Leão Tolstói, o santo ímpio

2000 anos de descrença: Leão Tolstoi

18 de maio de 2020

Por James A. Haught

Este é o décimo quarto segmento de uma série de renomados céticos ao longo da história. Esses perfis foram extraídos de “2000 Years of Disbelief: Famous People With the Courage to Doubt” (2000 Anos de Descrença: Pessoas Famosas com a Coragem de Duvidar), Prometheus Books, 1996, publicado em inglês em Daylight Atheism (Patheos)

Muitas pessoas que rejeitam o cristianismo sobrenatural abraçam, no entanto, a mensagem de compaixão de Cristo. Leão Tolstoi (1828-1910) levou esse padrão ao extremo.

Renunciou à religião organizada e foi excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa ‒ mas tornou-se quase um monge, vivendo ao serviço dos outros.

Leão Tolstói

Considerado por alguns como o maior romancista de todos os tempos, Tolstoi nasceu na riqueza como um conde latifundiário que gozava dos privilégios da aristocracia russa sob os czares. Serviu como oficial militar na Guerra da Crimeia, casou-se com uma jovem esposa amorosa e teve muitos filhos. Os seus romances e contos profundamente emocionantes trouxeram-lhe grande fama e riqueza ainda maior.

No entanto, Tolstoi foi acutilado por dores morais crescentes, principalmente devido à desigualdade cruel da vida russa. Angustiava-o viver em bem-alimentado conforto, enquanto os camponeses passavam fome. Quando as mulheres aristocráticas de vestido decotado festejavam, enquanto os seus cocheiros tremiam lá fora na neve, sentiu uma profunda sensação de que isso estava errado. Incomodava-o o fato de os camponeses serem carne para canhão nas guerras e de os padres de arminho, ouro e jóias serem tão parasitas como os nobres.

Aos quarenta anos, Tolstoi passou pelo que o biógrafo Nathan Dole chamou "tempestade da alma", uma rebelião religiosa tão avassaladora como a sua ficção épica. Cada vez mais, duvidava do cristianismo ortodoxo e desprezava o seu grande poder na Rússia. Parou temporariamente de escrever ficção e produziu livros inconformistas, como “Crítica da Teologia Dogmática” e “A Minha Confissão”. Declarou que Cristo era só humano, que os milagres não são reais e que a humanidade não sobrevive à morte. Acusou os padres de perverter a mensagem humana de Jesus, transformando-a num veículo implacável de poder. Tolstoi chamou à Igreja "floresta impenetrável de estupidez" e "engano consciente que serve de meio para uma parte do povo governar a outra".

Os censores eclesiásticos proibiram a publicação desses livros e ordenaram a queima dos manuscritos. Mas houve cópias contrabandeadas para fora da Rússia, impressas no exterior e retornadas ao país, onde circulavam clandestinamente. Os padres denunciaram Tolstoi como um "infiel ímpio" e exigiram a sua prisão. Mas a sua imensa popularidade tornou-o intocável.

Tolstoi tornou-se obcecado por ajudar os outros. Abandonou o seu título de nobreza, vestia roupas de camponês, recusou-se a deixar que os servos cuidassem dele, fez as suas próprias botas e trabalhou nos campos ao lado dos camponeses. Queria doar todos os seus bens, mas a sua esposa e filhos protestaram; então pôs tudo nos seus nomes. Deixou de aceitar dinheiro para escrever. Quando a fome varreu as províncias rurais, o czar e a Igreja negaram que tal estivesse a acontecer; mas Tolstoi organizou sopas dos pobres massivas, pelas quais foi repreendido dos púlpitos da nação.

Tolstoi ajudou a libertar bispos “velhos crentes” que tinham sido presos pela sua religião. (“Velhos crentes” eram cristãos dissidentes que se recusavam a aceitar as mudanças que a Igreja Ortodoxa Russa havia imposto no século XVII.) Também defendeu os Dukhobors perseguidos, excêntricos religiosos que tiravam as roupas e ateavam fogo às suas casas em protesto. Voltou a aceitar dinheiro pelos seus livros, mas usou os fundos para ajudar oito mil Dukhobors a mudarem-se para o Canadá. O ideal de vida simples e compassiva de Tolstoi atraiu seguidores, que criaram as suas próprias comunidades. Alguns foram presos como radicais perigosos pelos padres e pela polícia czarista, por criticarem a igreja e recusarem o serviço militar.

Em 1901, os patriarcas do Santo Sínodo ordenaram que os padres negassem os rituais da igreja ao escritor idoso. Excomungaram-no oficialmente num decreto de anátema que dizia:

“Ele [Tolstoi] nega o Deus vivo e pessoal glorificado na Santíssima Trindade, Criador e Providência do universo; ele refuta Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus feito Homem, Redentor e Salvador do mundo, que sofreu por nós e pela nossa salvação, e que ressuscitou dos mortos; ele refuta a Imaculada Conceição da manifestação humana de Cristo, o Senhor, e a virgindade, antes e depois da Natividade, de Maria, Mãe de Deus, a mais pura e eterna virgem; ele não acredita na vida futura ou no julgamento após a morte; ele refuta todos os mistérios da Igreja e os seus efeitos benéficos; e, desprezando os mais sagrados artigos de fé da comunidade ortodoxa, não temeu escarnecer do maior de todos os mistérios: a Santa Eucaristia.”

A excomunhão teve pouco efeito em Tolstoi, que continuou a escrever. Foi mais severamente afetado pelo conflito com a sua esposa, por causa do seu desejo de pobreza monástica. Finalmente, aos oitenta e dois anos, saiu de casa para encontrar um refúgio de eremita, mas logo apanhou uma pneumonia e morreu.

Comentários de Tolstoi sobre religião

"Considerar Cristo como Deus, e orar a ele, são para mim o maior sacrilégio possível." ‒ carta ao Santo Sínodo, 4 de abril de 1901, em resposta à sua excomunhão.

“Um camponês morre calmamente porque não é cristão. Ele realiza os rituais, é claro, mas a sua verdadeira religião é diferente. A sua religião é a natureza, com a qual tem vivido.” Citado em “Tolstoi and His Wife”, p. 114

“Porque devem as crianças morrer? Cheguei à conclusão de que o único objetivo na vida de todo o homem é fortalecer o amor dentro de si mesmo e, fortalecendo-o dentro de si, infectar outras pessoas com ele.” ‒ após a morte de seu filho de sete anos, ibid., P. 170

"Estou convencido de que o ensino da igreja é, em teoria, uma mentira ardilosa e maligna, e na prática uma mistura de superstição grosseira e bruxaria." ‒ “What Great Men Think of Religion”, de Ira Cardiff

"Acostumamo-nos tanto à mentira religiosa que nos cerca que não percebemos a atrocidade, a estupidez e a crueldade que permeiam o ensino da igreja cristã". ‒ ibid.

“É verdade que nego uma Trindade incompreensível e a fábula sobre a queda do homem, o que é absurdo nos nossos dias. É verdade que nego a história sacrílega de um Deus nascido de uma virgem para redimir a raça.” ‒ ibid.

"Se não há uma razão superior ‒ e não existe ‒, a minha própria razão deve ser o juiz supremo da minha vida." ‒ “A Minha Confissão”, 1882

"A superstição religiosa consiste na crença de que os sacrifícios, muitas vezes de vidas humanas, feitos ao ser imaginário são essenciais, e que os homens podem e devem ser trazidos a esse estado de espírito por todos os métodos, sem excluir a violência". ‒ “A escravidão dos nossos tempos”, 1900

“Os pensadores livres são aqueles que estão dispostos a usar as suas mentes sem preconceitos e sem medo de entender coisas que se chocam com os seus próprios costumes, privilégios ou crenças. Esse estado de espírito não é comum, mas é essencial para o pensamento correto; onde está ausente, a discussão pode tornar-se pior do que inútil.” ‒ Guerra e Paz, 1862

“As igrejas cristãs e o cristianismo não têm nada em comum, exceto o nome: são opostos totalmente hostis. As igrejas são arrogância, violência, usurpação, rigidez, morte; o cristianismo é humildade, penitência, submissão, progresso, vida.” ‒ “O Reino de Deus Está Dentro de Ti”, 1893

“A superstição religiosa é incentivada por meio da instituição de igrejas, procissões, monumentos, festividades…. Os chamados clérigos entorpecem as massas ... Eles obnubilam as pessoas e mantêm-nas numa condição eterna de estupefação.” ‒ ibid.

"Alguém pode dizer com os seus próprios lábios: 'Eu acredito que Deus é um, e também três' ‒ mas ninguém pode acreditar, porque as palavras não fazem sentido." ‒ “O Que É a Religião?” 1902

“Foi-me ensinado o ofício de soldado, ou seja, resistir ao mal pelo homicídio; o exército ao qual eu pertencia foi enviado com uma bênção cristã.” Citado por Carol Z. Rothkopf em “Immortals of Literature: Leo Tolstoy” (Nova York: Franklin Watts Inc., 1968), p. 102

"O ensino da igreja, teoricamente astuto, é uma mentira na prática e um composto de superstições e feitiços vulgares". ‒ “Views of Religion”, de Rufus Noyes

“Os ensinamentos da igreja não passam de ficção. Eu tenho conhecimento da sua inanidade.” ‒ ibid.

"A minoria educada, embora já não acredite no ensino religioso existente, ainda finge acreditar". ‒ ibid.

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