Um mundo sem deuses

Sigo o site de Richard Dawkins no Twitter e outro dia recebi um pio (tweet) para uma página no Facebook que pretende juntar até Junho um milhão de pessoas que acreditam na evolução das espécies. Parece ter sido começada este mês e já tem mais de 116.000 aderentes. É uma resposta a outra página que pretendia arranjar, também até Junho, um milhão aderentes incrédulos da dita cuja evolução. Esses têm neste momento apenas cerca de 26.500, embora, obviamente, tenham começado primeiro (e têm um erro de ortografia no título).

Esta discussão parece ultrapassada aqui na Europa. A Evolução das Espécies é ensinada pacificamente nas escolas e a Igreja Católica não contesta (quando eu era garoto havia grandes diatribes contra os que afirmavam que o Homem descende do macaco, mas também li os livros de um padre cientista dissidente, Teillard de Chadrin). Nos Estados Unidos, porém, a direita evangélica promove ataques ferozes à ciência e defende sem pestanejar que o mundo foi criado por Deus (Jeová) em seis dias há seis mil anos. Junta-se-lhes uma corrente pseudocientífica chamada Intelligent Design, que afirma que o mundo é demasiado complexo para não ter sido criado por um deus, embora não façam (por vezes) questão dos seis mil anos.

Nos países islâmicos, se bem que o Corão não seja tão explícito como a Bíblia sobre como Alá criou o mundo, as recentes correntes fundamentalistas têm demonstrado também uma tendência ferozmente anticientífica.

Este tipo de cegueira fascina-me. Depois de, obviamente, juntar o meu nome ao grupo dos evolucionistas, lá andei pelas duas páginas a ver as discussões acesas. Claro que há partidários de Darwin a irritar os fundies* na página contra a evolução e fundies a despejar longas citações da Bíblia sobre os seus adversários, na página a favor.

Curiosamente, não se discute quase nenhuma ciência. Os evangélicos por vezes lá esgrimem um pouco com uns factóides sobre ADN e genes, mas quando a coisa aquece encostavam-se à fé e à Bíblia, ameaçando os interlocutores com o fogo do inferno. Conversamente, os defensores da ciência começam com argumentos científicos mas deslizam rapidamente para a discussão religiosa e acabam, quase sempre, por se afirmar ateus e ridicularizar os crentes.

A prova da qualidade literária

Outro dia, ocorreu-me uma prova, ou da não existência do deus judaico-cristão, ou da origem terrena dos textos “sagrados” que não me lembro de ver em lado nenhum: a prova pela via da qualidade literária. Se a Bíblia ou os Evangelhos (ou, por extensão, o Corão) tivessem sido escritos por inspiração divina, seriam, independentemente da habilidade dos escribas e da deturpação dos tradutores, documentos de leitura absolutamente arrebatadora. Nada à altura de um Camões, de um Cervantes, de um Shakespeare, de um Tolstoi, de um Pessoa. Muito para além. Seriam uma experiência literária deslumbrante, verdadeiramente de outro mundo. O seu autor (caso existisse), não o faria por menos. Teria que ser ele a escrevê-los ou a inspirá-los. Como iria deixar gente medíocre escrever a sua história? Tais textos (eu li-os a todos) não são nada disso. A qualidade literária é relativa. Partes são belas, outras sofríveis, muitas bem chatas. Q.E.D.

Deus e o mundo

Cá na Europa, seria ocioso tentar chatear um católico (ou protestante) com a evolução. Esse terreno de polémica foi abandonado ao adversário há muito. Os católicos encolhem os ombros e dizem que o seu deus pode muito bem ter criado o mundo em 14 mil milhões de anos, ou criado os seres vivos pelos meios descritos por Darwin, porque não? De resto, nunca ligaram muito à Bíblia. Onde a batalha ferve é no choque entre a moral retrógrada promovida pelo Vaticano e as novas exigências éticas dos cidadãos cada vez mais laicos: o aborto, a sexualidade, a liberdade pessoal. Ou na defesa do seu lugar antigo à mesa do Estado contra as ideias laicas.

A ciência influenciou muito as minhas ideias sobre religião, ou melhor, falta dela. Mas não a polémica concreta sobre este ou aquele ponto. Qualquer ataque à incoerência da visão do mundo de um crente dificilmente o fará vacilar, porque são muito mais importantes os elementos afectivos e de pertença a uma comunidade que estão em jogo.

No fim de contas, quem entre nós faz realmente ciência? Qual de nós consegue compreender um paper científico? Na minha actividade profissional já publiquei teses de mestrado em que, para além de não compreender nada do texto, nem sequer percebia bem qual era o assunto!

E mesmo os que fazem ciência vivem, quase sempre, confinados a uma tão extrema especialização numa pequena gavetinha do saber que são praticamente tão ignorantes como o comum dos mortais sobre os outros assuntos.

O que a ciência criou foi uma visão do mundo. Quase todos gostamos de ver o Odissey ou o Discovery Channel, gostamos de saber quando um planeta gigante foi descoberto numa estrela próxima, lemos no jornal que afinal havia dinossauros com penas, estamos confiantes que brevemente avanços na genética e na medicina levarão à cura de mais doenças.

Evolução? Nós brincámos com dinossauros quando éramos miúdos! As imagens do Hubble estão no ambiente de trabalho do nosso computador. Naves espaciais já quase nem são notícia. Este é o nosso mundo, um mundo dominado pela ciência, ou melhor, pela visão do mundo que a ciência tornou possível, mesmo que não saibamos explicar como o espaço-tempo encolhe e estica segundo Einstein ou as formas pelas quais as espécies evoluem.

Quem não está à vontade neste mundo são os deuses. O maravilhoso que as suas mitologias mostravam a gerações anteriores parece hoje baço, arcaico, pouco interessante em competição com a própria realidade. Os termos inverteram-se. Confinados a uma vida de sofrimento e ignorância, os antigos tinham apenas contacto com o transcendente e o maravilhoso através da religião. Hoje o maravilhoso é real e as velhas mitologias aparecem como o que realmente são: fantasias simplórias.

Muitos não o crêem explicitamente, mas é patente na forma como vivemos. Vivemos num mundo sem deus. Um mundo maravilhoso e brutal ao mesmo tempo, completamente indiferente à nossa sorte, onde não há nenhum ser sobrenatural a cuidar de nós, onde não há qualquer justiça que não sejamos nós próprios a construir.

Se vivemos nesse mundo hoje, é claro que nele vivemos sempre.

Não se demonstra, sente-se.


* Abreviatura jocosa de fundamentalista nos EUA. [Voltar ao texto]


Nota: O grupo favorável à evolução das espécies inscreveu como seu website uma página inglesa, www.darwin-online.org.uk com muito material sobre Darwin, onde encontrei uma edição recente em português da Origem das Espécies em PDF grátis. Excelente. Pensei que nunca ia ler este clássico (apesar da sua importância histórica, é hoje um texto datado do ponto de vista científico e não justificaria o investimento). Agora já está no meu disco rígido.

Comentários

  1. Anónimo3/2/10

    Eu, que não sei muito bem o que sou...neste mundo de dificuldades, interesses e ignorância...fico seriamente pensativa quando acabo de ler semelhante reflexão...um grande bem-haja Carlos por nos termos reencontrado!!!

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