Porque ser progressista é melhor que ser conservador
Progressistas e conservadores não divergem só sobre assuntos específicos, mas sim sobre valores éticos fundamentais. Será possível defender-se que os valores progressistas são realmente melhores?
Um artigo de Greta Christina
Este post é a tradução de um artigo de Greta Christina no site progresista norte-americano AlterNet. Greta Christina é minha amiga no Facebook. Para além disso, é uma das vozes mais importantes do movimento ateu dos EUA, para o qual trouxe uma perspetiva feminista e de defesa dos direitos LGBT. A proeminência dela tem vindo a subir com a chegada com uma série de jovens, mulheres, pessoas de cor e de diversas perspetivas aos círculos céticos, humanistas e ateus, e que têm vindo a abalar a loja de velhos machos brancos. Greta Christina é um dos porta-vozes desta corrente que junta aos temas tradicionais do ateísmo a luta pela justiça social. Adoptaram a sigla Atheism+ e aglomeraram-se nos Freethought Blogs e Skeptchick, entre outros. Greta Christina é também uma escritora que gosto muito de ler — e que me tem ajudado a pensar — sobre assuntos de sexo. Para além de ser escritora e editora de literatura erótica, escreve abertamente sobre as suas experiências, sobre a vida com a sua esposa Ingrid e sobre os seus gatos. Vive em São Francisco e presentemente está a recuperar de dois desaires: morreu-lhe o pai e foi operada a um cancro, felizmente com sucesso. O seu último livro chama-se Why Are You Atheists so Angry? — 99 Things that Piss off the Godless. O blogue dela faz parte do meu percurso.
Podem já ter sabido disto. Tem estado nas notícias e na blogosfera e tem andado nas conversas mais nerdas* junto das fontes de água mineral ou nas festas. Um certo número de investigadores está a chegar à conclusão que a ética e os valores não são inteiramente relativos e não são inteiramente derivados de certas culturas. Os seres humanos, através das culturas e através da história, parecem partilhar uns poucos valores éticos básicos, inscritos nos nossos cérebros por milhões de anos de evolução como espécie social. São esses valores: equidade, não fazer mal (solidariedade), lealdade, autoridade e pureza. (Alguns pensam que pode haver um ou dois outros, incluindo liberdade e honestidade, mas esses não foram ainda tão bem substanciados ou bem estudados).
Umas pessoas dão maior prioridade a uns valores que a outros, é claro. E também é claro que diferentes indivíduos e diferentes culturas chegam a diferentes conclusões acerca da escolha ética correta em qualquer situação particular — com base nos nossos preconceitos culturais, bem como nas nossas observações pessoais e experiências. Mas, de acordo com esta pesquisa, estes valores básicos — equidade, não fazer mal, lealdade, autoridade e pureza — existem em todos nós, pelo menos em algum grau, em cada ser humano não sociopata.
Fascinante — ouço-vos dizer — mas que tem isso a ver com política? Bem, o que os investigadores estão a descobrir é que os progressistas dão prioridade a valores muito diferentes dos conservadores. Quando lhes puseram uma série de questões sobre diferentes situações éticas, pessoas que se auto-intitularam progressistas tenderam fortemente a dar prioridade à equidade e a não fazer mal como os mais importantes destes valores básicos, enquanto os que se intitularam conservadores tenderam a dar prioridade à autoridade, à lealdade e à pureza.
Como sou uma progressista de pedra e cal — filha de um sindicalista e de uma feminista precoce, levada a marchas pela paz e a comícios do McGovern já em tenra idade — esta ideia fez imediatamente sentido para mim. Ilumina muitos cantos escuros e estranhos da política, em particular a natureza rancorosa e aparentemente insolúvel de muitos conflitos políticos. Quando progressistas e conservadores discutem os assuntos escaldantes do dia — quer se trate da imigração ou da igualdade perante o casamento, do aquecimento global ou da reforma do serviço de saúde — muitas vezes acabamos a falar em discursos cruzados e as conversas giram em círculos cada vez mais beligerantes... porque não começamos com as mesmas fundações éticas. Assumimos que todos temos os mesmos valores fundamentais e que estamos simplesmente a discutir a melhor forma de aplicar esses valores no mundo. Não estamos. Estamos a debater — de forma pouco efetiva e coerente, a maior parte do tempo — os próprios valores fundamentais.
E claro, quando soube desta pesquisa, a minha reação instantânea foi dizer: Mas a equidade e não fazer mal são mais importantes! Estivemos sempre certos! Está provado — os valores progressistas são melhores!
Mas, sendo uma pessoa que coloca um forte valor ético na equidade — dei-me conta que é evidente que eu diria isso. No fim de contas, esses são os meus valores.
Decerto que eu penso que são melhores. E — mais uma vez, sendo uma pessoa que dá um alto valor à equidade — dou-me conta que os conservadores vão dizer exatamente a mesma coisa: Mas a autoridade e a lealdade são mais importantes! Está provado! Os valores conservadores são melhores!
Então, tenho andado a perguntar a mim própria: há alguma forma de distinguir entre estes valores?
Se estes são valores básicos, axiomas fundamentais da ética humana, como distinguimos entre eles? Quero dizer — são axiomas. São os nossos pontos de partida éticos. Quando entram em conflito, como muitas vezes acontece, como é que damos um passo atrás e decidimos a qual damos prioridade?
Tenho andado a mastigar esta questão desde que soube desta pesquisa. Por outras palavras, pelo menos há um par de anos. E eis que, numa conferência ateísta em que falei recentemente, a resposta foi atirada para o meu colo, de forma tão clara e sucinta que dei pontapés em mim própria por não ter sido eu a pensar nisso, pela oradora principal da conferência, a filósofa galardoada com o prémio MacArthur, o selo dos génios, Rebecca Goldstein. (A quem eu estou a roubar esta ideia desavergonhadamente. Pois, mas eu sou uma pessoa ética, com o bom valor progressista da equidade. Quando roubo uma ideia, atribuo crédito).
A equidade e não fazer mal são melhores valores — porque podem ser universalizados.
O argumento de Goldstein é este. O substrato filosófico da ética (por oposição aos seus substratos psicológico e evolucionário) é:
(a) o axioma inicial é que nós próprios somos importantes;
e (b) a compreensão de que, se nos afastarmos de nós próprios e virmos a vida de uma perspetiva exterior, temos de compreender que não somos, de um ponto de vista cósmico, mais importantes que quaisquer outros; que essas outras pessoas são tão importantes para elas próprias como nós o somos para nós próprios; e que quaisquer regras de ética deverão aplicar-se tanto a outras pessoas como a nós. “Faz aos outros como gostarias que fizessem a ti” e tudo isso. (Uma versão qualquer da Regra Dourada parece existir em qualquer sociedade).
Por outras palavras, o substrato filosófico da ética é que ela deveria poder ser aplicada a toda a gente. Deveria ser universalizável.
E os valores progressistas — equidade e não fazer mal (solidariedade) — são universalizáveis.
De facto, é inerente à própria natureza destes valores que eles são universalizáveis.
A equidade é o mais óbvio exemplo disto. Quero dizer, todo o raio da ideia da equidade é que deve ser aplicada universalmente. Toma lá dá cá. Se é bom para mim, é bom para ti. Blá, blá, blá. Toda a ideia da equidade é que qualquer pessoa deveria ser tratada, não de forma idêntica, mas como se fosse igualmente importante.
E o valor de não fazer mal, ou da solidariedade, pode facilmente ser universalizado também. Pode ser aplicado a toda a gente. De facto, a história da evolução da ética humana pode ser vista como a história deste princípio ser expandido a uma população cada vez maior: a pessoas de outros países, a pessoas de cor, a mulheres, etc., etc., etc. Pode ainda mais universalizado e aplicar-se a não humanos. (Pode bem ser que, daqui a 200 anos, as pessoas contemplem a forma como tratamos os animais agora com a mesma expressão estupefacta — “Como é que eram capazes daquilo?” — com que hoje vemos a escravatura). Não há nada no princípio de não fazer mal que o impeça de ser aplicado a qualquer criatura com a capacidade de experimentar sofrimento. É um valor facilmente universalizável.
Os valores conservadores, por outro lado, não são universalizáveis.
Bem pelo contrário.
Está na própria natureza dos valores conservadores — autoridade, lealdade e pureza — serem aplicados diferentemente a diferentes pessoas. Está na própria natureza dos valores conservadores que alguns animais são mais iguais que outros.
O valor conservador da autoridade tem, no seu núcleo, a ideia de que algumas pessoas especiais — quer dizer, as figuras de autoridade — devem ser respeitadas e obedecidas mais que outras e devem ter o direito de dizer às outras pessoas o que fazer, e devem ter o poder de forçar essas ordens. O valor conservador da lealdade tem, no seu centro, a ideia de que certas pessoas especiais — quer dizer, os que fazem parte do grupo de dentro, da família, do país ou da fé ou seja do que for — devem ter mais valor do que as outras. E o valor conservador da pureza... bem, a pureza é estranha, visto que se aplica mais a como as pessoas tratam os seus próprios corpos e menos a como se tratam uns aos outros. (O que faz dela um princípio étnico um pouco desconcertante, na minha opinião). Mas quando se aplica à forma como as pessoas tratam outras pessoas (a noção de “intocáveis”, por exemplo) tem, no seu âmago, a ideia de que que certas pessoas especiais — quer dizer, as pessoas consideradas puras — devem ser consideradas inteiramente humanas... e que as pessoas consideradas impuras não precisam de o ser.
Assim, se aceitamos a ideia de que a fundação filosófica da ética é que as outras pessoas são tão importantes como nós, e que os princípios éticos devem aplicar-se tanto aos outros como a nós próprios, então isso torna os valores liberais, bem, melhores. Mais próximos dessa fundação filosófica.
Vou dizer rapidamente isto: não estou a argumentar que os progressistas são por inerência moralmente superiores em relação aos conservadores.
E não vou dizer que os valores conservadores da lealdade, da autoridade e da pureza são irrelevantes. Especialmente a lealdade. Dar prioridade aos que amamos em relação aos estranhos... isso é uma grande parte do que significa amar alguém, em primeiro lugar. Se alguém tem um sentido tão grande da equidade que não dá o primeiro lugar a quem ama, vou pensar que há algo profundamente errado com essa pessoa.
Quanto à autoridade, bem, nem o mais pintado esquerdista pode imaginar um mundo inteiramente governado por consenso. O pensamento de uma população mundial de quase sete mil milhões de pessoas a operar como um coletivo consensual faz-me estremecer de horror e querer mudar-me para a Lua imediatamente. Já estive em coletivos consensuais. Só as reuniões duravam uma vida. Por muito que me custe admitir, alguma espécie de autoridade — atribuída democraticamente, com o consentimento dos governados, com poderosos contrapesos e fiscalização, obviamente — é provavelmente necessária para para que a sociedade humana funcione suavemente, ou mesmo de todo.
Mesmo as sociedades mais progressivas (estou a olhar para ti, Suécia) não abandonaram a ideia da autoridade e da lei. Provavelmente precisamos de leis contra o assassínio e o roubo e passar os sinais vermelhos e por aí fora... e provavelmente precisamos de pessoas cujo ofício é obrigar a cumprir essas leis. (Se não fosse por mais nada, os nossos maravilhosos valores universais da equidade e da solidariedade nada significariam se não houvesse consequências para quem os violasse). É como eu sempre digo aos extremistas libertários que querem um mundo sem governo: Mudem-se para a Somália. E com o que se parece um mundo sem um governo a funcionar.
Quanto à pureza... bem, embora eu ache a ideia da pureza como valor moral um tanto desconcertante, faz certamente algum sentido de um ponto de vista prático. O princípio da pureza tem a ver com a ideia de que o corpo deve ser puro e santo, não profanado pelo que está contaminado ou é mau... e entre outras coisas, uma revulsão inata contra o que é impuro é o que nos impede de comer coisas que podem matar-nos.
Portanto, não estou a dizer que os valores tipicamente conservadores não têm lugar num sistema ético humano, ou que conservadores considerados e não loucamente extremistas tipo Tea Party não têm uma voz válida nos diálogos e decisões sobre ética, e sobre como a ética deve ser aplicada na política e na lei.
O que eu digo é que, quando debatemos temas políticos, podemos fazer mais do que andar à volta, imaginando que estamos a falar dos mesmos valores quando claramente não estamos. Penso que, quando debatemos temas políticos, será muito mais produtivo contemplar, não só a questão específica, mas as mais largas diferenças nos nossos valores base, e como estamos a aplicá-los à questão em apreço. E digo que podemos na verdade distinguir entre diferentes valores básicos e dar prioridade a uns sobre outros — e que, a não ser que haja uma razão de peso para dar prioridade aos valores tipo “alguns animais são mais iguais que outros” da autoridade, da lealdade ou da pureza, deveríamos dar primazia aos valores universalizáveis da equidade e de não fazer mal.
Digo que qualquer progresso moral que a humanidade tem feito ao longo de séculos e milénios, não foi na direção de maior aderência à autoridade, pureza ou lealdade tribal ou grupal, mas na direção de expandir a nossa compreensão e aplicação da equidade e de evitar fazer mal. Digo que, em cada exemplo em que consigo pensar em que a nossa moralidade claramente melhora sobre a moralidade do passado — a democracia, o banimento da escravatura, a liberdade de religião, o direito de voto para as mulheres, etc., etc. — os valores básicos que foram reforçados foram os da equidade e de não fazer mal, ou solidariedade: os valores progressistas, aqueles que podem ser aplicados não importa onde.
Tenho sido uma orgulhosa progressista desde que tive idade suficiente para escolher. E agora tenho mais orgulho que nunca. Porque a evolução moral da humanidade, em cada instância em que consigo pensar, tem sido no sentido de tornar-se mais progressista.
Nota: O termo usado por Greta Christina é liberal. Mas isso aqui seria fonte de confusão. Traduzi por progressista, o que coincide mais com o significado que o termo liberal tem nos EUA.
* Nerdo não se usa em português mas devia usar-se.
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