Acabou a festa!

Há muitos anos que frequento a Festa do Avante!, ano sim, ano não, nunca mais que um dia por sessão. Não concordo com praticamente nada do que lá se diz e aquelas imagens de mobilização de amplas massas comunistas, tudo cheio de foices e martelos e bandeiras vermelhas, trabalhadores de 50 anos de punho no ar e jovens a dançar a Carvalhesa, têm o seu quê de inquietante.

Encarei aquilo como uma espécie de universo paralelo. Um faz-de-conta gigante. 1989 não aconteceu. A União Soviética ainda existe e Brejnev ainda manda nela. O “socialismo” ainda é “real”. Os gulags são ainda negáveis. A maioria dos intelectuais ainda acredita no marxismo. A queda do último dos manos Castro em Cuba não é questão de meses. O marxismo não faliu. O PCP não está isolado no mundo. Ainda é um grande partido de massas e não foi ultrapassado pelo Bloco de Esquerda.

Ano após ano a ilusão vai-se desvanecendo. A Cidade Internacional, outrora povoada de poderosos “partidos irmãos” da Europa de Leste, cheios de ranchos folclóricos e exposições dos sucessos do socialismo nos seus países, está povoada de grupúsculos remanescentes da implosão dos grandes partidos comunistas de Espanha, França, etc. Até o sinistro pavilhão da Coreia do Norte deixou este ano de aparecer. Provavelmente dava demasiadas chatices aos militantes para justificar o convite. Os traficantes de droga e terroristas da FARC também. O que dá mais importância à Venezuela do Chavez, se bem que o entusiasmo não seja demasiado, de parte a parte.

As manifestações políticas foram diminuindo cada vez mais, para não aborrecer as amplas massas consumidoras de cerveja, bifanas, fado e rock.

Festa do Avante

Tenho ido lá mais pelos meus amigos, pela companhia. Ali, como em todas as iniciativas de animação, funciona o princípio da sopa de pedra. A pedra é a desculpa para realizar o evento, a que depois se juntam todos os ingredientes habituais: comes e bebes com fartura, música e convívio. Pão e circo. A pedra, neste caso a glorificação da política do PCP, enfraquece cada vez mais ou é cada vez mais intolerável e os ingredientes habituais tornam-se, como direi, mais banais, comezinhos, enfim, chatos.

2009, o fim da festa

Este ano dispus-me a lá ir mais uma vez, comprei a EP com antecedência e tudo. O que mais me interessava era um recital de ópera na sexta, mas nesse dia saí do trabalho às oito e já não me apeteceu lá ir. Também sei que as condições acústicas lá são totalmente inadequadas para música clássica e o público é ainda mais inadequado, só bom para concertos de rock. Yá, curte-me esta cena, meu, brutal!

Sábado depois do almoço, com a certeza de amigos no recinto, lá vou eu. Consigo estacionar o carro no meio da Amora, a quilómetro e meio da entrada. O melhor é marcar o ponto no GPS, senão nunca mais encontro o carro. O caminho é simples, basta seguir as filas de jovens vestidos de hippies. Chegado à entrada, grande desilusão: a EP tinha ficado nos outros calções! Lá vou à bilheteira e pago 25 euros pelo dia, quando a EP de três dias me tinha custado 19.

Lá dentro o calor é intolerável. Ao fundo, no palco principal, um grupo de rock qualquer faz um basqueiro terrível. Suponho que são os Peste & Sida, mas não compreendo nem reconheço nada do que tocam. Preciso de uma imperial. Vou ao pavilhão de Coimbra. Coimbra, Porto, Faro, Setúbal, não interessa, é tudo igual: são apenas tascas.

Sou interceptado pelo meu amigo Ricardo, que vem acompanhado por uns tipos que conheceu nas férias. O Ricardo é comunista, eu sei. Os outros também, que outra desculpa existe para virem de Côja ao Seixal num dia de calor? Todos felizes por parecerem muitos.

Lá bebemos umas imperiais, à sombra, o que foi realmente um alívio. A minha amiga não atende. Verifico horrorizado que, ao trocar de telemóvel, perdi todos os contactos que não estavam no cartão. Quer dizer que não posso contactar mais ninguém dos que sei que estão aqui.

Entretanto o concerto de rock acabou e o nível sonoro aproxima-se do tolerável. Desço a avenida principal, no meio de multidões de garotas cheias de saúde, suadas e de unhas pintadas nos pés cheios de pó. Moços entusiasmados com as bebedeiras que já apanharam ou vão apanhar. Tipos da minha idade, com as suas barrigas e bonés do Che. Bebés infelizes com o calor.

Começo a ter um forte ataque de agorafobia. Bem, eu não sou realmente agorafóbico, o que me dá é para pensar com muita convicção: “Mas que diabo estou eu aqui a fazer?” Subitamente, mulheres lindas e desejáveis parecem animais estranhos, moços pacatos nos seus habituais gritos alcoólicos tornam-se inquietantes, todo aquele espectáculo adquire um tom grotesco.

Vou até junto do rio, para me acalmar e apanhar um pouco de fresco. Grupos de jovens descansam na relva. O odor a passa é intenso. A minha amiga continua a não atender.

Os contratempos e o desconforto são apenas indicadores de uma decisão política, estética e ética que tem de ser tomada. Conheço os sinais. Um tera ou dois de informação mudam de sítio na minha cabeça.

Pronto, já está. Não volto cá mais.

Subo a avenida, saio, nem aceito o carimbo para poder voltar.

Contando a EP e o bilhete do dia, 44 euros por uma hora de confusão.

Já cá fora, a minha amiga liga-me finalmente.

Tarde de mais.

Comentários

  1. Anónimo7/9/09

    Uma bela descrição do que é hoje a festa do Avante.Caro amigo:eutambém com uma intensa experiencia destas festas que marcaram uma geração e uma época( 25A,PREC,Verão quente...etc)ás tantas tb me apercebi que isso tudo foi (e está) esquecido.Como já não posso fazer outro 25A fico-me por aqui, do lado de fora da Atalaia, a ver o desenrolar do espectáculo.Dentro de dias vamos ter mais um episódio desta telenovela em que se transformou este Paíse aí,mais uma vez, a esperança é que isto se endireita senão,estão a ir para o mesmo caminho que eu com o avançar da idade.
    boa noite e um grande abraço

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