Globalização no Portugal profundo

Praia do Alfamar, 18/09/09

Praia do Alfamar, 18/09/09

Finalmente estou a trabalhar para o bronze. Já tenho até umas queimaduras, sem as quais não me atreveria a voltar à Grande Lisboa. Já não tenho família em Portimão, onde cresci, pelo que desta vez vim parar a Boliqueime, terra dos meus pais.

O Algarve que eu conheci em garoto já não existe (felizmente!). Saí de cá cedo, sem ter acompanhado as grandes mudanças que o tempo e o turismo operaram. As pessoas falam-me de  uma nova toponímia com nomes de empreendimentos turísticos (Quinta do Lago) ou praias outrora ignoradas que se tornaram famosas por causa de gente famosa (do Alemão, dos Tomates, do Ancão). Não conheço nada disso.

Boliqueime, pelo contrário, está cheia de imagens da minha infância. Houve muita construção, é claro, mas nada da avalanche de betão que soterrou os Olhos de Água, por exemplo. Apesar do mar se ver no horizonte, a distância da costa salvou o sítio. Ando pelas ruas sonolentas esmagadas pelo sol, vejo casas que reconheço, os habitantes parecem tão apostados em ignorar o presente como há quarenta anos, só que agora muito mais velhos.

Boliqueime

Boliqueime

 

Boliqueime é um sítio hostil para mim. Foi onde decidi virar costas às amêndoas e às alfarrobas, romper com a beatice familiar, com a fé dos fatos suados de domingo sob uma abóbada rachada. Trocar tudo isso pelas ideias novas que circulavam na juventude da Casa Inglesa, em Portimão, deixar crescer os cabelos, ouvir Zeca Afonso e os Beatles, conversar com os turistas, finalmente ir para Lisboa.

Boliqueime mudou pouco. A Via do Infante passa perto, foi construído um cemitério gigante, há um grande lar para idosos. Muita gente parece ter enriquecido com terrenos. Poucos parecem ter enriquecido com ideias novas. A poeira branca de caliça continua a querer cobrir tudo. As mulheres já não usam véus pretos nem os homens chapéus de abas. Talvez os usem por dentro.

Vejo de longe as pessoas a sair da missa de domingo. Juntam-se à porta da igreja, mancha escura contra o branco ofuscante das paredes, em grupo compacto, cumprimentando-se e tagarelando. Estarão a pensar no que vão fazer a seguir? Estarão a acostumar os olhos ao sol do meio dia?

À noite, vou tomar um café e um meio whisky a um bar sem nome que já era taberna quando eu era garoto. No balcão central uma adolescente ucraniana repõe as minis, de tempos a tempos, à frente de três zombies alcoólicos que a despem com olhos mortiços. Devem estar ali há horas. Outro zombie, no canto oposto, insurge-se contra os ordenados das estrelas de futebol. Dois homens mais novos gracejam em russo com a empregada. Um deles, alto, louro, de olhos azuis e com um penteado à Elvis, parece cair nas boas graças dela, a julgar pelo seu body talk. No bilhar, uma ex-beldade inglesa exibe um decote demasiado grande para a qualidade da carne exposta. Sabe duas ou três palavras de português, portanto deve morar cá há anos. A amiga dela, talvez portuguesa, não larga os óculos escuros nem de noite. Os dois acompanhantes aparentam ser jovens de mais para elas. Um deles, não percebi bem, parece pertencer ao grupo dos ucranianos.

No meio desta variedade, não devo destoar. Será que pareço de cá ou de fora? Tenho medo de parecer de cá…

O boom do turismo dura há quarenta anos. O bloco de leste desmoronou-se há quase vinte. Portugal, entretanto, também fez umas piruetas. Vidas que o mundo soprou para aqui encontram-se num café ignoto, no lado pasmado do Algarve.

A globalização chegou a Boliqueime.

Comentários

  1. Anónimo21/9/09

    Valha-me Nossa Senhora das Dores, mais o São Sebastião (aquele meio abichanado) que são os padroeiros de Boliqueime.
    Uma boliqueimense

    ResponderEliminar
  2. Nossa Senhora das Dores? Não querem trocar por Nossa Senhora dos Prazeres? Era muito menos tétrico. Optimista, sei lá... Quanto ao São Sebastião, a lenda diz que foi vitimado por setas. A simbologia sexual das setas é evidente e os pintores medievais e barrocos, nada parvos, logo retrataram o rapaz numas poses lânguidas que sugerem homossexualidade. Porque não o substituem por um santo mais folião, como o Santo António? Encarregado de gerir as Fogueiras de Beltane, transferidas de Maio para Junho, desde que o deus dos cornos dos druidas foi despromovido a diabo, teve pelo menos que manter, à falta dos cornos, algum aspecto protector dos namorados. A Virgem Santíssima ficou com a maioria dos cultos femininos da Grande Mãe, depois Cybele, oriental, e da Bona Dea romana. E talvez também da Deusa dos druidas, que presidia com o deus dos cornos ao festival de Verão. As dores são importantes, eu respeito-as, sim senhor. Mas porque não celebrar os prazeres? Assim, as mulheres de Boliqueime, quando experimentassem as delícias do sexo, podiam honrar a padroeira: "Ai valha-me a Nossa Senhora dos Prazeres! Ai valha-me Santo Antoninho!"

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Comente, mesmo que não concorde. Gosto de palmadas nas costas, mas gosto mais ainda de polémica. Comentários ofensivos ou indiscretos podem vir a ter de ser apagados, mas só em casos extremos.

Mensagens populares deste blogue

Mamã, queremos viver!

São fascistas, sim