Marxistas de todo o mundo…

Estátua de Marx e Engels em Berlim

Uni-vos? Ná! Bem, a verdade é que se tu, leitor, ainda és marxista, o único conselho que tenho para ti é teres juízo.

No entanto, há questões relacionadas com o marxismo que enchem de perplexidade qualquer um, em especial um ex-marxista como eu. A principal delas é: qual é o lugar histórico do marxismo? A segunda é saber onde é que esta ideologia estava errada. Ou dito de outro modo, onde é que eu errei ao aderir àquilo?

Isto são perguntas relacionadas com o passado, com o rescaldo dos nossos erros, ou, já que escolhi não fugir com o rabo à seringa, com um exame de consciência pessoal.

A última questão, porventura a mais importante, tem a ver com o futuro. E agora? Depois do marxismo, o quê?

Posso deixar correr para o oblívio as minhas memórias, dizer apenas, quando elas me importunam um pouco, "oh, que idiota eu fui, que idealista inocente", e ficar-me por aí. Mas fica a questão do lugar do marxismo na História. Aquilo foi um sonho lindo que não resultou? Ou antes um pesadelo de que felizmente acordámos?

Isto leva à pergunta do milhão de euros: qual é o caminho da luta por um mundo melhor, agora que o marxismo morreu?

Será que, o marxismo foi uma perversão da aspiração de rebeldia de milhões de pessoas, ou uma etapa necessária, talvez amarga, mas mesmo assim necessária, na evolução das ideias da esquerda?

Um silêncio ensurdecedor

O silêncio sobre esta questão é ensurdecedor. Não digo que não haja um ou dois teóricos a elucubrar sobre isto, e eu, da minha parte, peco seguramente por ignorância, porque não me tenho interessado por lê-los. Mas ao nível prático, quer dizer, ao nível político concreto, anda toda a esquerda a fingir que não aconteceu nada.

Mas aconteceu mesmo. Não há volta a dar-lhe.

1989 foi um cataclismo político, histórico imenso, inacreditável. Para muitos, o mundo virou-se de cabeça para baixo. Milhões de cidadãos sujeitos a regimes políticos marxistas rejeitaram-nos de forma imediata, assim que tiveram a mais pequena hipótese. Os regimes marxistas que sobreviveram, foi apenas devido a uma repressão brutal, já nua e crua sem a sua cobertura ideológica.

Estátua de Marx e Engels em Berlim

Num bronze duas vezes o tamanho real, em Berlim Oriental, Karl Marx e Friedrich Engels parecem contemplar com ar fúnebre o fim do comunismo no seu país natal. Mas não acredito que os dois velhos revolucionários do século XIX pudessem ter suportado a feroz ditadura a que as suas estátuas presidiram. Sobre os homens, o bronze tem a grande vantagem de estar calado... (foto do autor)

Em 1989 eu já deixara de ser marxista há dez anos, mas quando o era, fui trotskista. Quer dizer, acreditava no comunismo, mas que, para ele ser possível, os cidadãos dos países socialistas tinham de fazer uma nova revolução para impor um regime político de acordo com as velhas promessas de Marx e Lenine. Mas já se tinha tornado claro para mim nos anos 80, com Lech Valesa e o Solidariedade, que essa revolução política não estava nas cartas.

A seguir a 1989, a situação tornou-se caricata. Durante um tempo, parecia que a iniciativa política e ideológica estava nas mãos da direita. Imperavam os neoliberais, com Milton Friedman à cabeça. Duzentos e tal anos depois, Adam Smith triunfava enfim sobre todos os filósofos sociais, de Proudhon a Marx. Passado algum tempo, as ideias diluíram-se. Já ninguém era completamente neoliberal, mas ninguém deixava de o ser. Dos socialistas aos do bloco de esquerda, já toda a gente era a favor da iniciativa privada e ninguém já propunha as ideias colectivistas do socialismo, que haviam imperado em toda a esquerda durante mais de um século.

Esta vitória total do neoliberalismo só era perturbada pelos movimentos antiglobalização. Desprovidos de um programa consequente, formados por alianças de forças incompatíveis, a certa altura pareciam apenas um resto de revolta de militantes sem causa e sem perspectivas.

Os amanhãs não cantam

Mas a situação mudou. Se os amanhãs não cantaram para os marxistas, calaram-se também rapidamente para os neoliberais. Ao fim de um tempo, com o desvanecer das esperanças de rápido enriquecimento para todos através da iniciativa privada e do laissez faire, o programa neoliberal retoma a sua velha aparência de prática política de direita tradicional: aumento do poder e da riqueza de uns poucos à custa do sacrifício da maioria.

Primeiro a estrela marxista colapsou subitamente num completo buraco negro. Na sua ausência, a estrela neoliberal dominou o firmamento das ideias com uma luz ofuscante mas breve, a que rapidamente se seguiu um gradual esmorecimento. O que temos agora é um imenso lusco-fusco ideológico.

Há quem diga que acabou o tempo dos sistemas abrangentes de ideias ou de concepções do mundo, prevendo que o marxismo terá sido o último desses grandes sistemas. O extremo desse tipo de pensamento é aquele neocon americano que profetizava o fim da História. Mas isso, claro, foi antes da guerra da Bósnia, do 11 de Setembro, do Afeganistão e do Iraque. A História não acabou, disso podemos pelo menos estar certos!

Quanto aos sistemas de pensamento, vulgo ideologias, não creio que vão acabar. As ideologias são necessárias, a nível social, para desenvolver e transmitir ideias. Sem o tempero valorativo da ideologia, os factos não têm sentido. Não passam de uma sopa sem sabor que talvez alimente, mas não satisfaz nem desperta o apetite.

Apesar da libertação dos milhões submetidos às ditaduras comunistas, do impacto da globalização e da revolução nas comunicações, não creio que algo de tão fundamental na essência das nossas sociedades tenha mudado, para permitir-nos passar sem um instrumento de pensamento social indispensável durante séculos.

A questão é, que nova ideologia vai dominar a esquerda, na sequência do colapso do marxismo?

Quando me refiro a esquerda, falo do movimento contínuo, há pelo menos dois mil anos, das forças que lutam por mais dignidade humana, mais liberdade política, mais criatividade social, nas sociedades ocidentais (pelo menos nessas). Penso que há uma continuidade histórica desde, sei lá, os primitivos cristãos, os escravos rebeldes de Spartacus, as seitas heréticas da Idade Média, os pensadores iconoclastas da Renascença, os protestantes, os cabeças redondas ingleses, os revolucionários franceses, os rebeldes americanos, os democratas revolucionários do século XIX, os socialistas e marxistas (os rebeldes, não os burocratas) do século XX.

Não preciso de afirmar, de tão evidente que é, que esse movimento vai continuar no futuro. De que forma e com que objectivos, não sei. É isso que me intriga mais.

Orfandade ideológica

Quanto à esquerda concreta que temos hoje, isso é outra questão.

Toda a esquerda continua órfã ideológica do marxismo. As referências explícitas à sociedade sem classes, à luta de classes ou mesmo ao socialismo foram devidamente expurgadas do discurso dos partidos de esquerda, mesmo quando ficaram uns restos esquecidos nos programas; em seu lugar entraram uns lugares-comuns neoliberais, papagueados sem muita convicção. Nada liga entre si estas sequências desconjuntadas de frases, nenhum pensamento político de conjunto orienta os discursos.

Dir-se-á que o marketing político substituiu a ideologia. Não tenho nada contra o bom marketing político (só contra o mau); mas é uma ferramenta de curto prazo. O marketing político só produz táctica, não estratégia. Para criar uma estratégia é preciso um pensamento político com um domínio histórico. Se procura pensamento político no discurso da nossa esquerda actual, esqueça. Pura e simplesmente não existe.

Na verdade não é bem assim. Ele existe, mas oculto, nunca deliberadamente expresso. O pensamento político da esquerda actual, por defeito e sem coerência, continua marxista. O que significa que está completamente obsoleto.

Quem só abriu os olhos depois de 1989 tem dificuldade em avaliar a importância do marxismo. Parece apenas mais uma língua morta como o latim, ainda usada só em cerimónias esotéricas pelos patriarcas de uma religião decadente. Não sabe reconhecer as ideias-chave que perpassam nos discursos, como pontas de icegergs.

No entanto, durante todo o século XX, o marxismo orientou todo o discurso da esquerda. Havia o núcleo duro marxista-leninista, claro e intolerante, com todo um corpus de doutrina abrangente, desde a análise histórica à crítica de cinema, desde a economia à teoria da organização partidária. Essa doutrina mostrava um desfasamento cada vez maior em relação à realidade, mas tinha uma enorme coerência interna.

Depois, havia as margens soft, constituídas pelos que, embora atraídos pela perspectiva histórica da libertação dos trabalhadores, recuavam horrorizados perante os aspectos mais desumanos da prática comunista. Mário Soares sintetizou essa posição de forma admirável em 1975 quando afirmou: "Somos socialistas, mas democráticos!"

Os mas eram muitos. Socialistas mas com democracia, comunistas mas sem Estaline, marxistas revolucionários sem Lenine, maoistas com Estaline mas sem Brejnev, comunistas sem ditadura do proletariado, comunistas a favor da democratização do partido, etc. O mas, no entanto, implicava uma gravitação, uma relação de amor-ódio com o pensamento marxista.

Na verdade, durante a maior parte do século XX, teria sido quase impossível um pensamento político de esquerda sem o recurso às ideias marxistas. Fora da obediência estrita ao marxismo-leninismo, ia-se ao grande supermercado das ideias marxistas, levava-se umas coisas, deixava-se outras, mas não se podia deixar de lá ir.

Toda a geração de políticos da esquerda actual foi cliente desse supermercado. O supermercado essencialmente fechou no fim dos anos 80, mas no seu lugar ficou um grande vazio. As mesmas ideias gastas são remendadas e usadas de novo, à falta de melhor. Às vezes tenta-se usar uns fragmentos da loja neoliberal, mas a essência do neoliberalismo é conservadora, portanto não ajuda quase nada ao sucesso de um político de esquerda.

Desprovida de um pensamento político próprio, a esquerda aparece em todas as batalhas de ideias com falta delas, ou com ideias totalmente desadequadas do nosso tempo.

Pontos de um não programa

  1. A esquerda não sabe o que fazer com o estado. Ora defende as indústrias do estado, na lógica arcaica de um pensamento marxista de colectivização dos meios de produção, ora aceita soluções neoliberais e procura ignorar as suas consequências.
  2. A esquerda também não sabe o que fazer com a iniciativa privada. Ora lhe põe pesados entraves burocráticos e fiscais, ora entra em acordos de protecção de interesses elitistas que envergonhariam até o político mais conservador.
  3. Também não sabe o que fazer com a globalização, propondo às vezes desastrosas soluções nacionalistas sem futuro, outras mergulhando de olhos fechados na vertigem neoliberal da abertura total e sem condições.
  4. Idem em relação à Europa. Os europeístas não conseguem distinguir-se em nada dos políticos conservadores também europeístas; as correntes mais radicais comportam-se como se fosse viável uma defesa do nacionalismo contra a ameaça europeia. A posição mais caricata é a do Partido Comunista, que se comporta em tudo como se a União Soviética ainda existisse e fosse necessário defendê-la da Europa capitalista, mesmo em prejuízo dos interesses dos portugueses.
  5. Idem sobre educação. Grande parte das ideias sobre educação que foram institucionalizadas durante o século XX são de raiz marxista, muitas vezes centradas em revisões sucessivas do modelo napoleónico da école normale francesa. O modelo está totalmente desactualizado e quando deixa de poder ser defensável, pronto, recorre-se a soluções neoliberais, com efeitos sociais e qualitativos ainda mais devastadores.
  6. Na política de emprego a oscilação repete-se, entre defender o emprego existente, contribuindo para preservar o atraso tecnológico das empresas e apenas adiar o seu colapso, e o deixar ir tudo por água abaixo num pânico neoliberal, quando a bolsa aperta.
  7. Idem, no planeamento do território. Depois de anos a tentar impedir a desertificação do interior com medidas de intervenção estatal, de repente fecha-se infra-estruturas regionais a eito, com base num critério puramente numérico e economicista: escolas, postos de polícia, hospitais.
  8. Idem, na implantação social da esquerda. Tradicionalmente ligada aos sindicatos, a esquerda é sujeita a inúmeras pressões para defender os interesses dessas organizações. Mas os trabalhadores já não são o que eram e apenas uma ínfima minoria está sindicalizada. Financiados directa ou indirectamente pelo estado, os sindicatos defendem o status quo da concertação social e representam, ora os interesses da própria burocracia sindical, ora os interesses de grupos muito restritos de trabalhadores. Quando falam para estas organizações, os dirigentes de esquerda sacam da cartilha marxista; quando pretendem dirigir-se aos outros, não sabem que dizer-lhes!

Eu podia continuar esta iteração por aí fora, mas a essência da questão está clara: a esquerda oscila entre políticas marxistas obsoletas e medidas neoliberais de direita.

Criticar é fácil

Criticar é fácil. Dirás tu, leitor: será que este tipo tem uma política melhor na algibeira?

Na verdade não. Os políticos de esquerda não são uma cambada de idiotas nem são todos corruptos. Nas condições actuais, eles não podem escapar a este tipo de dilemas. Nem eu, se fosse ministro.

Os coitados não têm um sistema de ideias que os oriente. Não há uma ideologia de esquerda viável neste momento. A esquerda mantém-se porque pertence a uma tradição milenar de luta política progressista, mas na fase actual não tem política própria.

Demagogia operária

Os velhos chavões já não querem dizer muito. Defender os interesses dos trabalhadores, por exemplo. Isso remete para a noção de luta de classes, em que o bom do proletariado, imbuído da missão histórica de derrotar o capitalismo, iria criar a sociedade sem classes.

Mesmo quando era uma classe relativamente homogénea, nos séculos XIX e XX (não vou aqui discutir a teoria das classes sociais, é um tema bastante estéril e chato) o proletariado não teve nunca a possibilidade de fazer tal coisa. Era a classe mais ignorante e desprovida de meios da sociedade, não tinha os saberes necessários nem cultura, nem sequer liberdade de movimentos para tomar o poder e mantê-lo.

Mesmo quando supostamente tomou o poder, na revolução russa de 1917, o proletariado nunca lhe viu a cor. Os revolucionários tomaram o poder em seu nome e, desde a primeira hora, criaram um aparelho político feroz para mantê-lo nas suas mãos. Sempre que as massas populares se tentaram meter com o poder político, nos regimes comunistas, foram literalmente corridas a tiro, chacinadas, torturadas, escravizadas em campos de concentração…

E não pensem que isso só sucedeu no tempo de Estaline. Já em 1921, apenas cinco anos depois da revolução russa, uma insurreição de trabalhadores e marinheiros na base naval de Kronstadt, nos arredores de S. Petersburgo, foi abafada a tiro de canhão. E a Cheka de Feliks Djerzinsky foi criada ainda no tempo de Lenine, penso que em 1919.

Hoje o proletariado já não é o que era. As condições de vida dos trabalhadores são muitíssimo diferentes do que eram, digamos, no princípio do século XX. Marx dizia que os trabalhadores não têm nada a perder senão as suas cadeias. Hoje, embora continuem a não ter grande coisa de seu, os trabalhadores dos países minimamente desenvolvidos têm tudo a perder caso se rompa a paz social: o andar onde vivem, o carro, o cartão de crédito, o centro comercial, a televisão por cabo, a creche dos filhos, enfim. A vida das amplas massas nas sociedades desenvolvidas de hoje é demasiado complexa e sofisticada para se falar seriamente nesse tipo de brincadeiras.

Basta uma perturbação no abastecimento do petróleo para lançar o pânico nos bairros populares…

Hoje, pode-se perguntar a quem diz defender os interesses dos trabalhadores: que trabalhadores? Os que estão sindicalizados, na maioria pertencentes ao sector público ou a empresas com uma situação privilegiada no mercado de trabalho? A maioria dos trabalhadores por conta de outrem, que não deu qualquer mandato ao movimento sindical e é completamente exterior a ele? Os contratados a prazo? Os imigrantes? Os trabalhadores da China? Sem uma teoria política, estes chavões não fazem qualquer sentido.

Capitalismo ou barbárie

A teoria básica do marxismo era a de que o capitalismo tinha historicamente esgotado as suas capacidades de desenvolvimento, iria entrar em crises cada vez mais destruidoras e só o socialismo, com o planeamento central de toda a economia, seria capaz de satisfazer no futuro as necessidades dos cidadãos.

Até, digamos, à II Guerra Mundial, poderia sustentar-se esta análise. A crise de 1929 foi devastadora, a progressão do nazismo e do fascismo podia levar-nos a imaginar que eram estas as formas do capitalismo no seu estertor final. Dizia Trotsky no seu Programa de Transição, em 1938, que "as forças produtivas pararam de crescer".

Era fácil um marxista acreditar nisso, até 1945. O chavão do tempo era: socialismo ou barbárie. Mas o capitalismo não se conformou à análise. Após a II Guerra Mundial assistiu-se a um desenvolvimento assombroso da ciência e da técnica, as condições de vida de toda a população mundial melhoraram de forma espectacular.

A melhoria das condições de vida nos países mais desenvolvidos resulta de uma pilhagem dos países do Terceiro Mundo? Em parte sim, mas creio que a riqueza do primeiro mundo foi quase toda criada em casa e que as populações dos países menos desenvolvidos têm conseguido, apesar de tudo, melhorias importantes nas suas condições de vida. As desigualdades cresceram e os problemas são terríveis, sem dúvida. Mas a imagem do imperialismo a destruir e escravizar países como condição da sua sobrevivência parece-me uma persistente ficção social.

O capitalismo não tinha, de forma nenhuma, esgotado as suas possibilidades. Do outro lado, os regimes socialistas nunca conseguiram, com a sua planificação central, competir favoravelmente com o mercado e no fim dos anos 70 estavam todos técnica e socialmente falidos.

E como eram todos ditaduras, não tinham a mínima hipótese de competir na sociedade global da informação. Uma ditadura não pode permitir a livre circulação de ideias; uma sociedade moderna não pode passar sem ela.

Quando Portugal era uma ditadura, as empresas precisavam de uma licença especial para possuir uma fotocopiadora. Nos países da Europa de leste, a simples posse de uma máquina de escrever era sujeita a licença, como se fosse uma arma perigosa (e era, para a ditadura…). Tudo isto, hoje, é completamente ridículo.

Um sistema obsoleto

Se o capitalismo não esgotou as suas possibilidades, o socialismo não é uma necessidade histórica, isto para usar as velhas categorias marxistas do processo histórico.

Na verdade o socialismo procurou resolver um problema que já não existe. No período a que Alvin Toffler chamou Segunda Vaga, a produção era massificada. Os recursos físicos eram escassos, os transportes ainda relativamente lentos, a organização da produção exigia o trabalho parcelar por grandes massas de trabalhadores, em fábricas enormes. Os trabalhadores eram importantes para o processo de produção, amarrados às suas gigantescas cadeias de produção que podiam parar quando quisessem, através das suas formas de luta colectivas, como a greve.

Na falta dos instrumentos informáticos de hoje, criaram-se grandes burocracias industriais e estatais para controlar o processo de produção e distribuição. Nos próprios países capitalistas, o estado intervinha cada vez mais nas empresas e no mercado, procurando defender os enormes investimentos fixos dos efeitos de possíveis crises, substituindo, em certa medida, o jogo da oferta e da procura por medidas autoritárias e burocráticas.

O socialismo representa, afinal, apenas um conjunto de situações em que esta tendência foi levada ao extremo. Nos anos sessenta do século XX, era vulgar encontrar pensadores políticos que profetizavam a convergência das sociedades capitalistas e socialistas para formas semelhantes, com o aumento da planificação central naquelas e o aumento da democracia política nestas. Claro que não aconteceu nada disso.

Com a revolução informática, a globalização e a sociedade da informação, o que Alvin Toffler chama a Terceira Vaga, a palavra de ordem foi desmontar as pesadas burocracias, deixar as empresas reconfigurar-se livremente, usar o poder do mercado e não restringi-lo. Nos países mais desenvolvidos as grandes burocracias são dissolvidas, as fábricas deslocalizadas. Nos países socialistas, a catástrofe é total. Implosão é o único termo que faz justiça ao que aconteceu.

Politicamente, o velho ideal da democracia ganhou novo alento. Democracia e desenvolvimento tornaram-se sinónimos. Todas, mas mesmo todas as ditaduras vacilaram. Muitas caíram. O que foi muito bom, claro.

Portanto eu quero afirmar aqui, de forma peremptória, uma coisa que é evidente mas que quase ninguém na esquerda se atreve a dizer:

NÃO HÁ QUALQUER FUTURO NO SOCIALISMO.

O socialismo é como o automóvel com motor a dois tempos. Nos anos 50 do século XX, muitos dos modelos de automóvel económico da Europa e do Japão em reconstrução eram a dois tempos: os NSU (hoje Audi), os Borgward, os Panhard, os primeiros Honda. Eram económicos, mas barulhentos e poluentes. Pareciam uma boa ideia na altura, mas hoje desapareceram totalmente (com excepção do Trabant, que durou até ao fim do comunismo na defunta RDA). Quero eu dizer, os problemas que esses veículos procuravam resolver já não existem e os inconvenientes que causavam seriam hoje totalmente inaceitáveis.

O socialismo, o comunismo, o marxismo faliram totalmente, não só em termos históricos, sociais e políticos, como em termos filosóficos e ideológicos. Nada do que o marxismo propôs tem interesse. O único interesse do marxismo é como uma colecção de erros a não repetir.

Toda a gente sabe disso. Mas quase todos se comportam, no seu discurso e nas suas práticas, como se houvesse uma alternativa ao capitalismo. Não há. Quer dizer que a luta da esquerda terminou?

Renovar a esquerda

Só entre o meio do século XIX, com a radicalização das revoluções europeias de 1848 e a publicação do Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx, e o último quartel do século XX, com a queda do Muro de Berlim, em 1989, portanto num período de mais ou menos 140 anos, é que esquerda e socialismo se confundiram.

A esquerda já participa na História há muitos séculos. Na Roma do fim da República, cerca de 100 anos antes de Cristo, a luta política era entre Optimates e Popularis, os primeiros ligados à tradição e aos latifundiários tribais, os segundos aos comerciantes e às camadas urbanas e populares. As opções sobre que se digladiavam são apenas curiosidades históricas para nós, mas o combate, já então como agora, era entre direita e esquerda.

Pode-se conceber a continuação da História das nossas sociedades de hoje sem o confronto político entre conservadores e progressistas? Claro que não.

O que há a fazer, então? Limpar a mesa de restos do passado, preparar o caminho para a reconstituição de um pensamento de esquerda moderno.

Paradoxalmente, para fazer isso, penso eu, se calhar temos que voltar ao passado pré-marxista da esquerda e recuperar os seus valores centrais e históricos. Valores democráticos, claro. Valores humanistas. Valores universalistas.

Os valores da esquerda

Partamos, por exemplo, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. É uma base bem sólida, com 200 anos de prestígio na luta pela liberdade, desde a Revolução Americana até à Revolução Laranja da Ucrânia.

Dirás tu, leitor, que é talvez demasiado abrangente. Na verdade hoje em dia ninguém se atreve a pronunciar-se contra ela!

Tanto melhor. Mas experimenta aplicá-la num tópico de luta política a vais ver como, na prática, surgem os velhos confrontos entre direita e esquerda.

Queres combater a xenofobia que hoje aparece como bandeira de alguns movimentos de direita e extrema direita? Apoia-te na Declaração.

Queres tomar parte na discussão da questão da interrupção voluntária da gravidez? Apoia-te na Declaração e terás a tua vida facilitada.

Queres intervir na questão da globalização? De acordo com a Declaração, não podes defender o direito ao trabalho dos trabalhadores portugueses ou europeus, à custa de vedar o acesso ao mercado mundial por parte dos trabalhadores chineses ou indonésios. Mas também não podes prescindir dos direitos dos trabalhadores portugueses ou europeus, permitindo que entrem todos numa competição para ver quem trabalha mais barato e mais próximo da escravatura. O que deves fazer é lutar, a nível internacional, para que os países que querem entrar no mercado mundial tenham de dar aos seus trabalhadores condições mínimas de dignidade, regalias e direitos.

A Decaração faz parte da constituição americana, tal como da portuguesa. Mas George Bush II anda a violar a sua própria constituição todos os dias, em Guantanamo e nas câmaras de tortura de aluguer que mantém em vários países!

Não estou a dizer que a Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma base suficiente, ou uma plataforma viável para o futuro. Provavelmente não. Mas para já permite recentrar os valores da esquerda na sua base humanista, limpar a ganga marxista do discurso, esclarecer ideias que têm estado muito embrulhadas.

Fins e meios

É provável que não volte a haver um sistema de ideias rígido, uma concepção total do mundo, monolítica e abrangente, como o marxismo. Isso é bom. Um universo de ideias caótico e contraditório, mas dinâmico e criativo, corresponde muito mais ao nosso modo de pensar actual.

O marxismo, em grande medida, perverteu a esquerda. Impôs aos militantes uma amoralidade utilitária. Tudo o que fosse a favor do partido, era bom, tudo o que fosse contra, era mau. E quem decidia o que era bom para o partido? O secretário−geral, ou o seu bonecreiro, em Moscovo. Era bom mentir, trair, enganar, difamar e até reprimir quem se opusesse ao partido. Os fins justificavam sempre os meios.

Nunca se pensava que o uso de certos meios reprováveis ou perversos comprometia os fins.

Pequenos partidos e seitas imitavam o modelo moscovita, muitas vezes de forma mais extrema e intolerável. Mesmo entre os partidos mais abertos e democráticos, as práticas do suposto centralismo democrático marxista infiltraram-se.

Os meios não justificam os fins. Numa luta política, os meios fazem parte da metodologia para alcançar os fins. Porque a luta política deve ser centrada em valores e não na imposição de um modelo, ao usar métodos incompatíveis com os nossos valores, somos automaticamente penalizados; pelo contrário, quando os nossos métodos e valores são coerentes, somos beneficiados.

Vamos deixar de usar golpes baixos na política? Não me parece. Mas quando os usarmos, saberemos que os golpes são baixos e que pagaremos um preço se formos apanhados.

Quando comecei a escrever este texto nunca pensei que saísse tão comprido. E não disse nem metade do que me apetece dizer. Mas vou ficar por aqui.

Recuperemos os valores da esquerda, então. Humanismo. Os direitos do Homem. Liberdade, Igualdade, Fraternidade.

Firmamo-nos nessa sólida base e seguimos em frente. Depois logo se vê.

Allons enfants de la Patrie, le jour de gloire est arrivé, contre nous de la tiranie, l'étandard sanglant est levé…

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