A palavra proibida

Este país está de saída?

Por Tom Engelhardt (tradução do artigo The Forbiden Word, em Tom Dispatch

Foi há muito tempo, num mundo aparentemente sem desafios. Lembram-se de quando nós, americanos, vivíamos num planeta com uma Rússia abatida, uma China que mal se erguia e nenhum inimigo óbvio, exceto o que mais tarde veio a ser conhecido como um “eixo do mal”, três países incapazes então de pôr este em perigo? Ah, e, como se viu, um jovem e rico ex-aliado saudita, Osama bin Laden, e 19 sequestradores, a maioria deles também sauditas, de um pequeno grupo chamado Acaida que por breves instantes possuiu uma “força aérea” de quatro jactos comerciais. Não admira que este país fosse então apontado como a maior força, a superpotência de todos os tempos, ostentando uma força militar que deixava todos os outros na poeira.

E então, é claro, veio o lançamento da Guerra Global Contra o Terror, que logo seria normalizada como a velha e sem maiúsculas “guerra ao terror”. Sim, essa mesma guerra – mesmo que ninguém a chame assim há anos – começou em 11 de setembro de 2001. Num Pentágono parcialmente em ruínas, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld, já ciente de que a destruição à sua volta era provavelmente da responsabilidade de Osama bin Laden, ordenou aos seus assessores que deviam começar a planear um ataque de retaliação contra… o Iraque de Saddam Hussein. As palavras exatas de Rumsfeld (um assessor escreveu-as) foram: “Vão em massa. Varram tudo. Coisas relacionadas ou não.”

Coisas relacionadas ou não. Considerem esta frase por um momento. Da sua própria forma estranha, essas quatro palavras, proferidas nas primeiras horas após a destruição do World Trade Center de Nova Yorque e parte do Pentágono, ainda parecem capturar a experiência americana do século XXI.

Poucos dias após o 11 de setembro, Rumsfeld, que serviu quatro presidentes antes de deixar este mundo recentemente, aos 88 anos, e o presidente para o qual trabalhava, George W. Bush, lançariam oficialmente essa Guerra Global contra o Terror. Iriam visar ambiciosamente supostas redes de terror em nada menos que 60 países. (Sim, esse era o número de Rumsfeld!) Ivadiriam o Afeganistão e, menos de um ano e meio depois, fariam o mesmo numa escala muito maior no Iraque, para derrubar o seu governante autocrático, Saddam Hussein, que já havia sido tratado como amigo pelo secretário da Defesa.

Apesar dos rumores postos a circular na época por apoiantes de tal invasão, Saddam não teve nada a ver com o 11 de setembro; nem, apesar das afirmações do governo Bush, o seu regime estava então a desenvolver ou na posse de armas de destruição em massa; nem, caso não agíssemos, uma nuvem iraquiana em forma de cogumelo se teria alguma vez levantado sobre Nova Yorque ou qualquer outra cidade americana. E lembrem-se, ambas estas invasões e muito mais seriam feitas em nome da “libertação” dos povos e da difusão da democracia ao estilo americano por todo o Grande Médio Oriente. Ou, dito de outra forma, em resposta a esse ataque devastador por aqueles 19 sequestradores armados com facas, os EUA estavam a preparar-se para invadir e dominar o Médio Oriente rico em petróleo até o fim dos tempos. Em 2021, quase duas décadas depois, isso não vos parece de outra vida?

Fonte: Wall Street Journal

A propósito, notem que há uma palavra em falta em todas as opções acima. Acreditem em mim, se o que acabei de descrever tivesse relação com os planos soviéticos durante a Guerra Fria, podem apostar o vosso último centavo que essa palavra estaria por todo o lado em Washington. Estou a pensar, é claro, em “império” ou, na sua forma adjetiva, “imperial”. Se a União Soviética tivesse planeado actos semelhantes para “libertar” os povos ao “espalhar o comunismo”, isso teria sido visto em Washington como o projeto mais imperial de todos os tempos. Nos primeiros anos deste século, no entanto, com o fim da União Soviética e os líderes dos Estados Unidos a imaginar que poderiam reinar globalmente supremos até o fim dos tempos, essas duas palavras foram banidas para a história.

Era óbvio que, apesar das 800 ou mais bases militares sem precedentes, que este país possuía em todo o mundo, as potências imperiais eram claramente uma coisa do passado.

“Impérios foram lá e não conseguiram”

Agora, deixem este pensamento em suspenso por um momento, enquanto eu vos levo num rápido tour pela há muito esquecida Guerra Global ao Terror. Quase duas décadas depois, parece estar a chegar paulatinamente a algum tipo de conclusão. Sim, ainda há aqueles 650 soldados americanos a guardar a nossa embaixada na capital afegã, Cabul, e ainda há aquela “capacidade além do horizonte” que o presidente cita para que aviões dos EUA ataquem as forças dos Talibãs, mesmo que as tropas americanas tenham abandonado recentemente a sua última base aérea no Afeganistão; e sim, ainda há cerca de 2500 soldados americanos estacionados no Iraque (e centenas mais em bases na fronteira com a Síria), sendo regularmente atacados por grupos de milícias iraquianas.

Da mesma forma, apesar da retirada das forças dos EUA da Somália com o fim dos anos Trump, ataques aéreos além do horizonte contra o grupo terrorista al-Shabaab, interrompidos quando Joe Biden entrou na Sala Oval, acabam de ser reiniciados, supostamente a partir de bases no Quénia ou Djibouti; e sim, a horrenda guerra no Iémen continua com os EUA a apoiar ainda os sauditas, mesmo que oferecendo ajuda “defensiva”, não “ofensiva”; e sim, as tropas de operações especiais americanas também estão estacionadas num número impressionante de países à volta do globo; e sim, os prisioneiros ainda estão detidos em Guantanamo, o Triângulo das Bermudas da injustiça criado pelo governo Bush há muito tempo. É certo que os funcionários do novo Departamento de Justiça de Biden estão, pelo menos, a debater, ainda que de forma indecisa, se esses detidos podem ter algum direito ao devido processo legal, de acordo com a Constituição (sim, a Constituição dos Estados Unidos!). E o seu número, 39, está numa baixa histórica desde 2002.

Fonte: Associated Press

Ainda assim, vamos encarar os factos, este não é o conjunto de conflitos que, em tempos, envolveu invasões, ataques aéreos massivos, ocupações, a matança de um número impressionante de civis, ataques de drones generalizados, a desorganização de países inteiros, o desenraizamento e o deslocamento de mais de 37 milhões de pessoas, o posicionamento a certa altura de cem mil soldados americanos só no Afeganistão e o gasto de incontáveis triliões de dólares dos contribuintes americanos, tudo em nome da luta contra o terror e da difusão da democracia. E pensem nisso como uma missão (não) cumprida no sentido mais verdadeiro que se possa imaginar.

Na verdade, essa ideia de disseminação da democracia, realmente, não durou mais que os anos Bush. Desde então, tem havido muito pouca discussão no Washington oficial sobre o que este país estava mesmo a fazer enquanto guerreava em partes significativas do planeta. Sim, essas duas décadas de conflito, aquelas “guerras eternas”, como passaram a ser chamadas, primeiro pelos críticos e depois por qualquer um, estão pelo menos a decrescer, ou talvez em espiral descendente – e, no entanto, eis o mais estranho: Não acham que, à medida que terminaram em falhanço visível, as ações do Pentágono também podem estar a cair? Estranhamente, porém, na esteira de todos aqueles anos de guerras perdidas, ainda estão a subir. O orçamento do Pentágono dirige-se cada vez mais para a estratosfera, à medida que a política externa “gira” do Grande Oriente Médio para a Ásia (e para a Rússia e para o Ártico e, bem, para qualquer lugar, exceto aqueles lugares onde grupos terroristas ainda vagueiam).

Por outras palavras, quando se trata dos militares dos EUA, enquanto tentam deitar as suas guerras eternas na lixeira de outros, o fracasso é a nova história de sucesso. Talvez não seja tão surpreendente, então, que os generais derrotados que lutaram nessas guerras, enquanto eternamente prometiam que “esquinas” estavam dobradas e “progresso” era feito, quase todos continuaram a subir nas fileiras ou conseguiram pára-quedas dourados para outras partes do complexo militar-industrial. Isso deveria chocar os americanos, mas realmente nunca parece acontecer. Sim, uma percentagem impressionante de nós apoia deitar o Afeganistão e os afegãos numa lixeira qualquer e seguir em frente, mas o que se diz geralmente ainda é um grande “obrigado pelo seu serviço” aos nossos comandantes militares e ao Pentágono.

Olhando para trás, no entanto, não será a verdadeira questão – não que alguém pergunte – esta: Qual foi a missão dos EUA durante todos esses anos? Na verdade, não acho que seja possível responder ou explicar nada disso sem usar o substantivo e adjetivo proibidos que mencionei anteriormente. E, para minha surpresa, depois de todos esses anos em que isso nunca passou pelos lábios de um presidente americano, Joe Biden, o tipo que tem insistido que “a América está de volta” neste nosso planeta falido, realmente usou essa mesma palavra!

Nma recente conferência de imprensa, irritado por se ver a discutir interminavelmente a decisão de retirar as forças dos EUA do Afeganistão, ele respondeu a esta pergunta de um repórter: “Dada a quantidade de dinheiro que foi gasto e o número de vidas que foram perdidas, na sua opinião, ao tomar essa decisão, valeram a pena os últimos 20 anos?”

A sua resposta: “Eu argumentei, desde o início [nos anos Obama], como você se deve lembrar – isso veio à tona depois que essa administração acabou... Nenhuma nação jamais unificou o Afeganistão, nenhuma nação. Os impérios foram lá e não conseguiram.”

Ora aí está! Sim, era vago e poderia simplesmente ter sido uma referência ao destino, no Afeganistão, aquele famoso “cemitério de impérios”, do Império Britânico, no século XIX, e do Império Soviético, no século XX. Mas não posso deixar de pensar que um presidente, por mais levemente, por mais indiretamente que seja, por muito sem querer que seja, finalmente reconheceu que este país também lá estava numa missão imperial e, globalmente, numa missão, não de difundir a democracia ou de libertação, mas de dominação. Caso contrário, como diabos se explicam essas 800 bases militares em todos os continentes, exceto na Antártida? Será isto realmente espalhar a democracia? Será isto realmente libertador da humanidade? Não é assunto discutido neste país, mas acreditem, se fosse em qualquer outro lugar, as palavras “império” e “imperial” estariam em muitos lábios em Washington e o desejo de dominar dessa forma teria sido denunciado veementemente na capital do nosso país.

Um império fracassado com militares agitados?

Eis uma questão: se os EUA estão “de volta”, como o nosso presidente tem afirmado, como é que exatamente estão de volta? O que poderia ser essa volta, agora que se provou incapaz de dominar o planeta da maneira que seus líderes políticos sempre sonharam? Poderia este país, que nesses anos despejou triliões de dólares dos contribuintes nas suas guerras eternas, talvez agora ser reclassificado como um império decadente com um exército debilitado?

Claro, essa possibilidade não é geralmente reconhecida aqui. Se, por exemplo, Cabul cair nas mãos dos Talibãs daqui a alguns meses e diplomatas americanos precisarem de ser resgatados do telhado de nossa embaixada lá, como aconteceu em Saigão em 1975 – algo que o presidente veementemente negou ser sequer possível – contem com uma coisa: um bando de republicanos e especialistas de direita vai atirar-se num instante à sua garganta por saírem “cedo de mais”. (Claro, alguns deles já o fazem, incluindo, por acaso, o próprio presidente que lançou a invasão de 2001, para se concentrar quase que instantaneamente na invasão do Iraque.)

Mesmo internamente, quando pensamos sobre para onde o nosso dinheiro realmente vai, a desigualdade de todos os tipos está apenas a aprofundar-se, com os bilionários dos EUAa cada vez mais ricos e numerosos, enquanto o Pentágono e as corporações fabricantes de armas voam cada vez mais alto nos dólares dos contribuintes, e as contas noutros sítios não são pagas. Nesse sentido, talvez seja hora de começar a pensar nos Estados Unidos como um sistema imperial falido em casa e no exterior. Infelizmente, seja globalmente ou internamente, tudo isso parece difícil para os americanos compreenderem ou descreverem verdadeiramente (daí, talvez, a loucura da América de Donald Trump). Afinal, se nem se consegue usar as palavras “imperial” e “império”, como se vai entender o que nos está a acontecer?

Ainda assim, esqueçam quaisquer fantasias sobre espalharmos a democracia no exterior. Estamos agora num país visivelmente ameaçando de perder a democracia em casa. Esqueçam o Afeganistão. Desde o ataque de 6 de janeiro ao Capitólio até as últimas leis de (anti) voto no Texas e em outros lugares, há um sistema instável e falho bem aqui nos EUA. E, ao contrário do Afeganistão, não é um sistema do qual um presidente se possa retirar.

Sim, globalmente, o governo Biden parece extremamente ansioso por entrar numa nova Guerra Fria com a China e “girar” para a Ásia, enquanto o Pentágono continua a aumentar as suas forças, da naval à nuclear, como se este país ainda fosse o reinante poder imperial no planeta. Mas não é.

A verdadeira questão pode ser esta: três décadas depois do império soviético estar de saída, é possível que o muito mais poderoso americano esteja a ir caoticamente na mesma direção? E se sim, o que significa isso para o resto de nós?

Copyright 2021 Tom Engelhardt

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