Avatar ou a suspensão da incredulidade

Avatar, filme de ficção científica. Bem, ficção científica é o filme em si.  É uma revolução na forma de contar uma história. Doravante todo o filme pode ser criado em realidade virtual. Avanços no software de animação tornaram possível o santo graal dos animadores há muitos anos: movimentos naturais.

Até agora era possível distinguir as cenas virtuais das cenas naturais. Os movimentos eram desajeitados e pouco elegantes. Já não. Quer dizer que no cinema, de agora em diante, o sonho já não se distingue da realidade.

A namorada Na'vi do herói

O resultado é um filme extremamente belo. A tecnologia abraça a nossa imaginação, leva-nos sem esforço a paisagens onde nenhum obstáculo impede a suspensão da descrença. Sonhamos aquela realidade, não queremos acordar.

Estive a ver o software responsável por este milagre. Pertence à  Autodesk, fabricante do Autocad, o programa responsável pela maioria dos projectos de engenharia e arquitectura. O programas de 3D, modelação e animação são Maya, MotionBuilder e MudBox. As demonstrações em vídeo são impressionantes. Uma corda pendurada oscila graciosamente, nada diferente de uma corda real. Panos flutuam com naturalidade no vento. Um pedaço de matéria gorda vibra com o realismo do corpo de qualquer pessoa obesa.

Avatar é um desses filmes. Depois dele, o cinema já não é o mesmo.

A história

Já a história é menos interessante. Não consegue escapar totalmente ao estigma made in Hollywood. Para os velhos conhecedores de Ficção Científica como eu, Hollywood é uma maldição particularmente penosa que destruiu tudo em que pegou. Para Hollywood, o público é estúpido e inculto e todo o que seja feito para ter sucesso comercial tem que ser estupidificado e abrutalhado. Vem à memória a Estrela da Morte da Guerra das Estelas explodindo com fragor instantâneo, apesar de estar a milhares de quilómetros de distância no meio do vácuo. Vem à memória o clássico romance Starship Troopers de Robert Heinlein, que discute de forma pouco ortodoxa o uso da força militar numa sociedade democrática e foi transformado como filme, essencialmente, num panfleto nazi.

David Cameron teve extraordinária liberdade para fazer este filme, devido ao sucesso de Titanic. Nenhum outro cineasta pôde manter os poderes sinistros do conformismo dos estúdios à distância durante tanto tempo e depois de ser gasto tanto dinheiro.

Fez, essencialmente, o filme que quis. Escreveu-o ele próprio. Esperou o tempo necessário para ter a tecnologia para o fazer, gastou o dinheiro que o projecto exigia. Isto é extremamente raro em Hollywood ou em qualquer outro lugar.

Os Na’vi

Avatar é na essência um conto New Age. No planeta Pandora, num dos sóis de Alfa do Centauro, vive um povo em harmonia com a natureza, numa espécie de Jardim do Éden. Não têm tecnologia mas têm poderes espirituais, vivem ligados à sua deusa-natureza e em harmonia com o seu meio. Têm três metros de altura, são azuis e as mulheres têm silhuetas próprias de quem acabou de posar para a Vogue. O seu mundo é perigoso mas nunca ninguém se magoa nem está doente, nem sequer parece envelhecer. Talvez as sacerdotisas tratem disso em contacto com a deusa, talvez matem os fracos e os doentes. O filme não mostra.

Sendo um filme New Age do século XIX, a harmonia com a natureza é apresentada como uma rede neural tipo Internet a que os nativos se ligam. Os Na’vi (os gigantes azuis) têm também uma espécie de tomada USB, uma ligação neural que usam ao montar e controlar os seus cavalos com demasiadas patas ou dragões voadores. Não é feito qualquer esforço para justificar este arranjo do ponto de vista da evolução das espécies.

É uma sociedade ideal, um Jardim do Éden, fruto dos problemas que hoje estão em discussão no nosso planeta. Mas a ideologia é o romantismo anticientífico, a nostalgia dos tempos em que a tecnologia ainda não teria corrompido a pretensa relação pacífica e harmoniosa entre a nossa espécie e a natureza, desta vez projectada num planeta distante, numa estrela aqui perto de nós.

Os humanos

Os humanos, pelo contrário, são feios, porcos e maus. O herói, um fuzileiro desempregado com a espinha partida, aceita um contrato para Pandora para tentar recuperar o uso das pernas. Em 2154 ainda não há remédio para as espinhas partidas? É uma questão de dinheiro. Presume-se que o planeta mergulhou numa espécie de caos político e militar. Talvez.

Leva seis anos a chegar a Alfa do Centauro em animação suspensa, no que parece ser uma nave fotónica ou movida a antimatéria de aceleração constante. É uma performance respeitável, cobrir quatro anos-luz em seis anos. Mas seis anos em tempo da nave correspondem de certeza (não sei fazer as contas) a várias dezenas de anos em tempo do mundo, isto se a Teoria da Relatividade se mantiver verdadeira em 2154. Ou estamos a falar de seis anos de tempo do mundo? Nesse caso, provavelmente decorreria tão pouco tempo de nave que a animação suspensa seria desnecessária…

Os humanos em Pandora pretendem um mineral raríssimo chamado Unobtainium (é piada, claro). Não é nada original, mas já vi histórias piores. Porém, uma sociedade capitalista predadora como a que parece imperar na Terra teria que esperar pelo menos duas vezes o tempo de viagem para pôr as mãos nele. Se a viagem durasse 50 anos, esperaria 100, se durasse 80, esperaria 160. Não parece um calendário aceitável para uma sociedade capitalista predadora.

O mecanismo de controle do clone Na’vi, o avatar, implica essa grande ilusão da ficção científica: a telepatia. Os mais sérios cultores do género não resistiram a aplicar  este maravilhoso truque, tão útil a qualquer história. Eu próprio, há muitos anos, quis muito acreditar na telepatia. Há só um problema: nada do que se sabe sobre a forma como funciona o nosso cérebro permite antever que tal coisa seja alguma vez possível. Adiante. Mas todas as capelinhas New Age adoram a ideia, é claro.

Entre os humanos abundam os clichés da pseudo-ficção científica de Hollywood. O gestor capitalista apalermado com fato e gravata, a cientista bem intencionada (Sigourney Weaver fuma e tudo, boas notícias para a Tabaqueira, daqui a 140 anos o negócio continua a dar), a rapariga de óculos Rayban que adora pilotar helicópteros, o general dos Marines vilão. Nenhum dos personagens tem qualquer profundidade psicológica, não passam de cartoons.

Os marines

Os coitados dos Marines são os pior tratados nesta saga. Tenho pena deles. O que é que James Cameron ou Hollywood têm contra os Marines? Lembro-me do Alien II (o único que vi, recusei-me a ver os outros). Os idiotas dos Marines descem sem qualquer preparação, inteligência, coordenação, armas adequadas, táctica ou estratégia, para o covil dos Aliens, ao encontro da morte. Aí ainda tínhamos pena deles, visto os Aliens serem criaturas apresentadas como totalmente maléficas. Agora fazem a mesma coisa, mas contra os angélicos Na’vi. Porque querem que os odiemos tanto?

Os Marines não são nenhuns meninos de coro, mas não são uma tropa maléfica. São provavelmente um dos corpos militares mais capazes que já existiram na história da humanidade. A integração de tecnologia, inteligência e informação nas suas operações não tem par. O azar deles é que a operação militar tradicional, o que um general precisamente dos Marines, Tony Zinni, caracteriza como matar e escavacar, não parece dar bons resultados políticos no século XIX, pelo que, segundo ele, os militares se deviam preparar mais para operações diferentes da guerra. (Fiz aqui uma crítica do livro do general Zinni).

O ódio aos Marines parece resultar da frustração dos norte-americanos com os resultados das guerras do Iraque e do Afeganistão. Mas deviam preocupar-se menos com  os cabeças de jarro e mais com quem os comanda.

A tecnologia

Chego à parte pior do filme. Toda a tecnologia mostrada, em particular a tecnologia militar, demonstra a mais confrangedora falta de imaginação. Que diabo, estamos em 2154! Imaginem a nossa tecnologia actual, comparada com a que existia há 144 anos, em 1865! Máquinas a vapor, telégrafo, barcos à vela…

A tecnologia humana neste filme não vai longe. Abundam os helicópteros com dois rotores de hélices contra-rotativas encaixadas num anel, uma coisa que poderá ser comum lá para 2030, o mais tardar, e poderá ser um desenvolvimento do V-22 Osprey já operacional. Várias espécies de veículos de transporte usam a mesma tecnologia. Não me lembro de ver drones em parte nenhuma, quando já são usados hoje em dia e seriam a escolha óbvia para invadir uma ecologia hostil.

Nem drones terrestres, câmaras e sensores remotos, drones aéreos de infantaria e toda a quinquilharia que está já hoje mesmo a ser desenvolvida e aplicada. Vê-se uma versão crua das armaduras auto-propulsadas, hoje também em estudo, imaginadas por Heinlein para o seu Starship Troopers em 1960 e que o idiota do Paul Verhoeven não conseguiu criar para o seu filme execrável do mesmo nome. Estas armaduras têm mais a ver com os veículos bípedes d’O Império Contra-Ataca. A versão de Heinlein seria muitíssimo mais elegante – e mortífera.

A opção óbvia, quanto a mim, era criar veículos, armas e máquinas radicalmente diferentes de tudo o que existe hoje, mesmo que os seus princípios técnicos não fossem compreendidos pelo espectador nem mesmo explicados no filme. Até 2154 há muito tempo para criar coisas incompreensíveis pelo comedor de pipocas contemporâneo.

Daqui a 144 anos, estes militares mostram uma letalidade ridícula, inferior a uma coluna actual da 82ª Aerotransportada. Mas também, se fossem mais eficientes, como poderiam ser derrotados por uma tribo de homens azuis com arcos e flechas, montados em dragões voadores?

Não se deve levar demasiado a sério estas maquinetas. Foram concebidas, não para darem credibilidade ao filme, mas com vista ao mercado do merchandising. Provavelmente têm a forma e o aspecto que têm para corresponder às expectativas do imenso mercado dos brinquedos e modelos. Milhões destas coisas preparam-se para invadir as prateleiras das lojas, junto com jogos para todas as plataformas, incluindo os telemóveis. As receitas de bilheteira e DVDs são apenas uma fatia do bolo global.

Conclusão

Lá estou eu, com a minha mania de desligar a suspensão da incredulidade, necessária para desfrutar destas fantasias sem sobressaltos. Apesar de tudo o que eu disse, Avatar é um filme magnífico, uma fábula deliciosa embora ingénua, um sonho extremamente belo em que as imagens sonhadas têm a força das imagens reais. Vão ver, não percam.

Mesmo eu, ainda tenho que ir ver a versão 3D no cinema. O que vi até agora foi uma versão pirata em DVD. Espero ser um pouco mais deslumbrado.

Vão por mim, não percam. O cinema jamais será o mesmo!

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