Anomalias

Sé todos los cuentos
Yo no sé muchas cosas, es verdad.
Digo tan sólo lo que he visto.
Y he visto:
que la cuna del hombre la mecen con cuentos,
que los gritos de angustia del hombre los ahogan con cuentos,
que el llanto del hombre lo taponan con cuentos,
que los huesos del hombre los entierran con cuentos,
y que el miedo del hombre...
ha inventado todos los cuentos.
Yo no sé muchas cosas, es verdad,
pero me han dormido con todos los cuentos...
y sé todos los cuentos.

León Felipe (1884-1968)

Há muitos anos, li um romance célebre de ficção científica de Isaac Asimov: a "Trilogia da Fundação". Tinha um enredo majestoso: um império galático decadente iria cair e arrastar a humanidade para milénios de barbárie. Um sábio fundador de uma ciência chamada Psico-História, capaz de prever os destinos da galáxia, concluiu que seria possível evitar essa idade das trevas se criasse duas fundação que preservassem a cultura… e tal e tal.

Bom, o bom do sábio lá criou a sua fundação e o esquema estava a resultar (com muitas peripécias pelo meio, evidentemente), quando surgiu uma anomalia a pôr em causa todo o devir histórico planeado por Seldon. Tratava-se de um mutante humano, com enormes poderes mentais, que pretende criar um império artificial, prematuro e espúrio. O resto do romance é a luta entre as fundações e esse mutante, o Mula.

Asimov confessou que se inspirou no livro de 1776 "História do Declínio e Queda do Império Romano", de Edward Gibbon. Esse tratado monumental é considerado o primeiro livro moderno de História. Nele se contém a ideia de que a queda do Império e a sequência de tempos de anarquia e regresso cultural da Idade Média eram processos profundos, tectónicos, inevitáveis no devir histórico.

Bom, mas há mais gente a prever o processo histórico… e a encontrar anomalias.

Escrevendo em 1930, Asimov não podia ignorar o elefante presente na sala, a ideologia marxista. No esquema de Marx, ao feudalismo sucedeu-se o capitalismo. Seguir-se-ia inevitavelmente o socialismo e o comunismo.

Porém, as anomalias abundavam na análise marxista, tanto no passado como no presente. Na transição para o século XIX, já o Império Napoleónico é uma anomalia massiva. Se a análise marxista não existia no seu tempo, nem por isso as explicações a posteriori são satisfatórias. Por outro lado, a Comuna de Paris de 1871 enche Marx de certeza, pois anuncia o sentido da futura revolução.

Mas o século XX, em vez de certezas, trouxe ainda mais anomalias. Para começar, a I Grande Guerra (1914-18). Os marxistas tinham uma solução para evitar a carnificina: greves gerais e protestos contra a guerra nos países beligerantes, na linha do internacionalismo dos trabalhadores. O que não previram foi a enorme onda de nacionalismo popular suicida que varreu os países em causa. Subitamente, a luta contra a guerra tornou-se impossível. E que fazer se a oposição à guerra vingasse num país, mas não no país agressor? Não havia soluções claras, nem sequer a questão se chegou a pôr. Grande parte dos partidos operários, em vez de atacar os seus dirigentes imperialistas, aderiu à loucura belicista. Os poucos marxistas internacionalistas ficaram isolados.

Venceriam o isolamento quando as consequências da carnificina se mostrassem aos olhos de todos?

Outra anomalia, a maior de todas, aconteceu durante a guerra: a Revolução Russa.

A análise marxista sobre a Rússia considerava que o império dos czares não estava pronto para a revolução socialista. Era uma sociedade profundamente atrasada, rural e ainda semifeudal. A revolução possível seria democrática e burguesa. Só depois de um período de desenvolvimento económico e social capitalista é que a Rússia estaria pronta para o socialismo.

Mas a particular espécie de marxistas que dominava a agitação popular em Petrogrado era outra anomalia. Em vez da prática mais ou menos democrática, sindical e eleitoral dos marxistas da Europa Ocidental, os bolcheviques tinham sido forjados no trabalho clandestino, nas prisões e nos exílios na Sibéria. No meio do caos da revolução que começara em Fevereiro de 1917, viram a oportunidade de executar um golpe e tomar o poder.

As ideias de Marx acabavam assim por vingar no mais improvável dos países, no qual os marxistas garantiam que não seriam viáveis.

Varna, monumento

O caráter autoritário e desumano da arte comunista é patente neste Monumento à Amizade Búlgaro-Soviética, em Varna, Bulgária.

Os bolcheviques acreditavam que o seu poder era parte de uma revolução mundial em curso. Só tinham que se manter no comando o tempo suficiente para a revolução vencer nos países mais avançados, em especial na Alemanha. Quando isso acontecesse, a Rússia revolucionária deixaria de estar isolada e passaria a estar integrada numa economia socialista avançada.

Para evitar que o precário poder na Rússia lhes escapasse das mãos, os bolcheviques não olharam a meios. Proibiram todos os outros partidos, instituíram uma polícia política semelhante à dos czares e venceram uma feroz guerra civil.

Mas a Europa não correspondeu às expetativas dos comunistas. A revolução alemã de 1918-19 e 1923 falhou. Tentativas revolucionárias na Polónia e na Hungria não duraram muito.

A Rússia revolucionária ficou isolada. As soluções ditatoriais que os bolcheviques tinham usado (talvez) imaginando que seriam excecionais, tornaram-se a regra.

A Rússia tornou-se assim União Soviética, a mais estranha das anomalias: a vitória do socialismo num país em que os trabalhadores não tinham direitos políticos nem laborais, um país governado por conselhos eleitos onde uma só lista era votada1, onde o poder era exercido por uma casta de burocratas partidários que se demitiam, prendiam e assassinavam uns aos outros de forma atroz. E prendiam, torturavam e assassinavam números impressionantes dos seus cidadãos indefesos.

Mas, para os socialistas e revolucionários do mundo inteiro, a URSS era uma esperança fortíssima. A revolução tinha vencido! Em breve chegaria a vez dos proletários de todo o mundo. No maior caso de dissonância cognitiva2 de talvez toda a História, não podiam admitir que o seu sonho estava a correr catastroficamente mal.

Entretanto, outra gigantesca anomalia germinava. A análise marxista não entendeu o nazismo e o fascismo. Na Alemanha de Weimar, a política dos comunistas era o combate prioritário aos sociais-democratas, os seus antigos camaradas moderados. Durante anos, piquetes comunistas atacavam, em colaboração quase aberta com os nazis, as reuniões sociais-democratas, no que foi chamado mais tarde o desvio esquerdista, marcado também por uma tentativa desperada de revolução armada, em 1923.

E se não entenderam o perigo nazi, menos ainda estavam preparados ou anteciparam o terror que se abateu sobre a Alemanha assim que Hitler tomou o poder.

A análise marxista encarava a luta de classes irredutível entre os poderes capitalistas e a União Soviética. Por isso, Estaline nunca acreditou quando o Reino Unido o avisou da invasão iminente da URSS pelos nazis e lhe ofereceu aliança.

Mas, por essa altura, as anomalias eram a regra. Já não restava qualquer coerência ao suposto processo histórico marxista. Até o pensamento marxista, ele próprio, já pouco mais era que propaganda justificativa das conveniências da chefia soviética.

A União Soviética teve que sustentar, heroicamente, o grosso da luta contra Hitler na II Guerra Mundial e o preço pago pelos seus cidadãos foi terrível. Parte importante desse preço deveu-se a erros dos seus dirigentes. Mas, talvez outra anomalia, o resultado da guerra levou a uma posição dominante da URSS entre os países vencedores. Possibilitou a invasão de toda a Europa de Leste e a criação de regimes comunistas. Nenhum desses regimes resultou de revoluções, mas de invasão militar, e todos foram obrigados a imitar servilmente a ditadura estalinista.

Todo o período em que os Estados Unidos exerceram grande supremacia, num período de relativa prosperidade, inclusivamente na Europa Ocidental, também não estava nas previsões. O que era antecipado era um período de instabilidade e guerra generalizada.

A Revolução Chinesa de 1949, outra anomalia. Resulta, não de qualquer movimentação política da classe operária, mas de uma guerra civil travada por camponeses e levou igualmente a uma sociedade distópica.

Durante a Guerra Fria, os marxistas geralmente acusam os EUA de sustentarem os regimes mais antidemocráticos, desde que apoiassem a sua posição, e de derrubarem regimes democráticos por serem contrários aos seus interesses. Isso é verdade, como mostra o exemplo português, entre muitos outros. Mas esquecem-se de confessar que fizeram exatamente o mesmo por todo o mundo. É muito possível que tenham contribuído, em parceria com os seus opositores, para que, na maioria dos países que resultaram do movimento anticolonial sequente à II Guerra Mundial, mandem ditaduras antidemocráticas e corruptas.

Aliás, as exigências democráticas que tinham sido essenciais aos movimentos progressistas antes de 1917, desapareceram, substituídas por denúncias da democracia burguesa. Os regimes marxistas eram demasiado vulneráveis a reivindicações desse tipo.

O pior dos resultados ainda acabaria por acontecer: o afundamento por implosão da URSS em 1991, sem que o povo mostrasse qualquer apego às conquistas do socialismo, antes a mostrar-se ansioso por voltar ao capitalismo. Anomalia?

Outra grande, enorme anomalia ameaça a humanidade: o aquecimento global e várias catástrofes iminentes relacionadas com a poluição e com a insustentabilidade. Como de costume, o marxismo nem previu nem se interessou muito. Aliás, os regimes comunistas foram especialmente desastrados e descuidados nos seus países a gerir questões ambientais.

O método de análise marxista continua sem mudar: Analisar uma situação que não souberam prever e demonstrar que aquele resultado resulta necessariamente das posições das classes em conflito, das contradições das classes dominantes e por aí fora.

Ou seja, apoderar-se de profecias que não fizeram sobre eventos já passados, para errar catastroficamente todas as previsões sobre o futuro.

A única conclusão possível é que o marxismo é inválido. Nenhuma das suas análises históricas se mostrou certeira, nenhuma das suas promessas políticas deu fruto.

Significa isto que se deve perder a esperança no aumento da justiça social no mundo?

Não. Significa que quem quer lutar por justiça social escusa de tentar apoiar-se em previsões infalíveis sobre o destino da História.

Os marxistas nunca compreenderam a História.

Não são só eles: Ninguém entende a História. É imprevisível.

O futuro mantém, espero, promessas de uma vida melhor. Chame-se socialismo, chame-se outra coisa qualquer. Não sabemos.

Mas essas promessas não resultam de nenhum destino inelutável.

Só podem resultar das aspirações humanas, da luta e do empenhamento de ativistas e cidadãos.

Essa é a única garantia que temos.

As anomalias são a regra, no fim de contas. Estejamos abertos a enfrentá-las.


A situação era pior do que haver só uma lista. Os votos em branco eram considerados a favor da lista apresentada. Era possível votar contra a lista apresentada, mas os votos brancos (favoráveis) eram simplesmente devolvidos à mesa de voto para os meter na urna, enquanto, para votar contra, era preciso ir à zona reservada para escrever no boletim. Portanto, quem quisesse exprimir desacordo era automaticamente sinalizado para perseguição policial.

A dissonância cognitiva ocorre quando existe uma incoerência entre as atitudes ou comportamentos que alguém acredita serem certos e o que realmente é praticado.

 

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