Teoria Monetária Moderna: o que é?

Anda por aí uma nova teoria económica, a Teoria Monetária Moderna (TMM). Nova, não exatamente. Os seus precursores vêm do início do século XX. Mas tem merecido a atenção de cada vez mais economistas, em especial dos que procuram um pensamento económico anti-neoliberal. Não sou o mais sabido neste tipo de coisas, e talvez por isso só soube dela recentemente, através de uma ligação de um artigo no blogue Ladrões de Bicicletas. A ideia essencial, muito bem-vinda nesta conjuntura, é que o estado, desde que seja soberano na emissão de moeda, não se tem que sujeitar à disciplina férrea da austeridade neoliberal e pode investir (quase) livremente na criação de emprego e em infraestruturas de betão e sociais. Mas será possível?

Fui encontrar um artigo de Jim Edwards e Theron Mohamed no Business Insider, de 2 de março de 2020, com este resumo:

  • A TMM é um grande desvio da teoria económica convencional. Propõe que os governos que controlam a sua própria moeda possam gastar livremente, pois podem sempre criar mais dinheiro para resgatar as dívidas na sua própria moeda.
  • A teoria sugere que os gastos do governo podem aumentar a capacidade da economia, enriquecer o setor privado, eliminar o desemprego e financiar programas importantes, como a assistência médica universal, o ensino gratuito e a energia verde.
  • Se os gastos geram um défice do governo, isto também não é problema. O défice do governo é, por definição, o superávit do setor privado.
  • O aumento dos gastos do governo não gerará inflação enquanto houver capacidade económica não utilizada ou mão-de-obra desempregada, propõe a TMM. Somente quando uma economia atinge restrições físicas ou naturais à sua produtividade — como o pleno emprego — é que a inflação acontece porque é então que a oferta falha em atender à procura, elevando os preços.
  • Os defensores da TMM argumentam que os governos podem controlar a inflação gastando menos ou retirando dinheiro da economia através de impostos.
  • Escusado será dizer que os economistas tradicionais têm alguns problemas com tudo isto.

Esta teoria parece influenciar as propostas políticas de Bernie Sanders na campanha presidencial dos EUA (saúde para todos, Green New Deal, ensino universitário gratuito), através de uma sua conselheira, Stephanie Kelton, professora de Economia da Universidade Stony Brook, que é uma das paladinas desta teoria, e também a conhecida congressista da esquerda do Partido Democrata por Nova Iorque, Alexandra Ocasio-Cortez.

Eis uma explicação do que é a TMM e por que as pessoas estão tão interessadas nela.

Os países podem criar e gastar o seu próprio dinheiro, o que não é, por si só, uma coisa má

No pensamento económico tradicional, imprimir dinheiro para resolver os problemas de um país é quase sempre má ideia, pois leva à inflação ou ao caos económico. Mas a TMM propõe que a criação de moeda deve ser uma ferramenta económica útil sem desvalorizar, por si só, a moeda.

Pelo contrário, os que querem que o estado corte nos gastos para equilibrar as contas, estancam o investimento, provocando um desempenho inferior da economia, desemprego e oportunidades perdidas. Em vez disso, diz a TMM, o estado deve ser capaz de criar todo o dinheiro que for preciso, desde que não crie inflação.

Parece que, sem dizer nada, os últimos ex-presidentes do banco emissor dos EUA, a Reserva Federal (FED), já aplicaram subrepticiamente esta teoria durante os seus mandatos.

Alan Greenspan, presidente da FED de 1997 a 2004, questionado sobre a solvência do sistema de Segurança Social, disse num testemunho perante o Congresso dos EUA que "não há nada que impeça que o governo federal crie tanto dinheiro quanto quiser para pagar a seja quem for." Explicou que o problema real é se haverá recursos ou ativos suficientes para suportar todas as compras que o dinheiro extra exigiria.

Já Ben Bernanke, que dirigiu a FED entre 2006 e 2014, teve a seu cargo o gigantesco resgate ao sistema bancário dos EUA, no valor de cerca de um bilião de dólares (bilião europeu igual ao 1 trilião dos EUA, 1012). Quando lhe perguntaram, no programa 60 Minutos, da CBS, se o dinheiro vinha dos contribuintes, respondeu que não, que foi impresso:

"Não é dinheiro dos impostos. Os bancos têm contas na FED, da mesma forma que você possui uma conta num banco comercial. Portanto, para emprestar a um banco, simplesmente usámos o computador para aumentar o tamanho da conta que eles têm com a FED. É muito mais parecido com imprimir dinheiro do que com empréstimos."

"Você está a imprimir dinheiro?" — perguntou o entrevistador.

"Bem, efetivamente. E precisamos de o fazer, porque a nossa economia está muito fraca e a inflação está muito baixa", diz Bernanke.

Stephanie Kelton

Stephanie Kelton é professora de Economia e Política Pública na Universidade Stony Brook, Nova Iorque. [Foto do seu site stephaniekelton.com]

No entanto, contrariamente às previsões da economia clássica, da impressão de tanto dinheiro novo para salvar os bancos não resultou inflação (um bilião de dólares — 1012 — é a estimativa mais baixa alguns pensam que a injeção chegou a 29 biliões).

Os estudantes de economia são avisados que a impressão de dinheiro pelos bancos centrais é muito perigosa e apontam-lhes os casos clássicos de hiperinflação: a Alemanha do tempo da República de Weimar, o Zimbabué de Robert Mugave, a Venezuela de Maduro.

Mas depois do estímulo de 2008 os EUA não desenvolveram inflação e o Japão mantém um défice de 240% do seu PIB, neste momento com inflação negativa. Segundo o artigo do Business Insider,

"os advogados da TMM afirmam que a criação de dinheiro novo é um evento muito comum e a hiperinflação é um evento relativamente raro.

O Japão, por exemplo, está atualmente com uma dívida pública próxima de 240% do PIB e não sofreu inflação descontrolada. O défice implica que o governo gastou uma quantia muito maior que o valor total da economia japonesa, mas não conseguiu receber receita tributária suficiente para cobrir estas despesas e, portanto, está a flutuar em dívidas. A taxa de inflação no Japão atualmente é de –0,29%. Isso é, inflação negativa.

O Japão não está sozinho. A FED dos EUA foi forçada a baixar as taxas de juros até próximo do zero, a fim de combater a deflação nos EUA, enquanto Bernanke adicionava um bilião às contas bancárias dos EUA. Muitos economistas previram que a crescente criação de dinheiro da FED iria levar o dólar à ruína. Mas isto não aconteceu.

Na Europa, Suécia, Dinamarca, Suíça e os 19 países da área do euro impuseram taxas de juros negativas para liberar dinheiro das contas bancárias, na esperança de gerar inflação. Ao mesmo tempo, o Banco Central Europeu regou o continente com 2,5 biliões de euros em "quantitative easing" (dinheiro novo, mas com um nome sofisticado).

Mas a inflação nunca aconteceu.

Assim, os teóricos da TMM argumentam que a mera criação de dinheiro por si só não pode ser a causa da inflação. Deve ser outra coisa."

No caso do Zimbabué, o regime de Robert Mugabe resolveu tirar as terras dos fazendeiros brancos e distribuí-las aos guerrilheiros da Zanu, por volta do ano 2000. Estes sabiam andar aos tiros, mas nada de agricultura, e a produção agrícola, que era a grande riqueza da nação, afundou-se. Para a ruína contribuíram também uma seca e as sanções internacionais. De exportador agrícola, o Zimbabué passou a importador de alimentos.

Para os adeptos da TMM, a inflação galopante, depois hiperinflação, que se seguiu resultou, não da emissão de dinheiro em si, mas da emissão de dinheiro sem capacidade produtiva. O estado criou dinheiro e a sociedade não pôde produzir bens que esse dinheiro comprasse, e o resultado foi a inflação.

O caso da Alemanha do período de Weimar é descrito de forma semelhante. Tendo perdido o I Guerra Mundial, a Alemanha tinha a economia de rastos. Mas os aliados exigiram o pagamento de indemnizações enormes, muito superiores ao que o país poderia pagar. Assim, o estado imprimiu dinheiro, muito para lá da capacidade produtiva da nação, e o resultado foi a hiperinflação

É a falta de bens — ou trabalho, ou capacidade — que desencadeia a inflação, argumenta a TMM.

Diz o artigo do Business Insider:

"Por isso não houve inflação no Ocidente nos últimos 10 anos. Todo este dinheiro extra da FED e do BCE foi usado, tornando a recessão um pouco menos terrível do que poderia ter sido. Ainda existem pessoas sem emprego e muita 'capacidade' não utilizada nos EUA e na Europa. E enquanto isto continuar, é improvável que a inflação aconteça.

Para a TMM, isto levanta uma questão.

Porque é que o estado não aumenta os gastos até que não haja mais desemprego? Um país poderia fornecer educação universitária gratuita, construir uma rede de energia verde, fortalecer as suas forças armadas, construir hospitais ou reconstruir a sua infraestrutura de transporte, se souber que pode gastar o que for necessário até ficar sem trabalhadores ou recursos para fazer o trabalho.

Somente quando a oferta de mão-de-obra — ou material — se tornar restrita, o governo estará a fazer subir o preço de tudo, argumenta a TMM.

De facto, é exatamente isto que a TMM propõe que o estado faça: canalizar dinheiro para a economia, levando as empresas a contratar mais pessoas e consumidores para exigir mais bens e serviços.

"A existência de desemprego é uma evidência clara do facto de que os gastos líquidos do estado são demasiado pequenos para levar a economia ao pleno emprego", escreveu Phil Armstrong, do York College, em 2015. "[O estado] deve usar sua posição como emissor monopolista da moeda para garantir o pleno emprego."

Isto abre a possibilidade de políticas despesistas como a construção de uma infraestrutura de energias renováveis, grandes investimentos na economia verde, no Serviço Nacional de Saúde ou no ensino.

Mas não é um saco sem fundo. Quando chega ao pleno emprego, o estado tem que parar de aumentar os gastos, senão está a provocar inflação.

No fim de contas, é o mesmo que Alan Greenspan disse: Não é o dinheiro que é o problema. É saber se a economia tem pessoas e bens suficientes para suprir a procura que o dinheiro gera.

A TMM tem também uma teoria curiosa sobre os impostos, que se tornam ferramentas monetárias anti-inflacionistas. Se houver muito dinheiro na economia, o governo deve tributá-lo, tirando parte dele da circulação. Ao contrário dos economistas tradicionais, que dizem que a atividade produtiva cria o dinheiro, que o estado depois vai buscar em impostos para se financiar, a TMM diz que o estado é que cria o dinheiro, que depois é adquirido pela sociedade por meio da sua atividadde produtiva. Quando o estado recebe impostos, está literalmente a destruir dinheiro.

Compreende-se assim que, ao tirar dinheiro da circulação através de impostos, o estado esteja a refrear a inflação, pois diminui a massa monetária.

(Na prática, no entanto, poderá ser politicamente difícil um governo aumentar os impostos precisamente quando os preços estão a subir. Além disso, mexer nos impostos é complicado e demorado, pois implica atividade legislativa, enquanto a inflação pode disparar rapidamente.)

O circuito monetário é muito diferente para a economia clássica e para a TMM. Para a primeira, o estado recolhe receita da atividade produtiva, que usa para financiar as suas atividades: pagar aos polícias, soldados, burocratas, cantoneiros de estradas, recoletores de lixo. O orçamento do estado compara-se a governar uma casa: o estado não pode gastar mais dinheiro que aquele que recebeu, senão terá que contrair empréstimos e pagar juros sobre eles.

Para a TMM, a metáfora da casa é uma história mal contada. O estado tem que criar primeiro dinheiro para poder gastá-lo e só depois dele estar em circulação é que pode taxá-lo.

As razões pelas quais um estado soberano não é uma casa são fundamentais para a TMM. Diz o artigo do Business Insider:

  • O estado pode criar seu próprio dinheiro e definir o preço pelo qual este dinheiro é disponibilizado aos mercados. Portanto, possui poder de monopólio sobre os preços subjacentes fundamentais de tudo na economia. Quaisquer dívidas denominadas na sua própria moeda podem ser pagas com a sua própria moeda ou podem ser liquidadas com a criação de dinheiro novo nessa moeda.
  • O estado cria dinheiro para gastá-lo. O estado não impõe impostos para encontrar dinheiro, (...) "gastar" e "criar" também podem ser a mesma coisa, na estrutura da TMM.
  • Os impostos valorizam o dinheiro. O dinheiro só é valioso quando um estado tem o poder de ordenar que os impostos sejam pagos na moeda em que opera. Se todos tiverem que pagar impostos, todos precisam de ganhar dinheiro. Um estado pode criar todo o dinheiro que quiser e também pode tributar todo o dinheiro que quiser, mantendo os preços estáveis. O estado, portanto, tem duas alavancas para impulsionar ou retardar a economia — pode variar impostos e gastos, para cima ou para baixo, em conjunto ou independentemente.
  • O estado não precisa equilibrar os seus livros como faz uma família. Os estados criam e gastam dinheiro, mas não tributam 100% desse dinheiro. É por isto que, a qualquer momento, um estado estará com défice. O défice é apenas a diferença entre todo o dinheiro que o estado gastou e todos os impostos coletados. Um défice significa que o setor privado — você e eu — está a manter a diferença. Portanto, se o estado está em défice, o outro lado da moeda é que o setor privado está em excedente. Da mesma forma, se o estado está em excesso, isto significa que o privado está em défice — usando dívidas ou as suas economias para sobreviver, porque os pagamentos totais ao estado são mais do que os gastos do estado.

Os défices do estado podem, assim, ser vistos, não como problemas, mas como soluções.

Andar a sufocar a economia para equilibrar as contas do estado não faz sentido, quando o estado tem a capacidade de criar dinheiro e eliminar os seus défices a qualquer altura, sem aumentar os impostos..

O artigo do Business Insider cita o caso da União Europeia:

O preconceito contra défices pode ser prejudicial. O Pacto de Estabilidade e Crescimento da União Europeia exige que os membros não corram um défice orçamental acima de 3% do PIB ou assumam dívidas superiores a 60% do PIB. Os defensores da TMM argumentam que estas restrições impediram a Itália, Irlanda, Grécia e Espanha de gastar o suficiente para mitigar as suas crises económicas.

"Elas são a principal causa do desemprego ultra-alto e do baixo desempenho em geral", disse Warren Mosler, gestor de hedge funds e um dos economistas proponentes da TMM. Ele "propôs [à UE] aumentar o limite de 3% para 8% imediatamente e depois usar o limite como uma ferramenta política para ajustar a procura agregada daqui em diante".

"Há mais de 5% do excesso de capacidade que pode ser aproveitado imediatamente e, à medida que o desemprego caísse, toda a 'experiência' do euro seria declarada um sucesso retumbante", acrescentou.

Num relatório sobre a área do euro em 2014, o Fundo Monetário Internacional (FMI) observou que as restrições podem desencorajar o investimento público e a recuperação do investimento privado "foi mais fraca do que na maioria das recessões e crises financeiras anteriores". Isso foi mais uma prova de que "a austeridade fiscal... é má para todos os setores", escreveu William Mitchell, outro dos adeptos.

Os especialistas da TMM afirmam que estes casos demonstram os riscos da política económica convencional e sua aversão a défices — crescimento lento, desigualdade crescente, dívida de longo prazo com pagamentos de juros prejudiciais e risco perpétuo de colapso económico.

Problemas da TMM

Os objetores da TMM afirmam que, mesmo que os pontos fundamentais da teoria estejam corretos (o que contestam), a moeda de um estado que a levasse à prática poderia ser vulnerável à especulação por parte dos mercados internacionais, que poderiam especular contra ela ou decidir aumentar os riscos da sua dívida. Podia acontecer também fuga de capitais.

Os adeptos da TMM não negam estes perigos, respondendo que isso apenas significa que as decisões devem ser tomadas com cuidado e que a TMM não é uma panaceia e tem que respeitar os seus limites.

Outra das vulnerabilidades é um choque do lado da oferta, tal como aconteceu com a privação súbita de petróleo em 1973, que pode fazer aumentar subitamente os preços e aumentar o desemprego.

Se o estado for muito dependente da dívida em moeda estrangeira, pode não ter margem de manobra ao depreciar a moeda, pois isso torna a dívida difícil de pagar.

É este o tipo de objeções que o Nobel da economia Paul Krugman põe a esta teoria: a execução de enormes défices poderia levar os bancos a recusarem-se a emprestar a taxas de juros razoáveis, criando uma quantidade insustentável de dívida e provocando inflação, à medida que o preço do crédito sobe e os investidores fogem.

Ao entrar na grande crise económica do corinavíris, certamente iremos ouvir falar mais deste debate.

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