador, ficámos — mais uma vez — surpresos com a forma profunda como concordamos com seu argumento central. A única alternativa viável à barbárie capitalista é o socialismo sem Estado, um produto, como o grande geógrafo nunca deixou de nos lembrar, “de tendências que agora se manifestam na sociedade” e que “sempre foram, em certo sentido, iminentes no presente”. Para criar um novo mundo, só podemos começar por redescobrindo o que está e sempre esteve bem diante de nossos olhos.

Andrej Grubačić

Mini-biografia de David Graeber, escrita pelo próprio David

Nasci e fui criado na cidade de Nova Iorque, filho de Kenneth Graeber, um operador de chapas de impressão (fotolitografia offset), originalmente do Kansas, que lutou nas Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola, e Ruth (Rubinstein) Graeber, nascida na Polónia, uma trabalhadora do setor de confecções e dona de casa que protagonizou o musical Pins and Needles, do Labor Stage, dos anos 1930.

Criado no bairro cooperativo Penn South em Chelsea, frequentei escolas públicas locais PS 11 e IS 70, fui descoberto por alguns arqueólogos maias por causa de um hobby estranho que desenvolvi de traduzir hieróglifos maias e recebi uma bolsa de estudos frequentar um colégio fino durante três, a Phillips Academy em Andover, antes de retornar à universidede pública, em SUNY Purchase, onde me formei em antropologia em 1984.

De lá, fui para a Universidade de Chicago. Morei em Chicago por mais de uma década, exceto por dois anos (entre 1989 e 1991) durante os quais estive a fazer trabalho de campo antropológico nas terras altas de Madagascar. Recebi a licenciatura em 1996 e depois tive uma série de empregos académicos. Isso incluiu algum ensino de pós-graduação em Chicago, embora reconhecidamente não muito, um ano em Haverford, um ano de desemprego incluindo um estatuto de professor visitante e um curso na Universidade de Nova Iorque, e uma posição de professor júnior em Yale. Em 2004, o departamento de Yale votou por não continuar o meu contrato, antes que eu pudesse iniciar o processo de me candidatar ao cargo. Este foi um procedimento muito incomum, em que novas regras tiveram que ser inventadas para o meu caso (por exemplo, não foram permitidas avaliações de alunos ou externas). Yale não deu nenhuma razão para sua decisão, exceto a insatisfação com o meu trabalho académico, mas alguns acharam que pode não ter sido totalmente irrelevante que eu já fosse bastante ativo no movimento de justiça global e outros projetos de inspiração anarquista.

Depois de Yale, vi-me desempregado no meu próprio país, mas por alguma razão misteriosa, sendo avidamente procurado em quase todos os outros sítios. Acabei na Goldsmiths, University of London, de 2007 a 2013, trabalhando com colegas inspiradores e alunos maravilhosos, e agora, como professor titular, na London School of Economics, onde estou cercado por algumas das melhores e mais interessantes pessoas que se poderia esperar. Depois de morar por alguns anos em vários países ao mesmo tempo, finalmente estabeleci-me em tempo inteiro em Londres.

Certa vez, disse a uma revista que sou anarquista desde os dezasseis anos, portanto acho que deve ser verdade, mas só me tornei ativo de alguma forma significativa depois do início de 2000, quando mergulhei no movimento de alter-globalização. Pode-se dizer que todo o meu trabalho desde então tem explorado a relação entre a antropologia como uma busca intelectual e tentativas práticas de criar uma sociedade livre — livre, pelo menos, do capitalismo, da patriarquia e das burocracias estatais coercitivas. Como resultado, às vezes sinto que tive que seguir duas carreiras a tempo inteiro de pesquisa e redação, uma revisada por pares, a outra não, já que no meu trabalho voltado para o ativismo estou interessado em tentar fazer o tipo de pergunta que quem está ativamente engajado em tentar mudar o mundo considera útil ou importante, ao invés dos financiadores e dos que são influenciados por eles. Ainda assim, as duas linhagens entrelaçam-se e influenciam-se uma à outra de maneiras infinitas e, espero, criativas e que se reforçam mutuamente.

O primeiro livro que escrevi foi Lost People, uma etnografia dos Betafo (Arivonimamo), uma comunidade em Madagascar dividida entre descendentes de nobres e escravos, e ainda acho que é o meu melhor, porque é realmente co-escrito por todos os personagens (em cada sentido do termo) que o habitam. É uma tentativa de uma etnografia verdadeiramente dialógica, mas em resultado disso é um pouco longo, portanto demorou uma eternidade para ser publicado. Foi efetivamente escrito em 1997, mas só apareceu dez anos depois (2007).

O primeiro a ser publicado foi Toward an Anthropological Theory of Value (2001), em parte a minha homenagem a um dos meus professores mais inspiradores em Chicago, Terry Turner. Mais tarde, quando outro ex-mentor inspirador, Marshall Sahlins, lançou uma série de panfletos e me pediu para contribuir com um volume, escrevi um pequeno livro chamado Fragments of an Anarchist Anthropology, que desde então me condenou a ser referido como "o antropólogo anarquista ”, embora o livro amplamente argumente que a antropologia anarquista não existe e provavelmente não poderia realmente existir. (Por favor, não façam isso. Não chamariam alguém "o antropólogo social-democrata", pois não?) Eu também escrevi uma vasta etnografia de ação direta (Direct Action: An Ethnography) que quase ninguém lê, uma coleção de ensaios académicos intitulados Possibilidades, um volume editado chamado Constituent Imagination com Stevphen Shukaitis, um livro de ensaios políticos intitulado Revolutions in Reverse, e Debt: The First 5000 Years, que praticamente toda a gente parece ter lido. Isso foi seguido por The Democracy Project (que na verdade eu queria chamar "Como se já fôssemos livres"), The Utopia of Rules (que eu queria chamar "Three Essays on Bureaucracy"), On Kings (uma coleção co-escrita com Marshall Sahlins), e Bullshit Jobs: A Theory. Atualmente, estou trabalhando com o arqueólogo David Wengrow em toda uma série de trabalhos que reimaginam completamente toda a questão das origens da desigualdade social, começando pela maneira como a questão é formulada para começar. Depois disso, quem sabe?

Continuei engajado ativamente em movimentos sociais de um tipo ou outro, na medida em que realmente posso, vivendo no exílio com um emprego a tempo inteiro. Estive envolvido nas reuniões iniciais que ajudaram a criar o Occupy Wall Street, por exemplo, e tenho trabalhado com o Movimento pela Liberdade Curda em várias funções também.

Ah, e já que isso é uma questão de contenção histórica: não, eu não inventei pessoalmente o slogan "Nós somos os 99%". Sugeri primeiro que nos chamássemos 99%. Em seguida, dois indignados espanhóis e um anarquista grego adicionaram o “nós” e mais tarde um veterano do Food-Not Bombs colocou o “somos” entre eles. E dizem que não se pode criar algo que valha a pena via comitê! Eu incluiria os seus nomes, mas, considerando a forma como a espionagem policial tem andado atrás dos primeiros organizadores do OWS, talvez seja melhor não o fazer.

David Graeber



Lost People:
Magic and the Legacy of Slavery in Madagascar

David Graeber, 2007

Toward An Anthropological Theory of Value:
The False Coin of Our Own Dreams

David Graeber, 2001

Fragments of an Anarchist Anthropology

David Graeber, 2004

Direct Action:
An Ethnography

David Graeber, 2009

Possibilities:
Essays on Hierarchy, Rebellion, and Desire

David Graeber, 2007

Revolutions in Reverse:
Essays on Politics, Violence, Art, and Imagination

David Graeber, 2011

Debt:
The First 5,000 Years

David Graeber, 2012

The Democracy Project:
A History, a Crisis, a Movement

David Graeber, 2013

The Utopia of Rules:
On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy

David Graeber, 2016

On Kings

David Graeber, Marshall Sahlins, 2017

Bullshit Jobs:
A Theory

David Graeber, 2018

Anarchy―In a Manner of Speaking:
Conversations with Mehdi Belhaj Kacem, Nika Dubrovsky, and Assia Turquier-Zauberman

David Graeber, 2020

 

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