Brutal! – Inflação semântica e luta pela atenção na linguagem urbana
Prometi que ia meter-me neste assunto e, para me preparar, revisitei o site de São Noam Chomsky, não vá eu dizer grossa asneira num terreno onde não tenho preparação. Mas Chomsky já não se interessa por linguística, apenas por activismo político. Será muito importante a seguir, quando eu for morder nas canelas do projecto imperial americano.
Depois de dar umas voltas pela Wikipédia, convenci-me que, se não me meter nos aspectos técnicos da linguística, provavelmente não serei queimado em nenhuma fogueira. Adiante, então.
Numa das minhas vidas passadas, fui revisor de Imprensa. Já escrevia sem erros, mas ganhei uma atenção maior à língua. Começou-me a interessar o problema da tensão entre a linguagem escrita e a falada. Esta tem regras completamente diferentes da linguagem escrita, porque as condições em que é produzida o são. É inventada no momento, sem ser revista, faz o seu trabalho e é logo esquecida. Tal como na linguagem escrita é relevante o suporte gráfico, na linguagem falada interessa quem diz, como o diz, em que situação social o diz.
Nasceram depois todos os media textuais, os SMS, os chat groups, o Messenger, o Hi5 e por fim o Facebook. A linguagem aqui é mais uma vez diferente, fruto de diferentes regras. Continua a ser imediatista, interactiva, de vida curta, mas a sua forma é textual. Por vezes os aparelhos, como os telemóveis, limitavam severamente as possibilidades. A indignação dos puristas é uma incompreensão do que são as condições da linguagem textada.
Os novos media textuais trouxeram à escrita largas camadas da população que a tinham abandonado desde o fim das cartas de correio e outra gente que nunca sequer se teria aproximado de tal prática.
Por fim, nota-se hoje no Facebook, volta o texto cuidado, revisto, com preocupações de estilo, equivalente à carta escrita. A evolução não pára aqui e não é impossível que se evolua brevemente para a comunicação audiovisual completa, o que trará uma nova forma de linguagem falada.
A luta pela atenção
Mas há um factor persistente, desde o convívio dos grupos informais urbanos à fala por telemóvel e à comunicação nos media sociais. A nossa sociedade vive saturada de comunicação e a atenção disponível é muito curta.
Captar a atenção dos outros é um objectivo constante de quem vive em sociedade, ou seja, todos nós. As crianças procuram captar a atenção dos pais e são consideradas umas chatas; no recreio do jardim infantil ou da escola a gritaria é total, precisamente porque cada criança procura chamar a atenção das outras.
Mais tarde o processo torna-se mais subtil e por vezes confunde-se com a procura da atracção sexual. Mas nem sempre. O captar a atenção é um processo mais vasto e persistente.
A fala é um dos meios para chamar a atenção. Num grupo informal, por exemplo de gente que se encontra no bebedouro do emprego ou numa mesa de café, como chamar a atenção, sabendo que esta é curta e que a disputamos com os outros interlocutores?
A estratégia mais comum, creio eu, é partilhar qualquer coisa. Mostrar roupa ou um telemóvel novo, oferecer comida ou brindes usa-se por vezes, mas o mais vulgar é partilhar informação ou uma experiência.
A informação pode ser um mexerico ou qualquer coisa que se viu na TV e que se imagina interessa a todos. A experiência a partilhar tanto podem ser as férias recentes num lugar exótico como um problema de estacionamento com a polícia, ou até o nascimento de um bebé na família.
Mas para ter sucesso, captar a atenção dos interlocutores, é necessário ter sérias aptidões de comunicação. Escolher o momento em que a atenção esteja disponível, o modo de introduzir o assunto. Para mostrar as fotos do sobrinho recém-nascido não é preciso cuidados, mas para falar das férias exóticas é preferível manobrar alguém para perguntar por elas. Senão cria-se anticorpos: Lá vem este gabar-se das férias…
Quem está a partilhar a experiência ou a informação terá que formatá-la para ser uma boa história, para manter a audiência suspensa o mais tempo possível. Terá que pintar o boneco com traços fortes, com tintas contrastantes. O boato que talvez seja verdade passa a certeza incontestável. O conflito com a polícia é descrito como uma injustiça grosseira, uma perseguição intolerável. O sobrinho recém-nascido torna-se um anjo absolutamente encantador. As férias pintam-se como uma experiência inolvidável.
Que fazem os outros interlocutores? Uma vez que permitiram que o nosso sujeito tomasse conta do palco, tornam-se automaticamente acólitos na sua celebração e rivalizam entre si para comentar de forma mais memorável a narrativa, continuando nessa posição a luta pela atenção. Cada um se mostrará mais chocado que os outros pelo boato, mais indignado com a polícia, mais enlevado com o bebé, mais fascinado com as férias. Eventualmente um deles aproveitará uma aberta e começará a contar uma história sua, apoderando-se do palco e continuando o jogo.
Estas histórias passam-se desde que o mundo é mundo, mas recentemente o tempo acelerou-se a a disponibilidade da atenção dos outros diminuiu. Isso criou uma tensão semântica. Cada pessoa tem de estar constantemente a inventar formas de se exprimir mais poderosas para lutar pela atenção dos outros.
A grande inflação semântica
Insensivelmente, a hipérbole tornou-se a imagem dominante. A procura de palavras cada vez mais poderosas levou a que perdessem valor. Absolutamente deixou de o ser, passou a ser apenas mais um superlativo. Extraordinário foi baixando de intensidade até significar interessante. Incrível não o é mais, é apenas um pouco fora do comum. Devastador já não devasta nada. Adorar já é só gostar um bocadinho.
Se alguém se atrever a dizer apenas que gostou de qualquer coisa ou que é bonita, é logo olhado com desconfiança: Não gostaste muito, pois não?
O poder do calão teve de ser chamado do seu gueto para a rua principal. Não basta dizer que aquele espectáculo não tem interesse. Temos que dizer que é uma m* com a entoação necessária. Todo o rico vernáculo foi posto ao serviço da nova linguagem urbana.
Os estados de alma e do corpo também sofreram com a inflação. Morre-se hoje várias vezes por dia, de vergonha, de raiva de tédio, de cansaço. Sobe-se ao céu na cama. A razão também é frágil: passamo-nos dos carretos ou salta-nos a tampa por tudo e por nada. Por vezes até nos salta a cueca, quando alguém não nos larga a braguilha.
Eventualmente tudo se gasta. Qualquer inovação semântica tem sucesso imediato, é copiada por todos, desvaloriza-se e morre num instantinho.
Neste preciso momento impera entre as mulheres uma expressão, creio, de origem brasileira: amei! Quero dizer, um sentimento outrora profundo e venerado, a base de todo o romance, é rebaixado a dourar as coisas mais mesquinhas: amei o teu comentário, amei a tua salada, amei a cor do verniz das tuas unhas dos pés. Ah, não! E quem ama a sério, como é que diz?
Mas os homens não andam melhores. Classificam tudo quanto lhes aparece à frente de brutal! Acho que devem ter começado a usar o adjectivo enquanto comentavam aqueles clipes de cenas cruéis que circulam na Web, como o soldado americano a ser decapitado ou a velhota a ser atropelada, e depois a coisa generalizou-se. Um concerto de rock é brutal, um recital de alaúde também. Um filme de acção é brutal, a mais fofa das modelos também.
Para rematar, uma sugestão: seria possível criar uma discreta conspiração de pessoas a escrever normalmente? Creio que neste momento o falar dentro do respeito da semântica tradicional e boicotar as hipérboles já seria suficientemente insólito para garantir a quem o faça a necessária captação de atenção.
Que acham? Brutal, não é?
Amei!
Nota: Quem usou amei, ou brutal, ou coisas semelhantes nos threads de comentários que eu frequento, por favor não leve a mal a crítica. Como explico aqui, o vocabulário é um jogo que todos temos de jogar e a que aderimos quase inconscientemente. A sequência das jogadas leva-nos para sítios inesperados, sem darmos por isso. Eu estou apenas a tentar tornar consciente e possível (talvez) de controle essa situação. Atacar pessoalmente alguém por isso está fora das minhas intenções. Se alguém se sentiu atacado, aceite as minhas sinceras desculpas.
Cá está o problema das hipérboles. Pus-me a olhar para a expressão “aceite as minhas sinceras desculpas” e pensei: Será que é uma expressão demasiado seca? Poderá ser interpretada como “não quero saber dos teus sentimentos”? Deveria ter escrito “o meu coração sangra solidário com a sua dor”? Mas isso poderia ser sentido como uma ironia. Grrr!
Percebem porque é que eu quero voltar à hierarquia semântica tradicional?
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