Já mataste alguém?
A questão era retórica e a resposta evidente: claro que não!
Mas...
Hoje, por acaso, estive em Lisboa a tratar de uns assuntos. Precisei de almoçar e entrei num snack-bar. Fui lavar as mãos. Quando abri a torneira, fiz com que lá longe, nem sei bem onde, uma estação de captação de água da rede de Lisboa sorvesse a pouca água que usei.
Sentei-me e pedi um bitoque de porco.
Eu não matei aquele porco. Já estava morto muito antes de eu decidir que ia almoçar ali. Mas matei o seguinte. A febra que comi ficou a faltar no frigorífico e não tarda nada telefonam para o talho a pedir mais. Esses telefonam para o matadouro e ditam a sentença de morte dos bichos seguintes. Essa foi a consequência da minha decisão económica.
Do mesmo modo, evidentemente, se passou com as batatas, o arroz, as alfaces, o pão e o vinho, até com o guardanapo. A minha ação influenciou os seus circuitos de distribuição e produção.
Sim, mas estamos a falar de um porco, não de gente. Vamos já falar de gente.
Todos vimos o drama de Alepo. Não me interessa quem tem razão, o mais certo é ninguém ter e haver mais mentiras que verdades de todos os lados. Mas há uma verdade fundamental: o sofrimento atroz de toda aquela população indefesa. Quem diz Alepo diz Mosul, diz a Líbia, diz antes as guerras do Iraque. A nossa tropa não anda por lá, nenhum de nós é culpado daqueles crimes.
Talvez. Mas os conflitos de que falei, mais pretexto menos pretexto, são guerras do petróleo.
Por isso, de cada vez que metemos o tubo do combustível no depósito do carro, ou mesmo quando compramos o bilhete de um transporte coletivo, até quando cozinhamos ou tomamos duche, as nossas ações têm consequências. Há refinarias, oleodutos, petroleiros, campos petrolíferos afetados pelas nossas decisões. Há exércitos, forças aéreas, marinhas, tropas especiais que se armam, mobilizam e posicionam. Há grupos terroristas que são recrutados e financiados. Por fim, há cidades reduzidas a escombros, pessoas que sofrem, pessoas que morrem, pessoas que fogem.
E há também o planeta que aquece, em vias de se tornar mais hostil para nós.
De tudo isto não estamos inocentes.
Sim, também matei pessoas. Não sei quantas, não sei quais, não sei quando. E tu também, leitor, não estejas para aí a fazer-te de santo.
Algumas das pessoas do Iraque, da Líbia, da Síria ou de outros lugares morreram por causa da nossa fome de energia.
Quando nasceu a minha consciência de cidadão, foi no meio de uma sociedade que cometia crimes em África. Tenho um certo orgulho de não ter ficado calado, de ter feito alguma coisa, por pouco que tenha sido, para acabar com essa injustiça.
Temos que ser cidadãos hoje. Como disse, o nosso modo de vida mata gente. Seremos culpados se não nos insurgirmos, se não arranjarmos alternativas.
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