Quem é fascista, quem é?

Uma versão em inglês deste artigo está aqui.
Fascista, para além de caraterização política, tornou-se um insulto com tendência a perder o conteúdo. Mas vou tentar ater-me ao essencial.
Durante muitos anos, a caraterização mais vulgar, entre os intelectuais ocidentais, tem sido uma explicação marxista sobre como a luta de classes leva a que uma parte da população marginalizada se disponha a ser mobilizada pelo grande capital para destruir as organizações dos trabalhadores. Às vezes funciona, outras não. Esta explicação tem a vantagem de situar os comunistas e marxistas como os principais antifascistas, mas são mais as vezes que não corresponde aos factos, do que aquelas em que acerta.
Eu, como há muitos anos que deixei de ser marxista — e acredito, sinceramente, que as ideologias políticas iludem mais do que esclarecem — prefiro definições mais simples.
Para mim, fascismo é uma ideologia e uma prática política de nacionalismo autoritário extremo.
Como veem, abstenho-me aqui do porquê e do como. Acredito que esse tipo de considerações nos iria levar a discussões bizantinas e estéreis.
O fascismo é nacionalista. Professa uma mística da nação, entidade espiritual maior e de muito maior longevidade que os seus habitantes, dotada de um destino histórico e de uma missão. Normalmente, essa missão é subjugar os vizinhos pela força das armas. Que os vizinhos não queiram ser subjugados, não interessa. Aliás, para que servem as armas? Numa fase mais incipiente e, digamos, mais progressiva, o nacionalismo nasce como ideologia de uma nação que busca a sua independência. Mas, atingida esta, rapidamente evolui para a sua versão mais agressiva.
O fascismo defende sempre uma parte da nação contra as outras. Essa parte da nação é a portadora do estandarte nacional. 
São a raça ariana para os nazis, os cristãos para os fascistas cristãos, os muçulmanos, para os fascistas islâmicos, os portugueses de gema, os russos-brancos para o fascismo russo, a etnia han para os chineses. 
As outras partes da nação, ou as outras nações, são feitas de untermenschen, de seres inferiores, de intrusos, parasitas, hereges, infiéis: judeus, migrantes, negros, mouros, ciganos, morenos, ou até gente demasiado cosmopolita que goste de ideias estrangeiras como democracia, inclusão ou direitos humanos. Até podem ser, como na propaganda putinista, os fascistas que, imaginadamente, tomaram conta das nações inimigas.
O fascismo é autoritário. O destino nacional, a glória da supremacia, exprime-se na adoração do fuhrer, do duce, do ditador, do presidente vitalício que produz a orquestração de um obsessivo culto da personalidade. O ditador é o portador, na sua pessoa endeusada, do desígnio redentor do grande (ou pequeno) apocalipse bélico, que lavará em sangue todas as humilhações, reais ou inventadas.
O fascismo é, evidentemente, antidemocrático. Não pode confiar que o povo esteja disposto a sacrificar as suas vidas no altar da guerra nacionalista. Tendo escolha, o povo quererá sempre viver as suas vidas em paz, fazer pela vida, criar os seus filhos, gozar o pouco de felicidade a que consegue acesso. Só uns poucos alucinados almejam marchar contra os canhões, para se cobrirem de glória, ou serem convertidos em carne picada lamacenta, e mesmo assim só durante breves fases de histeria nacionalista. Para orquestrar essas fases de histeria e garantir que durem o mais tempo possível, o fascismo necessita de um aparelho poderoso de propaganda, centralmente comandado pelo ditador e pela sua clique e sem qualquer controlo democrático. A sua propaganda, em geral bastante grosseira e mentirosa, não pode ser contrariada por ideias divergentes, portanto precisam do controlo da comunicação social.
Os fascismos são, finalmente, regimes frágeis. Dependem da propaganda obsessiva e da supressão de vozes dissidentes, por parte de uma poderosa polícia política. Dito à portuguesa, não há fascismo sem Pide, sem prisões arbitrárias, sem tortura, sem assassinatos de opositores. 
Os fascistas são maus governantes. Arruínam os seus países com corrupção, governo irracional e incompetência. A sua permanência no poder seria breve, se não fossem os poderosos aparelhos repressivos de que se rodeiam. 
Que mais temem os fascistas? Temem a normalidade, na qual a sua incrível incompetência, corrupção e governo ruinoso se torna mais transparente, sem a distração da propaganda paranóica e do jogo do medo, através das ameaças militares, terroristas ou outras. Temem que o seu povo aproveite uma crise qualquer para recuperar a democracia e os pôr a mexer. Essa é a ameaça real para os ditadores.
Os fascistas sabem que, por mais que as suas propagandas digam o contrário, a democracia continua na moda, há países em que funciona e os cidadãos submetidos aos ditadores, se pudessem, gostariam de também ter uma. As ideias teimam em circular apesar da censura e das fronteiras e, finalmente, não há machado que corte a raiz ao pensamento.
O que os ditadores mais temem é que, no meio de uma crise, os protestos se tornem demasiado grandes, o aparelho repressivo se recuse a atacar mais os cidadãos e eles próprio se encontrem, de repente, no exílio ou mortos. É aquilo a que Putin chama, com enorme acinte, uma revolução às cores.




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