China: desinformação sobre os uigures
Quinta-feira, 17 de setembro de 2020, por Vanessa Frangville
Tradução de um artigo publicado no Europe Solidaire sans Frontières e no Le Monde em 17/9/2020
Vanessa Frangville é professora de estudos chineses e diretora do centro de pesquisa EASt da Universidade Livre de Bruxelas
Questionado sobre a questão uigur durante a sua visita relâmpago à Europa, no final de agosto, o ministro chinês das Relações Exteriores, Wang Yi, iludiu a questão sob uma enxurrada de estatísticas enigmáticas. Pequim persiste na desinformação sobre o assunto, desde que a ONU divulgou um relatório contundente, em agosto de 2018, sobre a situação na região de Xinjiang, nas fronteiras da China e da Ásia Central. Há mais de dois anos já, portanto, que as evidências se acumulam, que os depoimentos circulam e que as análises se sucedem.
Todos os relatórios de especialistas, sem exceção, concluem que se estabeleceu uma sociedade de vigilância panóptica, a prisão em massa e arbitrária de elites intelectuais e económicas e o envio à força para campos de detenção e de trabalho de milhões de uigures. Partindo de uma retórica fabricada em torno de inverdades e clichés, os líderes chineses defendem pelo mundo o seu modelo de "contraterrorismo", enquanto lembram agressivamente que se trata de "assuntos internos chineses".
Acima de tudo, essas medidas repressivas revelam o fracasso do estado chinês em integrar as suas periferias. Wang Yi disse, durante a sua visita a Paris, que a população uigur duplicou em setenta anos. Mas não diz que hoje representam apenas 40% da população da região, contra 80% em 1949. As migrações maciças de colonos para a região, primeiro militares e depois civis, foram orquestradas pelo estado, levando à discriminação no emprego para jovens graduados uigures e a uma apropriação dos recursos por migrantes que, muitas vezes, são subqualificados e não querem mudar o seu estilo de vida nessas novas terras garantidas.
De acordo com Wang Yi, a política de planeamento familiar não se aplica aos uigures. Na verdade, as autoridades locais investiram mais de 13 milhões de euros em 2019 na prevenção das gravidezes. Os uigures nunca foram excluídos das políticas de redução de nascimentos, mesmo que os moradores das cidades só tenham tardiamente sido forçados a adotar a política do filho único (não aplicável à China rural, de qualquer maneira). Além disso, muitas uigures testemunharam esterilizações e abortos forçados durante anos.
Crianças uigures
Campos de internamento
Pequim afirma que o objetivo dos campos de internamento é prevenir o radicalismo religioso por meio da educação e da integração pelo trabalho. Um projeto “educacional” que conta com um orçamento de segurança aumentado em 90% na região em 2018... A maioria dos casos de desaparecidos atesta outra realidade: professores universitários, funcionários públicos de todos os níveis são visados – muitas vezes membros do partido – comerciantes, médicos, escritores ou artistas.
De jovens do ensino secundário a aposentados na casa dos setenta, sem distinção, uma grande maioria da população uigur terá, nos últimos anos, feito uma "estada voluntária", mais ou menos longa e mas sempre penosa, num desses campos cercados por arame farpado e por torres de vigilância. Todos saem de lá esgotados física e mentalmente, alguns morrem lá em circunstâncias nunca elucidadas, às vezes sem que a família possa ver o corpo.
Quanto à liberdade religiosa evocada por Wang Yi, era preciso que as as 24.000 mesquitas que citou fossem de acesso livre, sem câmaras e outras ferramentas de vigilância em todos os cantos. As outras formas de práticas religiosas, que o ministro tem o cuidado de não referir, vão desaparecendo com a demolição dos locais de culto, a proibição das reuniões e a “disneyificação” dos espaços sagrados.
Assédio moral
Os uigures no exílio, parte deles cidadãos europeus, denunciaram a pressão das autoridades chinesas ao tomarem os seus familiares como reféns para lhes impor silêncio: 58 uigures apresentaram uma queixa ao governo holandês, para que aja contra essas repetidas ameaças, e muitos outros na França ou noutros lugares testemunharam esse assédio. "Ela está no hospital e terá alta se te calares", disseram a uma uigur radicada na Escandinávia, que, finalmente, ficou encantada porque, após dois anos de mobilização da sua parte, a sua prima teve finalmente alta de um campo de detenção.
“Garantir os direitos dos cidadãos”, para Wang Yi, na verdade significa interná-los às centenas de milhares e abrir apenas três vias de saída para os detidos: a condenação criminal, desde alguns anos de prisão até à pena de morte (sem julgamento e com acusações vagas); o trabalho forçado (ou pago a preços bem abaixo dos salários médios, sempre sob coação); uma residência fixa com proibição de viajar e, muitas vezes, a obrigação de participar na propaganda oficial, concordando em louvar o Partido nos meios de comunicação chineses.
Esses factos não podem ser verificados pelas capitais europeias: os seus representantes não são bem-vindos na região. Pesquisadores, jornalistas independentes e especialistas internacionais também não podem viajar livremente até lá, para conduzir investigações solicitadas por uigures e por organismos internacionais.
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