O princípio do fim da democracia nos Estados Unidos
A 21 de Janeiro de 2010, o Supremo Tribunal dos EUA decidiu que as empresas tinham o mesmo direito à liberdade de expressão que os cidadãos. Essa decisão autoriza as corporations a gastar tanto dinheiro quanto queiram a comprar as eleições, tanto através de campanhas diretas de publicidade como através de contribuições monetárias para os candilados, limitando drasticamente a sua liberdade política.
Essa liberdade não se aplica às empresas diretamente, mas às suas administrações, que nos Estados Unidos estão isentas por lei de ser questionadas pelos seus acionistas. O resultado é uma democracia virada do avesso, onde uma elite restrita tem um poder ilimitado de influenciar a governação, contra a esmagadora maioria dos cidadãos, limitados pelos seus reduzidos recursos apenas a votar e a ser os receptores de operações massivas de propaganda, sem poder exercer o mesmo direito de expressão para lá da família ou da vizinhança.
Não surpreende, desde então, que a opinião pública nos EUA tenha virado massivamente à direita. Na verdade, o conceito de opinião pública deixou de ter sentido. Talvez Obama seja reeleito, talvez não, mas só será reeleito se se vergar totalmente, até ao chão, ao poder das corporations, as quais têm doravante inteiramente nas suas mãos as torneiras do dinheiro.
Este desenvolvimento piora muito as possibilidades de resolver de forma positiva e pacífica os muitos problemas mundiais. Se até hoje os EUA têm sido um factor agravante nas crises mundiais, com as suas crises económicas e a sua proteção aos interesses do capital financeiro desregrado, o apadrinhamento de inúmeras ditaduras, o seu militarismo desenfreado e a sua diplomacia antiecológica, é de esperar que esse comportamento se agrave. O custo disso será terrível para a humanidade.
Este debate vem de há muitos anos. As empresas têm efetivamente direitos como pessoas, tais como celebrar contratos, receber dívidas e muitos outros, no domínio económico, e assim é na maioria dos países do mundo. Mas esta aberração jurídica vai contra todas as tendências nos países democráticos, em que sempre houve leis, mais ou menos eficientes, mais ou menos torneadas, tendentes a limitar a liberdade dos interesses económicos influenciarem o processo democrático.
Dirão os leitores: mas nos EUA ainda funcionam todas as outras liberdades políticas. Sem dúvida, mas a tendência tem sido para as limitar. A tortura é agora aceite como método normal de interrogatório, prisioneiros são mantidos sem culpa formada, sujeitos a tortura, sem direito a habeas corpus e sem limite de tempo. Obama prometeu que iria acabar com isso, mas não pôde ou não quis cumprir. Inúmeras agências policiais e de vigilância dos cidadãos gozam de poderes efetivamente ilimitados. Em certos aspetos, no que diz respeito a certas categorias da população, o estado tornou-se efetivamente policial. Por exemplo, entre os afro-americanos, as percentagens de detidos são historicamente sem precedentes. Em certas zonas, as prisões são a principal indústria (também parcialmente privatizada).
Com o reconhecimento da liberdade das empresas influenciarem a política, é de esperar que os outros direitos humanos venham a ficar sob ataque cerrado. Na verdade, os direitos numa democracia são interdependentes. Não é provável que os indivíduos mantenham as suas liberdades, quando a nível político estão na posição de David contra Golias. A liberdade de expressão dos indivíduos será cada vez mais condicionada, por exemplo ao criticar as empresas. Já que as empresas têm direitos como os indivíduos, têm direito ao seu bom nome e podem responder à menor crítica com processos judiciais esmagadores. Todos os atropelos são também possíveis, se a cumplicidade dos políticos previamente comprados (e a dos juízes, que são parcialmente eleitos) estiver assegurada.
Acima de tudo, este descambar da democracia nos Estados Unidos da América rouba a todos os povos do mundo um exemplo de como uma democracia deve ser. O que coloca a nossa União Europeia, corroída de políticos oportunistas e aflita com a progressão de partidos racistas e xenófobos, na posição incómoda de farol mundial da democracia. É melhor que se torne nesse farol, a bem da sua própria sobrevivência.
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