Alterações climáticas e pedofilia

Que tem um crime a ver com o outro? Eu já explico.

Em 2002, o nosso país foi abalado pelo escândalo da Casa Pia. Figuras públicas e mediáticas eram acusadas de abusar crianças do histórico orfanato. Entre o público, manifestou-se súbita indignação por esses crimes.

Fonte: site da Casa Pia

Este processo de alteração da consciência pública sempre me fascinou. O súbito furor contra os pedófilos era tanto mais surpreendente quanto o crime já era do conhecimento público há anos. Não digo que o fosse no caso das personalidades visadas, mas sabia-se do abuso de gente poderosa – e não muito poderosa – a estas crianças. Até era, evidentemente, do conhecimento público que havia prostituição de crianças da Casa Pia no Jardim dos Jerónimos, em Lisboa.

Mas o povo não se importava. Até corriam graçolas sobre o assunto.

Direitos e lei

Os direitos humanos, famosa descoberta das Revoluções Francesa e Americana, progrediram, desde o fim do século XVIII até hoje, de forma lenta e acidentada, dos mais privilegiados aos mais oprimidos. Começaram, é claro, pelos homens brancos e ricos, mas estenderam-se através de conflitos épicos, aos homens pobres, aos não brancos, às mulheres ricas, às pobres, às crianças ricas e, por fim, às pobres. A ordem que mostro aqui não é uniforme e de forma nenhuma esses direitos se podem considerar hoje garantidos para todos. Muito há que lutar ainda, até porque, em muitos casos, o acesso a esses direitos é incompatível com a permanência da injustiça social.

A injustiça social continua a impedir hoje o acesso ao gozo dos direitos para todos, mesmo quando a lei o prescreve formalmente. O ladrão de mil milhões de euros é tratado pela lei com uma leniência, até uma doçura, que o pequeno delinquente não conhece. A mulher goza, em muitos casos, da igualdade formal, mas a desigualdade prática na sociedade nega-lha, inclusivamente no que toca à sua autonomia sexual.

As mais afastadas da justiça sempre foram, naturalmente, as crianças pobres, e as mais desprotegidas de todas, as que crescem sem família.

Muito depois dos direitos dos homens, dos não-brancos e das mulheres, a Liga das Nações adotou uma Declaração de Genebra dos Direitos da Criança, em 1923, aprovada de novo, em texto expandido, pela ONU em 1959. Só em 1990 foi publicada, também pela ONU, a muito mais pormenorizada Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada por Portugal. O único país que não aderiu foram os Estados Unidos. Mas os direitos da Criança também estavam já na nossa Constituição.

Entre a letra da lei e a aplicação na vida real para todos, incluindo os mais desfavorecidos, há sempre uma grande distância. Muitas vezes, a luta para aplicar a lei é tão feroz e prolongada como foi para aprová-la.

Temos de defender os direitos do nosso planeta. Porque são direitos humanos.

Estou convencido que isto decorria há séculos, que os ricos e poderosos tinham acesso e abusavam das crianças pobres de orfanatos, de outras instituições e até de muitos outros lugares não institucionais onde o seu poder e riqueza vencia a pobreza e a opressão.

Desde, pelo menos a Antiguidade que isto acontece. Os pedófilos até escreveram textos literários muito aclamados a gabar-se das suas proezas. A comunidade fazia vista grossa. Alusões veladas de amigos às suas infâncias em bairros populares também indiciavam isso.

O povo calava-se.

No entanto, considerar a pedofilia um crime já estava na lei há muito tempo. Portugal era signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança, os quais, de resto, estavam na Constituição.

Mas, com o processo da Casa Pia, o público finalmente somou dois mais dois. As crianças têm direitos, portanto não se pode abusar sexualmente delas. Ao pensar nas crianças vítimas de abuso, o público deixou de considerá-las “outras”, essas desgraçadas, mas passou a associá-las aos seus próprios filhos. Todos passámos, de repente, a considerar-nos, em certa medida, pais dessas crianças. Estabeleceu-se a empatia com as vítimas.

E o clima?

É esse salto de consciência que me fascina. Acredito que estamos à beira de uma mudança destas, súbita, inesperada e decisiva, sobre a crise climática.

Há muitos anos que todos estamos fartos de saber que as consequências do aquecimento global, provocado pelo efeito de estufa do dióxido de carbono, serão tremendas ao nível global. Mais, sabemos que já estão a ser. As notícias de eventos desastrosos por todo o lado sucedem-se e não nos deixam de fora, como é o caso dos incêndios incontroláveis dos últimos anos.

Mas as ações a levar a cabo para enfrentar a crise mostram-se difíceis, custosas e põem em causa o nosso modo de vida. A inércia geral é difícil de vencer.

Além disso, muita da comunicação social tem servido os interesses opostos a essas medidas, nomeadamente as indústrias do carbono e os adeptos da manutenção do status quo capitalista e imperial.

Mas está a aproximar-se o momento em que já não será possível continuar a tapar o sol com a peneira. Novos eventos, cada vez mais devastadores e assustadores, vão acabar por fazer pender a balança.

O salto

O que sucederá, não sei quando, é que o público mundial vai subitamente somar dois mais dois e entrar em pânico. Estou convencido, devido à tal inércia, que será tarde para evitar parte da devastação. Mas talvez não seja tarde para evitar o pior.

Esse pânico levará o público a exigir dos políticos ação imediata e responsabilizá-los por anos e anos de inércia e procrastinação.

Ainda por cima, nessa súbita indignação, haverá um elemento de culpa, porque o público participou na inércia e na indiferença. Tal como no caso da Casa Pia, parte da indignação será movida pela culpa partilhada (mas não confessada, claro) de ter contemplado o mal sem reagir.

Um zelo quase religioso vai apoderar-se da opinião política mundial. Desculpas não serão aceites. Os políticos que se opuseram ou adiaram a luta contra o aquecimento global serão varridos do mapa, a não ser que consigam fazer esquecer o passado a mostrar-se prontos a participar na nova luta. A janela de Overton só estará aberta para quem quiser lutar.

Os proponentes de estratégias nacionalistas e egoístas do tipo do “salva-vidas armado” ocuparão o lugar atual dos nazis.

A esperança

Este quadro dá-me esperança. Talvez não sejamos tão castigados como até agora parece.

Esta esperança será descabida? Não creio.

Este tipo de viragens súbitas ocorre constantemente, ainda mais quando existe uma densa comunicação global.

Exemplos: O casamento homossexual passou subitamente, de ideia estranhíssima e impensável, a questão aceite e consensual. Porquê? Porque a opinião pública (quase) mundial mudou subitamente, sobre esta questão. Durante a pandemia, a maioria dos governos do mundo começou a investir pesadamente nos sistemas de saúde sociais e nas medidas de apoio social, rompendo subitamente um consenso de dezenas de anos sobre a validade do neoliberalismo. E nem sequer houve discussão, não foi preciso. O público falou. Ou nem precisou de falar…

Muitas das mudanças que permitiram o progresso das liberdade aconteceram assim. Ativistas esforçam-se durante anos, sacrificam-se, são presos, até assassinados. Nada parece acontecer. Até que, de repente, quase todos os que eram contra passam a ser a favor. É como uma revelação.

Todas as liberdades de que gozamos hoje passaram por isto. Hoje são consensuais, mas houve tempos em que só meia dúzia de iluminados as defendia.

Mas há sinais precursores. O grande abalo tem avisos. O inesperado sucesso de Greta Thunberg e dos seus jovens camaradas, passando de voz isolada a movimento mundial, é um sinal desses.

Assim, ativistas do clima, alegrem-se. A salvação está próxima!

 

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