Recuperação, mas verde

Em tempos de pandemia, põe-se o problema da intervenção do estado na economia, para tentar mitigar a crise económica, o desemprego e a miséria que vieram no seu rasto. Mas há sempre a velha discussão com os neoliberais, que acham que todo o dispêndio de fundos do estado tem que ser compensado por uma austeridade brutal. Acabo de publicar um texto sobre uma nova teoria económica que afirma que isto não se passa assim, a Nova Teoria Monetária.

O artigo que se seque foi publicado no Huffington Post em 2018, na discussão à volta do Green New Deal, um projeto de alguns membros do Partido Democrata dos EUA para o gasto massivo de recursos do estado com o fim de fazer frente ao Aquecimento Global e assegurar a transição da economia dos EUA para energias e procedimentos sustentáveis, à semelhança do New Deal de Roosevelt, que proporcionou a saída da crise de 1930. A discussão de então é válida para o que se passa hoje. Hoje, praticamente ninguém objeta a uma intervenção massiva do estado na economia. Aliás, brevemente teremos que responder à questão: já que temos que gastar o dinheiro do estado para recuperar a economia, vamos usá-lo para reconstruir a porcaria que estava de pé ou aproveitar para construir uma economia sustentável?

Podemos pagar o Green New Deal

Artigo no Huffington Post, 30 de novembro de 2018

Stephanie Kelton, Andres Bernal e Greg Carlock

Em todos os Estados Unidos, os apelos à ação sobre o clima tornam-sa cada vez mais altos e empenhados. Como Naomi Klein escreveu esta semana (novembro de 2018), “[esperamos] há muito tempo que finalmente houvesse uma massa crítica de políticos no poder que entendessem não só a urgência existencial da crise climática, mas também a oportunidade do século que representa".

Estamos quase lá.

Compreendemos o problema (PDF) — não podemos permitir que as temperaturas subam mais de 1,5 graus Celsius. O Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas dá ao mundo 12 anos para fazer reduções substanciais nas emissões de gases de efeito de estufa para evitar efeitos climáticos graves no fim deste século — inclusive nos Estados Unidos. A urgência da situação não pode ser exagerada.

Temos impulso — os democratas recém-chegados, como Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova Iorque, e Rashida Tlaib, do Michigan, estão a criar apoios para um ambicioso plano climático, e mais de 15 membros do Congresso querem convocar uma comissão selecionada com mandato para redigir legislação abrangente: um New Deal Verde. Temos o esboço de um plano: precisamos de uma mobilização em massa de pessoas e recursos, algo não muito diferente do envolvimento dos EUA na Segunda Guerra Mundial ou nas missões lunares Apollo — mas ainda maior. Devemos transformar o nosso sistema energético, de transportes, de habitação, de agricultura e muito mais.

O que ainda não temos é o ingrediente final e vital — uma massa crítica de políticos preparados para liberar o enorme poder da finança pública para salvar o planeta. Precisamos de mais coragem política e menos consternação política.

Alexandria Ocasio-Cortez

A congressista Alexandria Ocasio-Cortez com ativistas ambientalistas

O benefício, não o custo

Claro, vai custar muito dinheiro. É provável que isso irrite os nervos dos falcões autoproclamados do défice, democratas e republicanos, que farão as mesmas perguntas estafadas: "Como como vamos pagar isso?" "E o défice e a dívida?" "Não vai prejudicar a nossa economia?" De facto, essas questões já estão a chegar, com a ajuda ansiosa do lobby dos combustíveis fósseis.

O senador republicano Mike Lee, de Utah, disse recentemente que "todas as propostas que vi até agora... devastariam a economia dos EUA". O senador Marco Rubio (Florida) diz que está teoricamente aberto à ação, mas acrescenta: "Eu também não vou destruir a nossa economia".

Os democratas correm o risco de ter pouca ambição, se apenas voltam a embrulhar propostas de gastos com infraestrutura usando os fundos correntes que iriam construir mais estradas e pontes, mas não fortalecer a resiliência ao agravamento dos riscos climáticos. Esses políticos, e os especialistas que deles se fazem eco, chegam mal ao debate. Não podemos permitir que a política deficitária se atravesse no caminho de um ambicioso Green Deal Verde.

Eis as boas notícias: tudo o que for tecnicamente viável é financeiramente acessível. E não será um empecilho para a economia — ao contrário da crise climática em si, que causará todos os anos dezenas de milhares de milhões de dólares em danos aos lares, às comunidades e às infraestrutura dos EUA. Um New Deal Verde ajudará realmente a economia, estimulando a produtividade, o crescimento do emprego e os gastos dos consumidores, como costuma acontecer com os gastos do estado. (Não é preciso ir até ao New Deal original para comprovar isso.)

De facto, um New Deal Verde pode criar empregos bem remunerados, ao mesmo tempo em que corrige as desigualdades económicas e ambientais. Uma visão política, do grupo de reflexão progressista Data for Progress, é assenta numa base de equidade e justiça. Propõe uma transição para uma economia de baixo carbono usando energia limpa e renovável, a restauração de florestas e áreas húmidas e o aumento da resiliência nas comunidades rurais e urbanas.

Stephanie Kelton

Stephanie Kelton

Repensando o orçamento

Para salvar o planeta e corrigir desigualdades históricas, no entanto, temos que mudar a forma como abordamos o orçamento federal. Temos que desistir da nossa obsessão em tentar "pagar" tudo com nova receita ou cortes nas despesas.

Os impostos são parte importante de um plano climático agressivo? Certamente. Os impostos podem dar forma a incentivos e ajudar a mudar comportamentos no setor privado. Os impostos devem ser aumentados para romper as concentrações de riqueza e renda e punir os poluidores pelo custo e pelas consequências das suas ações. Num período sem liderança federal na crise climática, é assim que governos estaduais e locais estão a considerar atribuir preço ao carbono. Isso é útil — não porque "precisamos pagar isto", mas para acabar com o comportamento prejudicial dos poluidores.

O governo federal pode gastar dinheiro com prioridades públicas sem aumentar a receita e não arruinará a economia do país. Isso pode parecer radical, mas não é. É como a economia dos EUA está a funcionar há quase meio século. Esse é o poder do dinheiro público.

Como fornecedor monopolista (PDF) da moeda dos EUA com total soberania financeira, o governo federal não é como uma família ou mesmo um negócio. Quando o Congresso autoriza gastos, desencadeia uma sequência de ações. Agências federais, como o Departamento de Defesa ou Departamento de Energia, firmam contratos e começam a gastar. À medida que os cheques saem, o banco do governo — a reserva Federal (FED) — limpa os pagamentos, creditando a conta bancária do vendedor em dólares digitais. Por outras palavras, o Congresso pode aprovar qualquer orçamento que escolha, e nosso governo já paga isso tudo criando dinheiro novo.

Foi exatamente assim que pagámos o primeiro New Deal. O governo não recolheu dinheiro — tributando e contraindo empréstimos — porque a economia entrara em colapso e ninguém tinha dinheiro (exceto os oligarcas). O governo contratou milhões de pessoas em vários programas do New Deal e pagou-lhes com uma infusão maciça de novas despesas que o Congresso autorizou no orçamento. Franklin Roosevelt não precisava de "encontrar o dinheiro", ele precisava de reunir os votos. Podemos fazer o mesmo com um New Deal Verde.

Devemos desistir de nossa obsessão de tentar "pagar" tudo com nova receita ou cortes nas despesas.

Apesar dos medos declarados pelos legisladores, os défices públicos maiores não são inerentemente inflacionários. Enquanto os gastos do governo não limitarem a capacidade produtiva total da economia — o que os economistas chamam "pleno emprego" —, isso não porá os preços fora de controlo. A inflação não é desencadeada pela quantidade de dinheiro que o governo cria, mas pela disponibilidade de recursos biofísicos que o dinheiro procura comprar — como terra, árvores, água, minerais, trabalho humano.

Os défices importantes

Em vez de falar sobre um défice orçamental numérico, deveríamos falar sobre os défices importantes, como os nossos défices em biodiversidade, água doce e em capacidade do nosso meio ambiente absorver a poluição. Deveríamos estar a tocar o alarme sobre nossos défices em educação, no tempo que conseguimos gastar com as nossas famílias, nos cuidados médicos que salvam vidas, no acesso a serviços de saúde mental e na própria esperança de vida. E o nosso défice de liberdade contra a violência do desemprego e dos empregos que pagam salários de fome?

O governo dos EUA nunca pode ficar sem dólares, mas a humanidade pode ficar sem recursos globais limitados.

Os que deram forma ao New Deal original compreenderam isto. James McEntree, diretor do Corpo de Conservação Civil, declarou em 1941 que o CCC “reverteu a política tradicional da Nação de usar ou desperdiçar os nossos recursos naturais a uma taxa mais rápida do que estavam a senr repostos e colocou o país na senda de um orçamento equilibrado de recursos naturais". (Enfase nossa.)

O governo dos EUA nunca pode ficar sem dólares, mas a humanidade pode ficar sem recursos globais limitados. A crise climática ameaça fundamentalmente estes recursos e os meios de subsistência humana que deles dependem.

Stephanie Kelton

Trabalhadores da Administração dos Trabalhos Civis na construção do Boulevard Merced Parkway, São Francisco, 1934, parte dos trabalhos públicos do New Deal
[New York Times / Getty Images]

A única conversa que vale a pena ter

Uma vez que compreendamos que o dinheiro é uma ferramenta legal e social, já não amarrada à falsa escassez do padrão-ouro, podemos concentrar-nos no que mais importa: o melhor uso dos recursos naturais e humanos para atender às necessidades sociais atuais e aumentar de forma sustentável a nossa capacidade produtiva, para melhorar os padrões de vida das gerações futuras.

É assim que um New Deal Verde também pode ajudar a colmatar as nossas divisões políticas. As comunidades rurais do Centro-Oeste têm tanto a ganhar economicamente com um Green New Deal como as áreas urbanas costeiras. Podemos garantir que os subsídios da Lei Agrícola (Farm Bill, um esquema de subsídios à agricultura já em vigor) ajudem os agricultores dos EUA a ganhar bem, alimentando simultaneamente o país, gerando energia renovável e capturando carbono no solo. Também podemos aumentar os trabalhos de manufatura e construção, adaptando edifícios, eletrificando o transporte e fortalecendo as nossas comunidades costeiras contra a elevação do nível do mar.

Que esse empreendimento visionário possa alinhar-se e apoiar os esforços da Transição Justa — liderados por comunidades de cor, mulheres e grupos indígenas afetados especialmente pela crise climática — também deve ser visto como uma oportunidade e não como um desafio ou um fardo.

Os políticos precisam de evitar o a tentação de perguntar: "Como vamos pagar isto?" e evitar a armadilha quando questionados. Uma pergunta melhor é: qual é o melhor uso do dinheiro público? Dá-lo aos 1% que não o gastam, aumentando as já perigosas diferenças de riqueza e rendimento? Ou investi-lo numa economia de baixo carbono do século XXI, reconstruindo a infraestrutura dos Estados Unidos, reforçando a resiliência e promovendo empregos bem remunerados em comunidades rurais e urbanas?

O maior fardo que estamos a passar para as gerações futuras não é a dívida, mas o nosso fracasso em responder à crise climática. Devemos ir além do fatalismo de pagar por um New Deal Verde, para que possamos chegar à conversa que mais importa: como é que um New Deal Verde protege os nossos recursos naturais finitos, encerra a crise climática e constrói uma economia do século 21 que funcione para todos?

Essa é a única conversa que o povo dos EUA deveria estar disposto a ter.


Stephanie Kelton é professora de Economia e Políticas Públicas na Universidade Stony Brook e ex-consultora económica da campanha presidencial de Bernie Sanders em 2016.

Andres Bernal é professor de estudos urbanos no Queens College e doutorando em Políticas Públicas e Urbanas em The New School. Ele é consultor da congressista por Nova Iorque Alexandria Ocasio-Cortez.

Greg Carlock é um pesquisador de dados e políticas de ação climática de Washington e consultor sénior de Data for Progress.

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