Investigação a uma padeira
[Aparte sobre o pintor Rafael mencionado na mensagem anterior]
As obras de Rafael são uma delícia para os olhos. Ainda mais para alguém como eu, militante de base que paga de vez em quando as quotas do partido da arte, olhando com humildade para o que faz um dirigente histórico. Mais do que o público, o praticante compreende os problemas técnicos e artísticos resolvidos de forma genial nas obras dos grandes mestres.
Rafael, La Fornarina (A Padeira), Palácio Barberini, Roma.
Fonte: Wikipedia.
Passe o rato sobre a imagem para ver a correcção do tamanho da cabeça.
Pode ver ver aqui, na Wikipedia, o quadro ampliado.
Mas o praticante vê-se também confrontado com insidiosas questões: as imperfeições que saltam aos olhos. Que fazer? Quem sou eu para criticar Rafael?
E serão mesmo imperfeições? A forma de olhar para o corpo humano evoluiu. Hoje somos assaltados constantemente por fotos que nos demonstram de forma mecânica, quais são as suas proporções.
Eis aqui Rafael a representar uma mulher, diz-se que a sua amante, Margherita Luti, cujo corpo conhecia de cor e salteado, talvez melhor que ela própria. Múltiplas indicações, a começar pelos nossos próprios olhos, dizem-nos que Rafael era, além de pintor, um desenhador genial.
No entanto, não há forma nenhuma de aqueles ombros descaídos e fracos, de senhora nobre e indolente, sustentarem os fortes braços de camponesa. E a cabecinha, não está pequena de mais?
Olhando com mais atenção, parece haver aqui duas obras. Da altura dos seios para baixo, o traço é vigoroso, o tom da pele é mais cor de terra. Dos seios para cima, o tom de pele é mais amarelado, o traço mais discreto, usa-se mais o sfumato.
Meti a gravura no Gimp e fui investigar. Inicialmente pensava que eram os ombros que deveriam ser mais fortes (ou os braços mais fracos). Mas logo percebi que era a cabeça. Aumentei-a (com um pouco de exagero, para efeitos de polémica) e subitamente fiquei a contemplar uma mulher muito mais real, mas também muito mais comum e popular, uma romana de Quinhentos.
Rafael podia tê-la desenhado e pintado assim, se quisesse. Mas deixaria de parecer uma deusa do Olimpo, o que possivelmente era a sua intenção.
Rafael era um homem do Renascimento e ambicionava, acima de tudo, cumprir os cânones. E as dimensões da cabeça em relação ao corpo estavam nos cânones. De um modo geral, os homens da Renascença não se interessavam pela realidade comum, apenas a usavam para representar realidades idealizadas, como a vida dos santos ou os deuses no Olimpo. E deformavam-na com esse fim.
Outra hipótese: Maria e não Margherita?
A Fornarina é de 1519 e está no Palácio Barberini, em Roma. Três anos antes, em 1516, Rafael pintou a mesma pessoa, a Mulher de Véu (La Velata), desta vez com proporções perfeitas. Está no Palácio Pitti, em Florença. A minha intuição diz-me que este é um Rafael completo, genial de uma ponta à outra.
Rafael, A Mulher do Véu (La Velata), Palácio Pitti, Florença. Fonte: Wikipedia.
Pode ver ver aqui, na Wikipedia, o quadro ampliado.
Diz se que La Fornarina estava no atelier de Rafael quando este morreu em 1520 e foi modificado e vendido pelo seu assistente, Giulio Romano, que viria a iniciar o Maneirismo e está na origem da gravura erótica classicista.
Diz-se também que Rafael se casou secretamente com Margherita, uma plebeia muito abaixo da condição do artista, e resistiu durante anos a uma noiva que lhe era imposta, Maria Bibbiena, sobrinha de um cardeal Medici. Os seus discípulos parecem ter tentado afastar Margherita depois da morte de Rafael, fazendo crer que o casamento com Maria teria tido lugar in extremis.
Diz que tanto La Fornarina como La Velata retratam a mesma mulher, Margherita Luti. Claro que é a mesma mulher. Mas eu digo que é mais provável que se trate de Maria Bibbiena. Isso explica o facto da parte de cima da Fornarina não me provocar a sensação de ser de Rafael, mas a parte de baixo sim. A Velata seria um retrato de Maria Bibbiena, feito todo ele por Rafael; a Fornarina seria um retrato de Margherita também por Rafael, mas repintado parcialmente por Giulio Romano para representar também Maria, promover a ideia do casamento no leito de morte e esconder ainda mais o seu casamento secreto com a padeira.
No túmulo de Rafael está escrito: Ille hic est Raffael, timuit quo sospite vinci, rerum magna parens et moriente mori (Aqui jaz o famoso Rafael, por quem, enquanto viveu, a Natureza temia ser vencida, e quando ele morreu, ela temeu morrer também).
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