É assim que uma sociedade morre

Umair Haque é um consultor económico baseado em Londres. Fez parte da sua carreira como consultor de sucesso, mas, no seguimento de uma crise de saúde grave, viu a luz. Não viu qualquer divindade, mas percebeu que o capitalismo que tinha andado a promover era um sistema predador e insustentável. De então para cá, continuou a ser um consultor de sucesso, explicando como o capitalismo é um sistema predador e insustentável. O conceito chave do seu pensamento é a eudaemonia, que se pode traduzir por felicidade, bem-estar ou, no significado literal dos gregos, ser influenciado por um bom espírito, ou daemon. Uma organização social não serve para maximizar o lucro ou o crescimento do PIB, mas para incremento do bem-estar social, a eudaemonia. Possivelmente, essa ênfase corresponde aos modernos conceitos de índice de desenvolvimento humano que pretendem exprimir de forma mais coerente os fins da sociedade. O seu site é Eudaemonia & Co.

Este artigo, This is How a Society Dies, é algo chocante no diagnóstico impiedoso que faz das sociedades dos EUA e do Reino Unido. Data de 2019, o que quer dizer que não inclui anda o desastre da pandemia e da revolta anti-racista sequente ao assassínio de George Floyd. Muito se pode objetar, sobretudo sobre as lentes um tanto rosadas com que o autor vê a Europa. Mas é um texto de leitura obrigatória, para quem procura vislumbrar o essencial, sob a avalanche do trivial. Talvez a catástrofe do Covid-19 e a revolta anti-racista tenham melhorado as hipóteses de travar a espiral mortal de que fala Umair Haque, talvez não. Será a eleição de Joe Biden sinal de um redressement, ou será apenas um sobressalto na contínua descida para o abismo? Ninguém sabe, evidentemente.

Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha são exemplos de compêndio de um novo e terrível fenómeno: nações ricas que se autodestroem e se tornam em países pobres e falhados.

Quando peço aos meus amigos europeus que nos descrevam — os norte-americanos, os britânicos, aos quais chamarei anglo-americanos neste ensaio — eles abanam a cabeça suavemente. E três temas emergem, repetidamente. Dizem que somos irrefletidos. Dizem que somos egoístas e arrogantes. E dizem que somos cruéis e brutais.

Não posso deixar de pensar que há aqui mais do que um grão de verdade. Que até estão a ser gentis. A sociedade anglo-americana é agora o exemplo mais proeminente do mundo de autodestruição voluntária. A sua loucura e estupidez de fazer cair o queixo é espantosa para o resto do mundo.

A dura verdade é essa. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha não estão só a entrar em colapso a cada dia que passa... nem estão só a escolher entrar em colapso a cada dia que passa. Estão a entrar numa espiral mortal, da qual provavelmente não há retorno. Sim, realmente. A simples economia dita isso, assim como aconteceu com a União Soviética — e eu já falo nela.

Umair Haque

Umair Haque

E, no entanto, o que é ainda mais estranho e grotesco do que isso é que... bem... ninguém parece ter notado. Há um silêncio ensurdecedor de especialistas, elites, colunistas e políticos sobre a autodestruição conjunta do mundo anglo-americano. Ninguém parece ter notado: as únicas duas sociedades ricas do mundo com expectativa de vida em queda, rendimento, poupança, felicidade, confiança — todos os indicadores sociais que se pode imaginar — são os EUA e a Grã-Bretanha. Não é uma das coincidências mais improváveis ​​da história o facto dos Estados Unidos e a Grã-Bretanha estarem a entrar em colapso de formas estranhamente semelhantes, exatamente ao mesmo tempo. É uma relação. O que liga os pontos?

Deixem-me fazer uma pausa para observar que a primeira crítica dos meus amigos europeus — que somos irrefletidos ​​— é, consequentemente, precisa. Nem sequer somos capazes de perceber — muito menos de entender — o nosso colapso gémeo. Toda a nossa classe do pensamento e da liderança parece nem ter notado, quais idiotas a sorrir e dançar, enquanto incendiam a sua própria casa. Estão simplesmente a fingir que isto não está a acontecer — que o mundo de língua inglesa não está rapidamente a tornar-se algo parecido com a nova União Soviética.

Então, o que causou esse colapso conjunto? Como é que o mundo de língua inglesa acabou como a nova União Soviética? Para entender esse ponto, considere o facto de que provavelmente acha que isto é um exagero. Mas é uma realidade empírica. A União Soviética estagnou por trinta anos. Os Estados Unidos estagnaram por cinquenta e a Grã-Bretanha por vinte. A União Soviética não conseguia fornecer o básico aos seus cidadãos — daí as famosas filas do pão. Nos EUA, as pessoas pedem dinheiro para pagar insulina e antibióticos, comida decente não está disponível em vastas áreas do país, e reforma e pagamento de dívidas são impossibilidades: assim como na União Soviética, o básico está a tornar-se indisponível e inacessível. Que acontece? As pessoas morrem.

(O mesmo se aplica à Grã-Bretanha. Nas duas sociedades, mais de 20% das crianças vivem na pobreza, a classe média implodiu e a mobilidade ascendente praticamente desapareceu. Essas são estatísticas soviéticas — letalmente reais.)

A política também se tornou um assunto soviético esclerótico. As sociedades anglo-americanas já não são democracias em nenhum sentido sensato da palavra. São dirigidas por e para uma classe de elites, que não querem saber, literalmente, se a pessoa média vive ou morre. Nos Estados Unidos, essa classe é um círculo bizarro, de um lado, de formados em universidades de topo que fingem ser gente comum porreiraça, como Ted Cruz, e do outro, formados em universidades de topo que fingem ser benfeitores como Zuck e os de Silicon Valley. Na Grã-Bretanha, são os notórios moços das escolas "públicas", como Eton, Oxford e Cambridge.

Isso leva-me à arrogância. O que surpreende nas nossas elites é o quão... arrogantes são... e quão ignorantes são... exatamente ao mesmo tempo. A Finlândia acabou de eleger uma mulher de 34 anos como primeira-ministra dos social-democratas. A Finlândia é uma sociedade que supera a nossa em todos os sentidos — todos os sentidos — imagináveis. A felicidade finlandesa é muito, muito maior — assim como a expectativa de vida, a mobilidade, a economia, o rendimento real, a confiança, entre outros. E, no entanto, em vez de aprender alguma coisa com um milagre como esse, as nossas elites professam conhecer uma forma melhor... enquanto conduzem as nossas sociedades à derrocada. Quê? Hubris seria um eufemismo. Não acho que o idioma inglês tenha uma palavra para essa combinação estranha e fatal de arrogância no meio da ignorância. Talvez estupidez convencida se aproxime.

E, no entanto, as nossas elites conseguiram uma tarefa vital — o que um Émile Durkheim poderia ter chamado "reprodução social". Conseguiram reproduzir a sociedade à sua imagem. Que é que o anglo-americano médio aspira ser, fazer, ter? Ser rico, poderoso, descuidado, egoísta e burro, agora isso, principalmente. Como sociedades ou culturas, já não valorizamos a aprendizagem, o conhecimento, a magnanimidade ou as coisas grandes e nobres. Fazemos chover milhões em cima de estrelas de TV e milhares de milhões em "banqueiros investidores". As pessoas comuns tornaram-se pequenos microcosmos das aspirações e normas das elites — não são curiosas, empáticas, decentes, humanas, nobres e gentis, não buscam sabedoria, verdade, beleza, significado, propósito. Tornamo-nos pessoas cruéis, indecentes, obscenas, comicamente superficiais e surpreendentemente tolas.

Isto não é nenhum tipo de diatribe. É uma verdade objetiva e facilmente observável. Quem mais é que, numa sociedade rica, nega assistência médica e aposentação aos seus vizinhos? Ninguém. Quem mais nega a educação dos seus filhos? Ninguém. Quem mais se nega a cuidar de crianças e idosos? Ninguém. Quem mais recusa redes de segurança, oportunidades, mobilidade, proteção, economia, rendimentos mais altos? Ninguém. Literalmente, ninguém no planeta Terra quer vidas piores sem ser nós. Somos os únicos no mundo que frustramos o nosso próprio progresso social repetidas vezes — e ainda aplaudimos.

Como é que nos tornámos assim? Como é que nos tornámos pequenos microcosmos das nossas elites arrogantes, ignorantes e incrivelmente estúpidas? Porque estamos eternamente a lutar pela autopreservação. A vida tornou-se uma espécie de combate brutal até a morte. Por empregos, por cuidados de saúde, por dinheiro, pelos mínimos pedaços de recursos necessários para viver. Acordamos e combatemos uns com os outros por essas coisas, uma e outra vez. É isto o que nossas vidas representam agora — combate de gladiadores. Entretanto, as elites e e bilionários sentam-se e desfrutam, não apenas do espetáculo — mas também dos ganhos.

Quem luta pela autopreservação não pode cuidar de mais ninguém. Se eu pedir ao britânico ou americano comum que considere pagar os cuidados de saúde, educação, assistência a idosos, assistência à infância da sua sociedade, cada vez mais, a resposta é: LOL. Nos EUA, sempre foi assim. Porquê? O motivo não poderia ser mais simples. As pessoas nem conseguem cuidar de si próprias e dos seus. Como é que poderiam cuidar de mais alguém — e muito menos de toda a gente?

A pessoa média está a viver mesmo no limite. Não no limite do sonho da classe média ou de algo ainda melhor. Mas à beira da pobreza e da miséria. Lutam para pagar contas básicas e nunca conseguem sobreviver. Não podem dar-se ao luxo de educar os filhos, de aposentar-se ou de aposentar-se e ter assistência médica ao mesmo tempo, e assim por diante. Deixem-me repetir: a pessoa comum não pode cuidar de si mesma e dos seus — então, como poderia ela cuidar de mais alguém e muito menos de toda a gente?

Uma maneira mais técnica e formal de dizer isso é: as nossas sociedades tornaram-se agora pobres de mais para pagar bens públicos e sistemas sociais. Mas bens públicos e sistemas sociais são o que faz uma sociedade moderna e rica. O que é uma sociedade sem assistência médica decente, escolas, universidades, bibliotecas, educação, parques, transporte, comunicação social — disponível para todos, sem uma "dívida" prejudicial à vida? Não é uma sociedade moderna. Mas cada vez mais, também não o são os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha.

O que faz com que as sociedades europeias — que são muito, muito melhor sucedidas do que as nossas — serem bem-sucedidas é que as pessoas não estão a lutar pela autopreservação e, portanto, são capazes, em vez disso, de cooperar para se melhorarem umas à outras. Pelo menos não tanto e de forma tão letal como nós. Eles têm garantias de sobrevivência. Portanto, têm recursos para compartilhar com os outros. Não precisam de lutar pelas mesmas coisas que nós tiramos uns aos outros — porque simplesmente as oferecem uns aos outros. Isso manteve-os mais ricos que nós também. O americano médio agora vive na pobreza efetiva — incapaz de pagar assistência médica, habitação e contas básicas. Tem que escolher. Os europeus não precisam, exatamente porque investiram uns dos outros — e esses investimentos tornaram-nos mais ricos que nós.

Estamos presos numa espiral mortal agora. Um ciclo vicioso do qual provavelmente não há escapatória. A pessoa comum é pobre de mais para financiar as próprias coisas — as únicas coisas — que lhe podem dar uma vida melhor: assistência médica, educação, assistência à infância e assim por diante. A pessoa média é pobre de mais para financiar bens públicos e sistemas sociais. A pessoa comum agora é pobre de mais para poder dar algo a mais alguém, investir qualquer coisa em mais alguém. Vive e morre endividado, para começar — então, o que resta para devolver, poupar e investir?

Uma maneira mais técnica e formal de colocar tudo isso: Os europeus distribuíram seu superavit social de forma mais justa do que nós. Não deram todos os ganhos a bilionários idiotas como Zucks e vigaristas como Trump. Mantiveram as classes média e trabalhadora em melhor situação do que nós. Como resultado, essas classes média e trabalhadora foram capazes de investir em bens públicos e sistemas sociais expansivos. Essas coisas — boa saúde, educação, transporte, comunicação social — mantiveram a vida a melhorar para todos. Esse círculo virtuoso de investir um superavit social razoavelmente distribuído criou um verdadeiro milagre económico ao longo de apenas uma vida humana: a Europa emergiu das cinzas da guerra para desfrutar dos mais altos padrões de vida da história.

Isto está a mudar na Europa, com certeza. Mas isto ocorre porque a Europa está a torna-se americanizada, anglicizada. Há uma geração de líderes suficientemente tolos para seguir a nossa liderança — agora lembrem-se da maior lição da história europeia, que é uma das maiores lições da história, ponto final. Essa lição é assim.

  1. As pessoas que são postas a viver bem no limite devem lutar entre si pela autopreservação. Mas essas pessoas não têm mais nada para dar umas às outras. E assim, uma sociedade entra numa espiral mortal de pobreza — como a nossa.
  2. As pessoas que não conseguem ter dinheiro para o dia-a-dia não podem investir em si mesmas — quanto mais noutros. Uma sociedade assim precisa de se alimentar de quaisquer bens públicos e sistemas sociais que tenha, apenas para sobreviver. Nunca desenvolve ou expande novos.
  3. O resultado é que uma sociedade inteira se torna cada vez mais pobre. Incapaz de investir em si ou entre si, a única saída real das pessoas é lutar entre si pela autopreservação, roubando os direitos, privilégios e oportunidades dos seus vizinhos — em vez de poder dar novos direitos, privilégios e oportunidades a alguém. Porquê dar saúde e educação a todos quando você não consegue pagar a sua própria? Como é que iria fazer isso?
  4. A sociedade afunda-se numa espiral de extremismo e fascismo, pois a crescente pobreza traz ódio, violência, medo e raiva. A confiança diminui, a democracia é corroída, os laços sociais são rompidos e as únicas normas que restam são as fascistas darwinistas: os fortes sobrevivem e os fracos devem perecer.

(Deixe-me gastar um ou dois segundos nesse último ponto. À medida que ficam mais pobres, as pessoas começam a desconfiar umas das outras — e depois odeiam-se. Porque não? Afinal, a dura realidade é que estão mesmo a lutar uns com os outros pela existência, pelos recursos básicos da vida, como remédios, dinheiro e comida.

À medida que a desconfiança se torna ódio, as pessoas que não têm nada a dar, de qualquer forma, acabam a não ter motivos para esperar devolver alguma coisa a alguém. Porquê dar algo àqueles contra quem lutamos, todos os dias, pelos recursos mais escassos necessários para viver? Porquê dar alguma coisa àqueles mesmos que nos negaram assistência médica e educação? A única coisa que interessa é mostrar que os vencemos por ter uma casa maior, um carro mais rápido, uma esposa ou marido mais bonito?)

É assim que uma sociedade morre. Essa é a espiral da morte de uma sociedade rica. Em termos técnicos, é assim: Um superavit social não é distribuído de forma equitativa. Isso deixa a pessoa comum demasiado pobre para investir algo na sociedade. Luta só pela autopreservação, e o que está em jogo é vida ou morte. Mas essa batalha, por si só, gera ainda mais pobreza. Porque sem investimento, cuidado, nutrição — nada pode crescer. Tendo-se tornado pobre, a pessoa média só se torna mais pobre — porque nunca terá bens públicos ou sistemas sociais decentes, muito menos direitos e privilégios, empregos, carreiras e trajetórias a que aspirar e caminhos que permitam lá chegar.

Uma sociedade de pessoas tão pobres que não têm mais nada para investir umas na outras está a morrer. Vai da prosperidade à pobreza, do otimismo ao pessimismo, da coesão à desconfiança e ao ódio, da paz à violência — à velocidade da luz, no espaço de uma geração. Essa é a história dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha hoje, assim como foi a União Soviética, ontem, e da Alemanha de Weimar, antes.

Pode-se ver como uma sociedade morre — com uma clareza horrível e brutal — na autodestruição os Estados Unidos e da Grã-Bretanha. O fel odioso do Trumpismo, o ódio quase escondido do Brexit. Porque é que as pessoas que se tornaram repentinamente pobres odeiam o mundo? Porque não culpariam eles todos e cada um — de mexicanos a muçulmanos e europeus — pelo seu próprio declínio? A verdade, como sempre, é mais difícil. O colapso dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha não é culpa de ninguém — de ninguém —, mas deles próprios.

Estão numa espiral mortal agora, mas nenhum oponente ou adversário os trouxe até ela. A culpa foi deles, e ainda assim continuam a escolhê-la. Já não sabem proceder de outro modo. As suas elites conseguiram fazer com que a pessoa comum acreditasse fervorosamente que lutar perpetuamente pela autopreservação era a única forma de uma sociedade existir.

E embora seja tarde de mais para eles fugirem, esperemos que o resto do mundo, da Europa à Ásia e à África, aprenda a lição da triste, horrível, estúpida e espantosa tragédia deste colapso autoinfligido.

Umair

Dezembro 2019

Comentários

  1. Artigo lucido, cortante, acerado, inteligente. Parece o Sermao aos Peixes do Padre Antônio Vieira.

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  2. Artigo lucido, cortante, acerado, inteligente. Parece o Sermao aos Peixes do Padre Antônio Vieira.

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