Frente às prateleiras do super
Assim de repente, lembro-me de quatro tipos de substâncias que podem ter efeitos importantes no nosso organismo: os alimentos, os medicamentos, os venenos e as drogas recreativas.
Os alimentos são os mais decisivos, já que a sua falta compromete a nossa sobrevivência. A forma como os ingerimos é gerida de uma forma complexa, onde entram comportamentos instintivos, questões culturais, preferências pessoais. Não é deles que falo hoje, nem das drogas recreativas. Decisivos são também os venenos, naturalmente. Em princípio, é de pensar que o melhor é nunca os ingerir. Mas, no entanto, muitos medicamentos são essencialmente venenos. Tudo depende da dose e das circunstâncias.
Os medicamentos é que têm o poder excecional de alterar a forma como o nosso organismo funciona. Esse poder, naturalmente, é perigoso. Assim, a ingestão de medicamentos encontra-se regulada de uma forma estrita, supervisionada por peritos (os médicos) e previamente estudada de forma exaustiva. Os únicos medicamentos de venda livre têm ação popularmente conhecida e são relativamente inofensivos.
No entanto, muitos dos produtos de grande consumo que adquirimos no supermercado gabam-se de extraordinárias qualidades medicinais. São os iogurtes que mexem na flora intestinal. São os dentífricos que exterminam as bactérias da boca. São os champôs que ressuscitam o cabelo. São os cremes com misteriosas propriedades rejuvenescentes. Pode-se levar alguma destas veleidades a sério?
Volto a afirmar: qualquer produto que tenha uma ação importante sobre o nosso organismo é perigoso. Os benefícios só podem ser garantidos se o tratamento for supervisionado por um médico. Além disso, isto é intuitivo, quanto mais poderosa ou mais rápida for a acção de um produto ou medicamento, mais arriscado ou mais sujeito a efeitos secundários. Como é que os fabricantes de produtos de grande consumo podem atrever-se a pôr no mercado produtos com uma ação médica definida, se não têm qualquer controlo sobre as grandes massas que vão consumir esses produtos, ou sequer acesso a elas?
Se esses produtos tivessem algum dos benefícios que os seus fabricantes reclamam, decerto, quando aplicados indiscriminadamente a tanta gente, iriam provocar inúmeros casos de alergias, incompatibilidades, rejeições, até de agravamento de outras patologias. Acontece sempre que se aplica o mesmo tratamento a muita gente sem considerar os problemas específicos de cada um. A literatura que acompanha os medicamentos nunca deixa de apontar os efeitos secundários e as incompatibilidades.
No entanto, nada disso acontece. Milhões de consumidores usam diariamente produtos e promessas sem que os seus organismos sofram nada de drástico. Que se passa?
Se deixarmos de olhar para o problema com os olhos do consumidor, que tem esperança que o próximo produto tenha finalmente efeitos milagrosos, e considerarmos o prisma do fabricante, a questão torna-se óbvia. É necessário criar a esperança de toda a espécie de propriedade maravilhosas, mas é preferível que o produto em si seja perfeitamente banal e previsível, para que não seja de esperar nenhuma reação adversa no contacto com um universo de milhões de pessoas. Qualquer percalço nesse domínio é extremamente perigoso e pode ir de processos com indemnizações milionárias à destruição da marca.
Portanto, podem ter a certeza que os produtos de grande consumo, por muito que o reclamem na TV, não têm quaisquer propriedades medicinais. Quase sempre, podemos ignorar a publicidade e comprar o produto mais económico. Verdade, verdadinha, depois de toda a hipérbole, o que acontece é que os detergentes, os champôs, os iogurtes e por aí fora cumprem a sua prosaica função e nada mais.
Os grandes fabricantes de produtos de consumo não se tornaram espertos sem fazer asneira primeiro. Lembro-me do caso do dentífrico Signal, nos anos 60. Tinha umas riscas vermelhas, que a publicidade dizia que eram hexaclorofene, um desinfetante poderoso. A coisa deu bronca, porque se soube que o hexaclorofene era cancerígeno. Eu era miúdo e lembro-me de poucos pormenores, mas sei que o dentífrico Signal desapareceu rapidamente do mercado. A partir de episódios como esse, creio que a indústria criou algum juízo — embora não o suficiente para contar a verdade aos consumidores, está bem de ver.
Quando estiver de novo em frente das prateleiras do super, lembre-se disto!
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