Doms e Subs

Recentemente dediquei-me ao estudo de alguns aspetos da sexualidade humana que não me tinham interessado antes, sobretudo porque não eram aqueles para onde pendem as minhas inclinações naturais. Refiro-me ao sadomasoquismo e ao domínio/submissão, aquele universo de práticas comumente conhecido por BDSM (bondage ou aprisionamento, domínio e sadomasoquismo).




Danseuse assise, Toulouse-Lautrec

Ao visitar esses aspetos estranhos, para mim, da alma humana, abriram-se novas perspetivas para muitas coisas até então inexplicadas ou, pior, ignoradas, e o mundo, o nosso mundo interior, tornou-se, se possível, ainda mais estranho e, em certos casos, pintado de cores em princípio nada agradáveis.

Eu já estou habituado a que as coisas se tornem cada vez mais estranhas e complexas à medida que se penetra no seu conhecimento. E aqui entre nós, que ninguém nos ouve (só nos lê), o íntimo humano é das mais retorcidas coisas em que penetrar se possa.

Comecei pelo site literotica.com, dedicado à literatura lasciva produzida pelos leitores. Abundam as narrativas dedicadas a estes temas. É estranho de aceitar o prazer de pessoas infligirem dor a outras, mais estranho ainda para mim o prazer de sofrer ou ser torturado, mesmo dentro de limites acordados. Mais estranhos ainda, intrigantes, os laços afetivos fortes entre opressor e oprimido, ou dono e escravo, na precisa linguagem dessas lides. Fora da dor ou para além dela, as relações entre dominante e submisso (dom e sub) transcendem as sessões de sexo e dão forma a relações relações de casal. E relações deste tipo atravessam géneros e orientações sexuais.

Coisas de gente bizarra, não?

Não. A gente bizarra é também gente. Quero dizer, pode haver fatores que, por qualquer razão, se manifestam com muita força numa pessoa ou grupo, mas esses fatores estão presentes em toda a gente. Ou estão esses fatores só estão presentes nessas pessoas. Veremos.

O lugar desproporcionalmente grande que o imaginário sadomasoquista e dominante/submissivo ocupa na cultura popular desmente desde logo a ideia da excecionalidade. Os praticantes de BDSM exprimem apenas de forma mais aguda sentimentos e comportamentos gerais.

A ideia do singular e do bizarro foi também o lugar seguro em que me refugiei de início. A alternativa era assustadora. Mas acompanhei o modo calculista como os dominantes, nas narrativas, selecionavam as suas 'presas'. Quais os sinais a que prestavam atenção, os que lhes diziam que tal pessoa podia ser dominada. Quais os pontos do seu comportamento em que marcavam o domínio, quais os pontos em que os submissos manifestavam a sua submissão.

Bizarro, não? Muito mais bizarro, quinhentas vezes mais bizarro, foi fechar o computador e vir para a rua encontrar os mesmíssimos comportamentos entre gente normal, entre amigos meus, entre pessoas que jamais se deixariam vestir de couro e meias de rede e levar-se uns aos outros à trela, ou coisa que o valha!

Tive de convencer-me: o mundo tornara-se todo ele, de repente, muito mais bizarro!

A maioria dos homens que conheço, senão todos, são dominantes. A maioria das mulheres, senão todas, submissivas. Talvez alguns e algumas tenham vidas secretas, é bem possível, onde sejam o que não parecem.

Muitas das mulheres submissivas são mais brilhantes, inteligentes e têm uma pegada social largamente superior aos seus parceiros. Mas não deixam de ser submissivas.

As mulheres mais submissivas são mais sexy. E mais difíceis de manter também.

Os homens mais dominantes são mais sexy. E mais disputados.

Até os bichos

Entretanto, tenho participado na educação de uma jovem cadela pastora alemã e, naturalmente, prestei atenção ao 'Encantador de Cães' na TV. Mais uma vez, tudo ideias de dominância, supremacia e submissão, para além da nossa espécie e para além do quadro sexual. E vi esta cadela de sete meses dominar sem problemas uma Retriever do Labrador com nove anos e mais dez quilos, mas ter de se submeter — e gostar — ao poder dos donos. A submissão é relativa. Um sargento também é submisso perante os oficiais e dominante perante os soldados.

E os direitos?

Mas a ideia que me fez repugnar e temer este mundo de dominantes e submissos foi muito simples: como seria aqui possível a democracia?

Temos que nos lembrar que não se trata apenas de transferência de poder, mas também de relação afetiva*. Do ponto de vista do poder apenas, nada favorece a democracia, pois as relações de poder cabem perfeitamente dentro de uma ditadura. É minha tese que a democracia deriva das relações de afeto, pois este permite à parte submissiva controlar os seus direitos de forma suave.

E sim, a literatura está cheia de alusões à forma como os subs, apesar de o serem, conseguem controlar a relação.

Só recolhi alguma da nata deste assunto. Hei-de voltar a isto, que não tem fim.

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* Mesmo entre os soldados há uma forte componente afetiva. Por exemplo, o sentimento de submissão aos superiores chama-se lealdade.

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