Contra os defensores religiosamente preguiçosos dos pios

Recentemente, um bando de ateus acoitou-se numa instituição online chamada Freethought Blogs. Estão lá algumas das pessoas que mais gosto de ler, como PZ Myers (Pharyngula) ou Greta Christina. Foi num destes blogs, Camels With Hammers, pertencente a Daniel Fincke, antigo fundamentalista e professor de Filosofia, que encontrei um artigo tão interessante que me pus a traduzi-lo: Against The Religiously Lazy Defenders of The Pious. Trata das pessoas que não levam muito a sério a sua religião e da dinâmica surpreendente que muitas vezes provocam. O articulista refere-se à realidade dos Estados Unidos, mas parte do que ele descreve sem dúvida que se aplica cá. De notar que o termo liberal no artigo nada tem a ver com liberalismo económico mas com o seu sentido antigo, de amor à liberdade.

Os moderados religiosos e liberais aparecem em muitos tipos. Neste post quero falar sobre alguns tipos de moderados religiosos ou liberais e sobre as razões porque me irritam. Para isso quero traçar algumas distinções que não creio ver ninguém a fazer mas que serão úteis para que o assunto se torne claro.

Muitas vezes, quando nós, ateus, distinguimos e criticamos os religiosamente conservadores, moderados e liberais, estamos a referir-nos às suas crenças religiosas e aos seus graus relativos de tradicionalismo e de inflexibilidade. Mas há pelo menos duas outras maneiras se ser conservador, moderado ou liberal. Além do relativo conservadorismo ou liberalismo do conteúdo das crenças de cada um, também há diferentes modos de assumir essas crenças (de forma consciente ou periférica) e diferentes modos de as praticar (mais estritamente ou com mais laxismo).


O paradigma normal dos crentes religiosos conservadores concebe-os como pessoas dedicadas a crenças religiosas específicas fortes que assumem e em que pensam frequentemente e com grande fervor, as quais influenciam as suas vidas e as suas práticas religiosas de forma profunda. Os moderados costumam ser considerados pessoas cujas crenças são uma mistura de pensamento religioso tradicional, moderado por influências seculares. Visto que se crê serem abertos a mais fontes de esclarecimento fora das suas religiões e abertos a mudar de opinião, as suas práticas religiosas são tidas como menos austeras e mais seculares e por vezes crê-se que as suas crenças podem ser assumidas com menos fervor, visto que estão sujeitas a modificação.

Finalmente, há a tendência para pensar que os crentes liberais não assumem as suas crenças com grande vigor, visto desviarem-se tanto das versões mais conservadoras ou tradicionais das suas fés. E se os dogmas centrais da sua fé são negociáveis, parece também razoável que as práticas religiosas austeras sejam menos absolutamente necessárias e obrigatórias. E assim podem vivem com um compromisso mais solto com as obrigações e práticas religiosas, ou reconhecer só umas poucas entre elas.

Bem, alguns dos religiosamente conservadores, moderados ou liberais cabem nestes modelos, mas as pessoas são muito mais complicadas e menos lógicas. Uma compreensão de como divergem destes modelos ajuda a compreender porque muitos de nós, Novos Ateus, nos acautelamos no contacto com muitos moderados ou liberais religiosos.

Então, como é que as pessoas se desviam destes modelos padrão e quais são as consequências negativas disso?

Acho que muitos dos que não ligam muito à prática religiosa e que geralmente não pensam nem se preocupam muito com defender ou definir as suas crenças religiosas, muitas vezes têm crenças religiosas surpreendentemente conservadoras por defeito. Não tendo pensado nem se esforçado muito sobre a sua religião, respeitam as suas figuras de autoridade religiosa de forma tão inquestionável como muitos de nós respeitamos a opinião dos cientistas em questões científicas. Muitas vezes, esses fiéis aparentemente nominais chegam a deixar autoridades religiosas resolver ou opinar sobre conhecimento científico. Mesmo que as suas crenças religiosas não estejam sempre nas suas mentes nem influenciem a maioria das suas práticas diárias, mantém uma lealdade enraizada às suas identidades religiosas e a muitas das suas doutrinas religiosas – pelo manos em princípio.

Usualmente não iniciam discussões sobre religião, mas se se sentem pressionados devido a desafios ao conteúdo das suas crenças, respondem com frustração e confusão, defendendo-as assertivamente. Por vezes as suas opiniões podem descambar para as versões menos sofisticada (ou por vezes manos coerente ou informada). Por vezes, por ignorância, podem dizer coisas que os seus próprios teólogos, com quem pretendem concordar, considerariam heréticas. Mas assim que encontram a versão correta do que era suposto acreditarem, concordam sem hesitação. Essencialmente, acreditam na palavra das autoridades religiosas. Ao serem confrontados com qualquer crença terrível, ilógica ou contra-intuitiva tida pela sua religião e de que fossem ignorantes, ficam confusos mas reflexivamente assumem que as suas autoridades religiosas têm respostas satisfatórias, mesmo que eles próprias não as conheçam.

As suas crenças são muito pouco liberais ou moderadas no sentido de serem temperadas por filosofia secular ou ciência. Crêem em trapalhadas sincretísticas que misturam numerosos padrões simbólicos e supersticiosos de pensamento que foram agarrando e chegam a desenvolver e defender versões da sua fé tão literalisticamente sobrenaturais como os crentes mais devotos. São trapalhões nas concessões que fazem nos debates, devido à incompreensão de que partes da sua fé são supostamente mais importantes e que partes são supostamente consideradas sujeitas a debate.

E apesar de não serem geralmente fervorosos ou enérgicos sobre as suas crenças ou ou devotamente comprometidos com as suas práticas religiosas, pode haver um certo número de assuntos chave em que se tornam ferozmente religiosos. A sua religião serve certos objectivos cognitivos e emocionais e quando precisam dela podem subitamente pensar e agir de forma muito devota, mesmo que sejam desleixados e desobedientes à sua religião quando não é imediatamente relevante para a sua vida diária. Por exemplo, eu conheço uma mulher católica que nunca ia à igreja e que achava o evangelismo declarado da minha família esquisito e irritante, mas quando a sua filha fugiu de casa e a sua melhor amiga subitamente teve cancro, passou a ir à igreja todos os dias. E recentemente, quando a Igreja Católica começou politicamente a fazer ondas, insistindo no seu direito de ser isenta de leis de que não gosta respeitantes à contracepção, um número decepcionante de católicos favoráveis à contracepção entrou na linha a defender a sua igreja retrógrada – aparentemente por uma questão de política de identidade e de lealdade reflexiva e conservadora à autoridade da igreja.

Este povo seletivamente e convenientemente pio dá hoje às religiões a sua vantagem impenetrável e o seu músculo político e social perante os não crentes em todo o lado. Este é o povo que evade os rigores do compromisso religioso sério, ao mesmo tempo que não leva as suas crenças suficientemente a sério para ser confrontado com todas as sérias razões para duvidar delas. Os fundamentalistas que tratam o fervor da fé e o compromisso diário da prática religiosa como questão central da sua religiosidade desprezam estas pessoas limitadas e espiritualmente preguiçosas e questionam a seriedade e sinceridade da sua fé e piedade.

Mas são estes, a maioria preguiçosa e silenciosa dos crentes, que dão as religiões um sério “bloco de votantes” nas guerras culturais americanas e que dão às religiões a sua hegemonia cultural e política noutras nações por todo o mundo. São estes crentes, para quem a religião não é para eles próprios uma carga pesada, que também não acham um grande fardo garantir fielmente que os seus filhos sejam doutrinados e mantidos no redil e que as suas autoridades religiosas tenham um poder social desmesurado. Mesmo que não satisfaçam o desejo dos fundamentalistas de rendição incondicional à sua fé, esta espécie de crentes e praticantes meio soltos fazem à sua religião favores bastantes, ao manter as suas identidades religiosas, ao passar a sua identidade religiosa aos filhos (alguns dos quais se podem tornar surpreendentemente fundamentalistas), ao apadrinhar poder religioso, social, moral e/ou político em questões chave e ao não pôr demasiadas (ou nenhumas) questões cruciais.

Finalmente, estas pessoas que assumem as suas crenças inquestionadas e conservadoras de forma vaga e que as praticam frouxamente muitas vezes têm apreciação culpada das pessoas com mais vigor religioso. Admiram aqueles que comprometem as suas vidas mais completamente de acordo com as suas crenças. Vêem-nos como pessoas espiritualmente mais fortes que eles próprios. E assim, embora eles próprios sejam frouxos na sua devoção diária, estão prontos a bradar em defesa dos “santos”. Mesmo que esses santos os vejam como fracos e preguiçosos, levantam-se e defendem-nos como verdadeiros modelos de fé. Mesmo quando as exigências dos santos são extremas, encontram muitas vezes a lealdade política e o apoio dos praticantes frouxos que lhes desobedecem na prática mas lhes garantem toda a autoridade moral e teológica, com uma notável dissonância cognitiva, numa questão de identidade e lealdade em relação a crenças religiosas reais (embora bem compartimentadas).

Às vezes, estes crentes religiosos preguiçosos parecem estar a compensar a sua falta de devoção diária, ao apoiarem os seus líderes religiosos retrógrados ou o laicado devoto.

E entre aqueles que mantêm crenças religiosas de conteúdo moderado ou liberal, há um segmento que só chega às suas crenças e práticas comprometidas através de uma atrofia religiosa e de uma deriva mental e espiritual. São moderadamente religiosos por terem “decaído”, em vez de terem raciocinado sobre os assuntos deliberadamente. Por outras palavras, não constroem posições moderadas e liberais explícitas, fortes, claramente definidas que defendem por princípio, mas andam mentalmente aos meandros até desposar uma salgalhada vagamente definida de banalidades que incorpora as crenças menos indigestas, sentimentos universalistas e valores políticos modernos. Estas pessoas só vagamente crentes e praticantes que se agarram sobretudo a banalidades também em muitos casos parecem sofrer de um complexo de inferioridade espiritual face às pessoas devotas – mesmo que muitas vezes não as respeitem intelectualmente. Admiram a fé enérgica e a árdua fé ascética, excepto nas suas formas mais doentias e inegavelmente perigosas.

Muitas vezes parecem sentir-se envergonhados de se sentirem viver na tonta facilidade permissiva da sua própria espiritualidade e sentir que os (supostos) santos merecem respeito pela sua intensidade, sinceridade e determinação em defender os seus valores. Estes são traços de carácter fortes que os tepidamente religiosos que mantêm apenas vagas crenças sentem que lhes faltam (ou têm-nas menos que os devotos sérios), e assim sentem-se obrigados a oferecer alguma apreciação aos devotos. Alguns invejam mesmo aos devotos a sua capacidade de acreditar e comprometer-se com algo com tanto do seu ser.

Mesmo alguns ateus (como alguns dos ateus apáticos ou dos acomodacionistas) parecem ter um sentimento similar acerca da capacidade de compromisso, idealismo e fé dos fiéis. Consideram essas coisas intrinsecamente admiráveis e dignas de alguma reverência em si próprias, sem ter em conta que as suas crenças são literalmente falsas.
Claro que, às vezes os moderados e liberais vagamente religiosos e os ateus apáticos e acomodacionistas não têm lá muito respeito pelos devotos e conservadores, mas mesmo assim podem sentir-se protectores de qualquer modo, por causa da sua suposta sinceridade, irascibilidade, estupidez e/ou vasto poder político.

Evidentemente que há religiosamente moderados e liberais que mantém os conteúdos moderados ou liberais das suas crenças como temas de convicção intelectual que trabalharam com seriedade religiosa e intelectual. Essas pessoas são diferentes dos moderadamente ou vagamente sérios sobre assuntos religiosos. Uma pessoa seriamente moderada ou liberal do ponto de vista religioso não deverá sentir nenhuma necessidade de atribuir aos fundamentalistas ou aos crentes superpiedosos nenhuma qualidade especial de maior sinceridade ou empenhamento que os seus. Os moderados ou liberais religiosos deste tipo podem ter mais compaixão por alguns dos erros dos fundamentalistas que a maioria dos novos ateus e podem levá-los mais a sério como interlocutores teológicos a necessitar de refutação no terreno religioso, em vez de serem simplesmente ignorados, mas de forma nenhuma pensam nos fundamentalistas como a mais autêntica e admirável versão da sua religião.

Decidi explorar estas distinções, não só pelo seu interesse inerente e potencial para clarificar diferenças entre crentes que muitas vezes são amontoados sem nexo por comentadores ateus, mas também para sublinhar uma questão derivada da minha experiência de ex-fundamentalista que em tempos teve pontos de vista religiosos conservadores fervorosos e permitiu que dominassem todo o meu modo de vida, antes de me tornar ateu.

Sou imune à ilusão devota de santidade. Não vejo halos a pairar acima das suas cabeças. Creio que aprecio as suas virtudes próprias e compreendo os seus processos de pensamento de formas que quem nunca foi um deles raramente consegue. Mas não os acho especialmente fortes espiritualmente, antes espiritualmente fracos, para ser honesto. E aprecio que muitos deles são conscienciosos, mas também penso que o seu raciocínio moral é, francamente, pateticamente inepto.

Sendo assim, ressinto os esforços compensatórios dos espiritualmente inseguros que se iludem e cortejam a sua miragem de seriedade moral. Eles não merecem esses favores. Não merecem esses que deitam fora 90% da sua fé e mesmo assim submetem as suas crianças à gente mais mentalmente fechada e piedosa para serem doutrinados e formados na sua identidade. Não precisam aceitar de forma tão impensada que a necessária inculcação de valores nas crianças ou o desenvolvimento do significado da vida requeira práticas religiosas ligadas a crenças falsas, ideologias morais retrógradas e piedades confusas e sem sentido.

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