Onde é que eu nasci?
Para todos os efeitos legais e prosaicos, eu estou certo de que nasci há 62 anos, dois meses e 16 dias, ou mais precisamente há 22.693 dias, em Faro, na Rua de São Brás do Alportel, Freguesia de São Pedro. Não é disso que eu tenho dúvidas, naturalmente.
Nas aventuras de ficção científica que incluem viagens no tempo, como a série de filmes Regresso ao Futuro ou o clássico da literatura A Máquina do Tempo, de H.G. Wells, presume-se ingenuamente que os viajantes se deslocam para uma data futura ou passada, mas ficam no mesmo ponto da Terra de onde partiram. Isso é conveniente para o enredo das aventuras, mas ingénuo, porque sabemos que o nosso planeta se desloca pelo espaço a uma velocidade vertiginosa. Mesmo que fosse possível mudar magicamente a variável da quarta dimensão, uma viagem no tempo implicaria sempre uma translação gigantesca no espaço.
Claro que os escritores de ficção científica não são ingénuos e postulam um mecanismo qualquer para que o viajante do tempo acompanhe servilmente o planeta, assim como para que, por azar, não vá ocupar o locus de outro qualquer objeto, transformando-se os dois, supõe-se, em energia numa explosão pior que nuclear.
Mas eu não acredito verdadeiramente em viagens no tempo. Em vez disso, pus-me a pensar sobre o local onde nasci, sabendo que é hoje um ponto qualquer desolado, gélido e sem ar na imensidão do Espaço, sem memória da passagem da Terra por ali. Também não é exatamente um ponto, porque os bebés não nascem instantaneamente, a não ser para efeitos de ganhar o prémio de bebé do ano, mas façamos de conta que sim. Nem sequer considerei a hora a que nasci, só os dias.
Os números
Para não ter que fazer eu próprio as contas à velocidade da Terra e ficar na incerteza de me ter enganado, guglei um artigo do Scientific American intitulado How fast is the Earth Moving, da autoria de um professor de Física da Universidade da Virgínia, Rhett Herman. Suponho eu, pelas credenciais, ser pessoa confiável, apesar de ter nome de personagem de E Tudo o Vento Levou.
Diz o professor que, tendo a Terra um perímetro de 40 000 quilómetros, qualquer pessoa no equador dá uma volta por dia, o que situa a velocidade de rotação, para quem está na superfície e no equador, em 460 metros por segundo, ou seja, 1656 km/h.
Apenas por causa da rotação da Terra deslocamo-nos acima da velocidade do som, mas este número ainda é cosmicamente insignificante. É uma rotação, o que quer dizer que, se nada mais considerássemos, voltaríamos sempre ao mesmo sítio, todos os dias. Por isso a velocidade de rotação da Terra não é muito relevante, o que me dispensa até de calcular a diferença de velocidade entre o equador e o paralelo 38º N onde vivo.
A Terra também descreve, como todos sabem, uma órbita à volta do Sol. Sendo essa órbita mais ou menos circular, com um raio de 150 milhões de quilómetros, e sendo percorrida num ano, a velocidade da Terra é de 30 km por segundo, ou seja, 108 000 km/h.
A velocidade de rotação da Terra, perante isto, é irrelevante. Mas a órbita do nosso planeta é também um movimento cíclico e, se devidamente calculado, as minhas 62 voltas ao Sol, mais uns pozinhos, iriam certamente colocar o ponto do meu nascimento no meio do Espaço, mas ainda assim seria no interior aconchegado do Sistema Solar, dentro da órbita da Terra. Consideremos outros movimentos, então.
O nosso Sistema Solar, com todos os planetas a bordo, orbita o centro da Via Láctea à velocidade de 220 km por segundo, ou seja, 792 000 km/h.
Agora, sim! Não há qualquer hipótese de voltar ao ponto de partida. A esta velocidade estonteante, 19 milhões de quilómetros por dia, o meu nascimento terá sido num lugar a 431 mil milhões de quilómetros daqui, ou seja a mais de 2800 Unidades Astronómicas (uma UA é a distância média da Terra ao Sol, 150 milhões de quilómetros) mas ainda dentro dos limites gelados do Sistema Solar, a Nuvem de Oort* Interior, ou Nuvem de Hills.
Mas há mais movimentos a considerar. Todas as galáxias da nossa vizinhança (a nossa Via Láctea, as Nuvens de Magalhães e Andrómeda) estão a precipitar-se a 1000 quilómetros por segundo num abismo sinistro, o Grande Atrator, uma estrutura quase toda negra no meio do espaço intergalático a 150 milhões de anos-luz daqui. Uma coisa enorme, com uma massa milhões de vezes maior que a nossa galáxia, feita na maior parte de matéria negra. Feitas as contas, eu teria nascido a 1,9 biliões de quilómetros daqui (biliões europeus, milhões de milhões), ou seja, 1,9×1012 em notação científica, ou ainda 13 000 unidades astronómicas. Mesmo assim, ainda dentro dos limites da Nuvem de Oort Interior, ou Nuvem de Hills.
Todos os astros se movem em relação uns aos outros e é praticamente impossível nomear um ponto de referência que se possa, de algum modo, chamar absoluto. A coisa mais parecida com uma referência absoluta do movimento da Terra é o seu deslocamento em relação à origem do Universo, o Big Bang. O vestígio do Big Bang que pervade todo o nosso Universo é a Radiação Cósmica de Fundo (CBR) em micro-ondas, uma espécie de resíduo da explosão inicial.
Em 1989, o satélite COBE estudou esse fundo de radiação e determinou que a Terra se move, em relação a ele, a 390 quilómetros por segundo, na direção da constelação do Leão (não sei se isto anima os sportinguistas). A velocidade é menor que a corrida para o Grande Atrator, mas tem o fascínio de se apresentar como mais absoluta (seja o que for que isso quer dizer). O local do meu nascimento, em coordenadas oficiais relativas ao Big Bang, estaria então hoje situado a 765 mil milhões de quilómetros daqui, na direção oposta da constelação do Leão, ou 5000 Unidades Astronómicas. Como é de esperar, ainda dentro da nuvem gelada de cometas de Hills.
Sou do Espaço, mas sou, sem dúvida, um nativo do Sistema Solar.
* Para lá da órbita de Neptuno (30 UA) até 55 UA, temos a Cintura de Kuiper, feita de restos gelados do tempo do início do Sistema Solar, mas dela fazem parte três planetas anões, Plutão, Haumea e Makemake. Segue-se o Disco Disperso, cujos objetos têm órbitas muito excêntricas, podendo intersetar a Cintura de Kuiper no periélio, mas afastam-se muito no afélio. Esta zona vai até às 2000 UA, onde começa a Nuvem de Oort interior, ou Nuven de Hills, até aproximadamente às 50 000 UA, seguindo-se a Nuvem de Oort propriamente dita, que vai talvez até às 100 000 UA ou 0,8 anos-luz.
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