Democracia & aparência
Outro dia, a Câmara Municipal de Almada fez uma reunião no meu clube, o Vitória das Quintinhas, integrada num ciclo chamado Opções Participativas. Era suposto a reunião dedicar-se a receber as contribuições dos munícipes para o Plano de Atividades 2013. Vim tarde do trabalho, lá comi uma sandes e bebi uma imperial no bar e fui para o pavilhão participar na reunião. Contribuir para o Plano de Atividades da Câmara? Pareceu-me bem.
Ressalva: Não devem considerar esta reflexão um ataque à Câmara de Almada ou aos seus dirigentes, pois o que aqui digo pode aplicar-se a qualquer outra câmara, ou até a um país chamado Portugal, senão a outros. Não tenho qualquer sardinha a assar neste fogareiro. Esta é uma reflexão sobre os conceitos fundamentais da democracia.
Tudo sentadinho, quando entrei estavam a acabar de apresentar um vídeo sobre as iniciativas da Câmara na Charneca. O tom do vídeo era propagandístico, o que me fez torcer o nariz.
O meu lado cínico garantiu: "Claro, se eles gastaram o dinheiro a produzir o vídeo, já agora iam produzir uma coisa favorável, não?" Pois, mas isso nada abona em favor de uma discussão aberta e participativa sobre o plano de atividades da Câmara. Outro pormenor inquietava-me mais: os funcionários à porta nada distribuíram aos presentes. Como se ia discutir ideias para um plano de atividades sem nada no papel? A Câmara não tinha nada ainda alinhavado? Íamos só deitar barro à parede?
O primeiro orador toma a palavra. Queixa-se dos pavimentos da sua rua. Que tinha pago a pavimentação há trinta anos a ainda nada fora feito. O segundo cidadão foca um problema semelhante. O terceiro também. Quando percebo que o quarto vai falar do mesmo tipo de assunto, levanto-me e vou-me embora.
Não desprezo os problemas postos pelos munícipes, de forma nenhuma. Mas compreendi que aquilo é inútil. E revoltei-me.
Ainda por cima, a Câmara, depois de fazer umas quantas reuniões daquelas, vai poder dizer que que os munícipes tiveram a possibilidade de participar na elaboração do seu plano de atividades. Chiça!
Como eu previra, a reunião consumiu-se naquele tipo de intervenções. Disseram-me também que lá mais para o fim houve uma qualquer escaramuça político-partidária. Pior ainda.
Um plano de atividades cria-se tendo em conta os recursos limitados e as linhas de ação. Não se pode fazer tudo, portanto há coisas que têm que ser sacrificadas e outras que têm de ser promovidas, absorvendo os poucos recursos disponíveis. A capacidade de tomar este tipo de decisões representa, evidentemente, uma forma de poder.
Abrir esse tipo de poder à participação dos cidadãos requer uma planificação cuidadosa, para além, evidentemente, de uma tremenda boa vontade. Desculpem, não vi nada disso. A participação no plano de atividades não passou do título da reunião.
Sobre os problemas postos pelos meus vizinhos munícipes, aí eu fartei-me de pensar. Democracia oca esta que permite às pessoas queixar-se mas as deixa inteiramente impotentes para acudir aos seus problemas!
Tendo lido uma série de textos, recentemente, sobre feminismo de quarta geração, teoria anti-racista e democracia radical, evidentemente que analisei o problema em termos de poder e privilégio. Convenhamos que alguns dos queixosos eram relativamente privilegiados em termos económicos (tinham vivendas), mas a beleza da teoria é que permite que na quiriarquia, o privilégio e a opressão sejam considerados de forma múltipla, cada pessoa sendo objeto de múltiplos agravos e de múltiplos favores, dependendo da sua posição social, do seu género, da sua biologia ou até dos seus acidentes. (Estou a mandar estes palavrões para os provocar, brevemente postarei sobre isto).
Os munícipes que demandam que a sua rua seja pavimentada estão fora do poder. A Câmara tem recursos limitados, não tem de forma nenhuma capacidade de pavimentar todas as ruas, tapar todos os buracos, construir todas as lombas, pintar todas as zebras, erguer todas as estátuas, reparar todos os semáforos, substituir todos os caixotes do lixo. Alguém tem que ser preterido. Os munícipes que protestam nestas reuniões estão excluídos do acesso à informação sobre quando e se as suas reivindicações poderão ser satisfeitas. Por muito que a Câmara se disponha a ouvi-los para mostrar que é democrática, jamais abre mão do seu privilégio de decidir de forma nada transparente quem é atendido e quem é preterido.
O poder está onde se decide como devem ser alocados os parcos recursos existentes. Esse é o poder que não é partilhado. Imagino que muitas das decisões são perfeitamente racionais, que outras são fortuitas, até posso imaginar que algumas decisões sejam corruptas. A falta de transparência permite-o.
Mas os munícipes podiam ter acesso à informação sobre os critérios de alocação dos parcos recursos da Câmara. Assim poderiam saber quanto tempo faltaria para a sua rua finalmente ser asfaltada, sem precisar de implorar constantemente. Digamos que, tendo em conta as disponibilidades do orçamento municipal, segundo um plano publicamente conhecido, as ruas não asfaltadas da Aroeira serão pavimentadas no segundo trimestre de 2013. Por exemplo.
Isto seria possível. Mas implicaria um grau menor de poder discricionário da burocracia municipal e um grau maior de poder dos cidadãos. Teriam capacidade de fiscalizar muito melhor, em concreto, a gestão da Câmara. Se os catrapilas e as caldeiras de alcatrão não aparecessem na Aroeira no segundo trimestre de 2013, aí os munícipes iriam ter que perguntar porquê e exigir responsabilidades.
Claro que seria possível. Mas para isso a burocracia municipal teria de abdicar do seu privilégio.
Podem esperar sentados...
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