O cardeal

cardeal
O cardeal cabeceava sobre a sua secretária. Pilhas de jornais, documentos, dossiers rodeavam-no. As letras no ecrã do portátil tornaram-se indistintas. Esfregou os olhos, deixando escorregar os óculos. Ah, tanto trabalho! E a idade não ajuda…
Insensivelmente, a cabeça poisou sobre os cotovelos que, assentes na secretária, afastaram um pouco o computador. Vou só descansar um bocadinho, não me posso deitar ainda, pensou enquanto adormecia.
Acordou assustado. Havia Alguém na sala! Pela toga romana, a farta barba branca, a careca enrugada e a postura imponente, percebeu que estava metido em problemas.
O coração acelerou para valores perigosos para a sua idade. Prostrou-se no soalho, feito um muçulmano. (Porque é que não me aparece Cristo, o Espírito Santo ou mesmo a Virgem Maria? Sou algum judeu, para me aparecer Jeová?)

Com um pé enorme mas divinamente pedicurado, Jeová fê-lo levantar-se. Foi um gesto entre o empurrão e o pontapé. De pé, o cardeal olhava o soalho, sem se atrever a levantar os olhos. Fui tocado por Deus! Poderei chegar a Papa? Respirou fundo, ofegante. Com o coração a disparar assim, dificilmente lá chegaria…
Estou lixado com a tua cidade! — a voz profunda fê-lo estremecer.
Oh não! Ele quer destruí-la como fez com Sodoma e Gomorra! Foi aquela merda do casamento homossexual! Dispôs-se a fazer o papel heróico de argumentar com a quantidade de justos residentes para salvar a cidade.
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Começou em cem e parou em dez, não foi? Felizmente, esse capítulo do Génesis tinha sido revisto recentemente, por causa do Saramago. Mas quem teve essa discussão foi Abraão. A posição do cardeal na hierarquia não era assim tão alta. Seria encargo para o Cardeal Patriarca ou o Papa.
O seu papel era o de Lot, portanto. Mas esse foi visitado por três anjos, não foi? E tinha duas filhas virgens para oferecer à canalha lá fora…
E tinha uma mulher que foi queimada por ser demasiado curiosa. Pensar em ter mulher e duas filhas despertou uma dor antiga, um vazio triste na sua vida.
Estranhamente, esquecera-se de Jeová. Esquecera-se também do seu próprio celibato.
Lot foi viver com as duas filhas para uma caverna. Elas dormiram com o pai, em noites alternadas. As imagens impuseram-se, vívidas, a cores, a três dimensões, pele com pele, lábios com lábios: jovens apaixonadas sedentas de amor, abraçadas a ele na cama. Uma onda de vida tomou conta do seu corpo.
Levantou a cabeça da secretária e olhou confuso para o computador. Levou a mão às virilhas. O seu sexo tinha tinha-se levantado! O homem que ainda existia dentro do velho padre fora despertado pelo sonho erótico.
Sentiu-se culpado pelo desejo incestuoso das filhas que não tinha. Ou das filhas de Lot? A culpa ajudou-o a acalmar a luxúria, sua companheira constante de tantos anos, testemunha escondida de uma vida que não vivera, da sua humanidade secreta.
Lembrou-se de estar prostrado perante Deus, temendo pela destruição da cidade.
Espreguiçou-se e bocejou a caminho do quarto.
Que ideia mais parva!

Comentários

  1. Anónimo4/1/10

    Meu Deus, Virgem Santíssima! Digo-te, uma vez que sou católica mas nunca ninguém me perguntou se eu queria sê-lo, que o Cardeal também estaria sedento de paixão. E como mortal também tem direito aos seus momentos de prazer, quer dizer, de tesão. Bem, se Jeová ou Deus ou que lhe quiseres chamar, fosse realmente à semelhança do homem ( ou seria o homem feito à semelhança de Deus?!?) não se ficava pela destruição da cidade. Nem pensar!! Deus que se preze, convidaria o Cardeal que queria chegar a Papa, que sonha que é Lot e que tem 2 filhas virgens …/…., a visitar umas quantas casas de meninas ou a telefonar para alguma linha erótica ou…ou….ou. Enfim, o que não falta são ofertas de prazer, algumas bem caras! Mas, isso também não é problema porque o Cardeal vive às custas da Igreja Católica que por sua vez vive às custas dos crentes que não sabem que têm um Cardeal com ideias pouco próprias! Ai, Meu Deus!
    Resumindo: Desculpa se exagerei no meu comentário. Gostei muito do teu post! Está no ponto. Não mexas mais!!! Beijinhos. Margarida Almeida

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  2. sátira for the win!

    soltei um par de gargalhadas com este. mto bom.

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