Alt-right - o fascismo que renasce
Uma das caraterísticas fundamentais do fascismo é a criação de bandos violentos que atacam as organizações de esquerda. O nazismo tem esta caraterística, o fascismo italiano também. Uma das razões porque alguns historiadores recusam a classificação de fascismo ao regime de Salazar é que faltam esses bandos.
No caso do regime trumpiano também não há bandos de camisas coloridas, pelo menos de forma generalizada.
Mas há um fenómeno curioso, que é a existência de bandos de arruaceiros online, hoje conotados com a alt-right, sinónimo dos simpatizantes modernos do nazismo e da supremacia branca.
Desde há uns cinco anos, figuras proeminentes do feminismo começaram a ser vítimas de ataques coordenados de grande número de homens sexistas, os quais, através de ameaças, calúnias grosseiras e insultos tentavam expulsá-las dos vários fóruns da Web. Começou com uma ativista ateia e feminista, Rebecca Watson, que contou numa reunião uma abordagem inquietante por um homem, num elevador de um hotel de madrugada. Desencadearam-se ataques furiosos de literalmente milhares de trolls, com as acusações mais irreais, contra ela e contra quem a defendeu. Esse episódio ficou conhecido como o Elevatorgate (#ElevatorGate).
Rebecca Watson
Zoë Quinn
Anita Sarkeesian
Nessa altura os ataques ainda não eram claramente políticos, mas expressamente antifeministas. Grande parte dos atacantes eram ateus, embora claramente posicionados à direita, mais ou menos libertária (neoliberal)*. Começou então, aliás a cisão do movimento ateu norte-americano e inglês, com as vozes mais conhecidas como Richard Dawkins e Sam Harris a posicionarem-se à direita, e os setores feministas, ativistas dos direitos humanos, como PZ Myers e Greta Christina (que acabaram por ser conhecidos por SJW, ou social justice warriors, do lado esquerdo. Mas os trolls não são todos ateus e são-no cada vez menos. Os ativistas antifeministas conhecidos por MRA ou men's rights activists, ou ainda manosphere acabaram por ser dominados por dirigentes implícita ou explicitamente religiosos. Outros ainda, mesmo sendo pessoalmente ateus ou agnósticos, consideram que a promoção do ateísmo não lhes interessa politicamente, em função das alianças com a extrema-direita religiosa.
O marco seguinte da escalada deu-se com o GamerGate (#GamerGate), em 2014. Começou com um ataque do ex-namorado de uma mulher que desenvolvia jogos de computador, Zoë Quinn, acusando-a de fazer favores sexuais para ganhar vantagens comerciais. Mais uma vez, esta polémica mobilizou multidões despropositadas de trolls e grandes campanhas de assédio contra Zoë, Brianna Wu e Anita Sarkeesian, além de muitas outras pessoas, quase todas mulheres com forte presença online, com o fim confesso de defender os jogos eletrónicos como terreno masculino, contra a suposta invasão do politicamente correto e do feminismo. Anita Sarkesian teve mesmo que cancelar uma intervenção num congresso devido a ameaças de morte.
Foi no GamerGate que começou a ascensão fulgurante de Milo Yanopoulos, o gay antigay inglês do alt-right.
Do machismo ao nazismo
Os trolls destes combates aninharam-se em fóruns como o 4chan e o 8chan, que se distinguem pelo anonimato total dos participantes e não exercerem qualquer censura, até encorajam a falta de respeito, a pornografia, chegando mesmo a permitir a difusão de pornografia infantil, segundo algumas acusações.
Foi neste caldeirão infernal que se infiltraram os neonazis, com o objetivo de recrutar sangue novo para o seu movimento até então extremamente marginal e envelhecido. A sua estratégia foi muito subtil. Começaram por propor o uso de imagens e memes nazis como forma de chocar as vítimas. Com isso, normalizaram essas ideias e reduziram os anticorpos que desencadeavam. Na fase seguinte, é claro, passaram a defender a sua ideologia, com a resistência dos alvos diminuída e aproveitando a situação dos jovens machos desgostados com o progresso na igualdade das mulheres e com o politicamente correto.
Richard Spencer
Milo Yannopoulos
Steve Bannon
O sapo Pepe como nazi
Na fase seguinte foram desenvolvidos os veículos de propaganda online da ideologia alt-right. O principal promotor desta corrente é Richard Spencer, célebre por uma reunião a seguir à eleição de Trump em que ele e o público gritaram Heil Trump! e fizeram a saudação nazi, quando pensavam que os jornalistas já tinham saído, e também por ter levado um murro na cara enquanto estava a ser entrevistado na rua, no dia da grande manifestação das mulheres contra o Trump.
Estes neonazis são muito cuidadosos com a sua imagem pública, evitando mostrar o que realmente pensam ou expor os seus símbolos. Nas suas discussões abundam os dog whistles (apitos de cão), ou seja referências a ideias não expressas mas que os entendidos compreendem, como os apitos em ultrassons que só são ouvidos pelo cão. Alguns dos mais banais são 14 e 88, referindo as 14 palavras da afirmação racista de um terrorista neonazi, David Lane, que morreu na prisão, onde estava por assassinar um jornalista judeu em 1984 ("Devemos assegurar a existência do nosso povo e um futuro para as crianças brancas"), ou as 88 palavras de uma afirmação de Hitler no seu livro Mein Kampf, também em favor da raça branca. Como o H é a oitava letra do alfabeto, 88 também se pode ler HH, ou Heil Hitler. Outro dos sinais ocultos é o cartoon do sapo Pepe, criado por um artista estranho a esse movimento, mas de que conseguiram apropriar-se. Até o Trump já usou o Pepe num dos seus tweets.
Muitos destes grupos, para além de acreditarem na superioridade da chamada raça branca, usando argumentos pseudocientíficos do princípio do século XX, promovem o conflito racial deliberado, com o fim explícito de expuldar dos Estados Unidos os afro-americanos, ou pelo menos impor uma forma de apartheid. Opõem-se ferozmente à miscigenação, pois isso compromete a pureza da raça. São igualmente hostis aos migrantes da América Latina e seus descendentes, mas sobretudo odeiam e querem expulsar os muçulmanos. Talvez surpreendente para quem anda distraído é a permanência do antissemitismo e da negação do Holocausto. Quase todos acreditam que o mundo atual está dominado por uma vasta conspiração de grandes bancos, media e entretenimento, tudo na mão de judeus.
Mas alguns dos neonazis são mais descarados e acabam por revelar o que os outros querem esconder. Há assim vários graus de exposição, entre Steve Bannon, agora conselheiro estratégico de Trump, que desenvolveu o site Breitbart para ser um portavoz do alt-right onde pontificava até há pouco Milo Yannopoulos, até aos nazis confessos, com suástica e tudo, do Daily Stormer. Donald Trump usou muito estes neonazis como tropa de choque digital, legitimou a sua ideologia, dando voz às ideias racistas e xenófobas, e ofereceu-lhes uma expressão popular que dantes não tinham. Aliás, vários neonazis afirmaram que a sua candidatura era uma oportunidade de verem essa ideologia sair da marginalidade e manifestaram adesão entusiástica. Entre esta gente Donald Trump é muita vez referido como Deus Imperador, referência ao romance de ficção científica Dune.
A expressão desta corrente é, mesmo assim, extremamente minoritária, mas ganharam lugares de grande projeção no regime de Trump, em particular Steve Bannon, de quem muitos dizem ser o verdadeiro presidente ou quem mexe os cordelinhos do fantoche Trump, o arquiteto da exclusão dos muçulmanos e de outras medidas particularmente odiosas, dado que Trump não tem, por si próprio, capacidade mental para tais voos. Além disso, o Partido Republicano, cujo espetro ideológico já se tinha deslocado fortemente para a extrema-direita, está a ser ativamente colonizado por esta infestação.
Da ironia à radicalização
Mesmo assim, convém perceber que o alt-right, se manifesta todos estes sinais inquietantes, não é um partido organizado nem tem uma estrutura com o mínimo de disciplina. É antes uma horda, ou um agrupamento de hordas em que os seus membros manifestam grande disparidade ideológica ou graus de consciência muito diferentes sobre as consequências ou implicações da sua atividade. Uma caraterística geral do alt-right é a ironia, mas é esse também o mecanismo insidioso que promove a normalização das ideias racistas, xanófobas e finalmente nazis. Entalados numa polémica, os membros podem sempre dizer que as ideias que exprimiram não são para serem levadas a sério. Se para os mais inconscientes isso é um mecanismo de defesa natural, para os membros do partido interno trata-se de uma tática para mimimizar a oposição, mas a suposta ironia desaparece quando discutem entre eles.
A metáfora que usam é a da pílula vermelha contra a pílula azul, correspondente a uma situação do filme Matrix, em que ao herói Neo é oferecida a opção de tomar a pílula vermelha, enfrentar uma realidade cruel e poder sair da Matrix, ou com a pílula azul continuar prisioneiro, feliz e iludido. Este tipo de ideia é característico dos cultos, pois dá aos neófitos a sensação de superioridade por terem acesso ao conhecimento privado, ao mesmo tempo que os absolve dos juízo moral comum a toda a comunidade.
A sopa
As diferentes hordas do alt-right, de acordo o o explicitamente nazi Daily Stormer, são as seguintes:
- Os trolls – estes são o substrato geral dos provocadores da Internet. Subrepticiamente, foram passando das piadas racistas e antissemitas para esses sentimentos levados a sério.
- Os malucos da teoria da conspiração – da convição de que lagartos extraterrestres dominavam o poder na Terra e de que o governo aspergia as populações com os jatos comerciais, evoluiram suavemente para sustentar as peorias da conspiração do alt-right, nomeadamente a cabala judaica.
- Os libertários – muitos dos adeptos do neoliberalismo extremo, desiludidos com o pouco sucesso das candidaturas de Ron Paul, começaram a aproximar-se do alt-right. Como a ideologia de Ron Paul sempre teve um lado fortemente racista, não custou assim tanto.
- A manosfera – os vários grupos antifeministas e sexistas, incluindo os defensores dos direitos dos homens, os que recusam de todo a companhia de mulheres e os artistas do engate. Alguém lhes deve ter soprado ao ouvido que o feminismo tinha uma origem judaica(!) e pronto, tornaram-se antissemitas e lá engoliram o resto da pílula vermelha.
- Os velhos fascistas / nazis / confederados – esta é a velha corrente nazi e supremacista branca que está a gozar o ressurgimento das suas ideias junto de alguns jovens, sem saberem muito bem como.
- O GamerGate – os enxames de trolls surgidos do GamerGate, encorajados e agora cada vez mais enquadrados pelos recrutadores fascistas.
Falei no início da importância chave das brigadas de desordeiros na génese dos movimentos fascistas autênticos. A situação nos EUA não corresponde (ainda) de modo nenhum à generalização destes grupos na rua, a atacar fisicamente as manifestações políticas e reivindicativas da esquerda. Até agora, fizeram sobretudo arruaças na Internet. Mas a situação é muito séria e ninguém pode adivinhar o que está para vir. Nem é obrigatório que o fascismo nos EUA passe por grupos de choque de camisas de alguma cor particular. Em Portugal, por exemplo, não existiram.
Estes sinais fascistas são muito importantes também na Europa. Sob o patrocínio de Putin, está-se a desenvolver uma espécie de Internacional Fascista que se prepara para assaltar as democracias tradicionais e destruir a Comunidade Europeia. O caso Putin-Trump não é um fait divers. Pelo contrário, corresponde a orientações estratégicas claras e coerentes de uma parte do capital. Tempos difíceis que se aproximam.
* Nos EUA liberal é alguém de posições progressistas, ao contrário da Europa, onde a palavra denota habitualmente políticos de centro-direita. Também lá, libertário é um adepto do capitalismo sem quaisquer entraves, enquanto aqui é um tipo de anarquista.
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