O galo

Ando a ser convidado para os mais diversos convívios — e gosto. Por este andar, tenho que pôr-me a pau com a linha, o castrol e todas essas coisas.

O projecto galo de cabidela andava a ser “cozinhado” há tempo, mas o bicho sobrevivia sempre, pelas mais diversas razões. Ou o criador, o Januário, não tinha tempo, ou o Oliveira, promotor do evento, tinha obrigações familiares, enfim, a esperança de vida do animal parecia boa.

Longos preparativos

Os preparativos tinham incluído o problema do tacho. O Monteiro voluntariou-se para preparar o animal, mas não tinha tacho capaz de um rancho destes. Foi logo acusado: “Que diabo de marinheiro é você que não tem um tacho? Todos os marinheiros que se prezam têm um tacho grande para as suas comezainas!” O Monteiro ainda protestou: “Pois é, tantos anos na Marinha e nem sequer abarbatei um tacho!” Mas o seu brio de marinheiro tinha sido posto em causa e logo tratou de comprar um tacho verdadeiramente monumental…

Na quinta-feira passada, nova tentativa parecia de novo ameaçada pela sorte. O dono tinha realmente trazido o bicho para a oficina do Oliveira, mas o Monteiro, autodesignado preparador e cozinheiro do galo, tinha ido ao teatro com a família. O repasto estava marcado para sexta-feira mas a preparação estava comprometida.

O problema é que o Oliveira, adepto de matar com caçadeira, carabina ou até pressão de ar toda a espécie de bicharada, não se sentia capaz de agarrar numa faca e cometer o crime, assim a frio e sem dar à vítima uma hipótese de fuga. Quanto a mim, se bem que eu não mate galinhas (e nada maior que moscas) desde a minha adolescência, acho que sou capaz de matar um galo como deve ser. Agora quanto a depená-lo, cortá-lo e cozinhá-lo é que sou ignorante. Outros convivas não estavam disponíveis. Ao fim do dia, o Januário levou o bicho de volta ao seu galinheiro, com direito, tudo o indicava, a mais uma semana de vida.

A decisão

Não se contou com a determinação do Monteiro. Tinha-se comprometido a preparar o bicho. Se não pôde na quinta, fá-lo-ia na sexta. Na tarde de sexta, então, o Oliveira telefona-me a avisar: jantar às oito na oficina dele, o Monteiro preparava o bicho em sua casa. Chego do trabalho, dou um salto a casa e à hora marcada compareço no local marcado. Lá estão todos os convivas a beber vinho e a comer queijo e chouriço.

Todos menos dois: o Correia ainda estava na Ericeira e não se sabia do Monteiro e do galo.

Telefono ao Monteiro. Diz-me que a coisa não estava a correr bem e pede ajuda. Bem, pensei, a minha ajuda não vai servir de grande coisa; o melhor é levar também o Eugénio, que sabe de cozinha. Foi muito boa ideia, por causa de outra das habilitações do Eugénio, mas não nos adiantemos à história.

A crise

Na cozinha do Monteiro, a situação era preocupante. O galo ainda estava inteiro, gigantesco, na bancada. Já depenado, mais parecia um daqueles dinossauros do Parque Jurássico. Só depená-lo deve ter sido uma proeza!

O problema é que a D. Henriqueta não tinha achado piada àquele reboliço na sua cozinha. O Monteiro até usa bastante a cozinha, é um homem moderno, mas aquilo era de mais. Ela até alegou que matar um galo à sexta era aziago! Mas o Monteiro, além de moderno, é teimoso. Tinha-se comprometido e pronto!

Homem nenhum, no seu perfeito juízo, provoca uma discussão com a sua amada cara metade, se houver um meio de o evitar. Portanto o Monteiro esperou que ela saísse para começar a preparar o galo (a D. Henriqueta dá assistência a bebés prematuros, e isso faz com que trabalhe muitas vezes de noite). Atrasou-se a começar. Depois, o bicho era enorme e levou muito tempo a depenar, sem contar com duas grandes queimaduras nos braços que fez a transportar a vasilha da água quente para o escaldar. Com tudo isto, eram oito horas e a ave ainda estava inteira.

O Eugénio começou rapidamente a cortar o galo, o Monteiro a meter os pedaços e os outros ingredientes no tacho ao lume, eu a dar apoio moral, a coisa começou enfim a correr bem. Até que…

Tudo corre mal

Falha eléctrica! Oh não!

O Eugénio, com o dinossauro já cortado e na panela, entra no modo engenheiro electrónico, que é a sua profissão. Com uns toques na fila dos disjuntores, ligando e desligando o disjuntor principal, rapidamente se sabe qual é o culpado: o circuito dos serviços da cozinha, que alimenta o frigorífico, o forno, o exaustor, o esquentador, as máquinas de lavar roupa e loiça. Estas duas estão desligadas, portanto são logo ilibadas. O forno também. O frigorífico é ligado a outra tomada e também declarado inocente.

Restam o exaustor e o esquentador, com a agravante de que estão os dois ligados sem tomadas, directamente a uma caixa por cima do exaustor. Enquanto a cozinha fica rapidamente envolta numa nuvem húmida, o Eugénio dispõe-se a desmontar a ligação eléctrica, em cima de um banquinho e com a cara mesmo por cima da fonte infernal do vapor, o tacho onde fervia o galo. Ri-se e diz que lhe faz lembrar as posições estranhas em que tem por vezes de fazer as suas montagens nos barcos para a Marinha.

Mas antes, novo golpe de azar: ao ir buscar as ferramentas à despensa, o Monteiro faz cair uma caixa com milhares de pregos, parafusos e até pioneses que se espalham pelo chão da cozinha. Mais um contratempo, apanhar aquela quinquilharia toda!

Era também necessária uma fonte de luz para o Eugénio, que o Monteiro não tinha. Lá vou eu a casa buscar uma lanterna, com a agravante que tenho de passar perto da esplanada do Charnequeiro. Para evitar ter que distribuir um boletim noticioso com os azares do dia, aceno uma saudação de longe, ponho cara de poucos amigos e passo ao largo.

De volta à cozinha, lá se vai desligando um aparelho e depois outro, no meio do vapor infernal, e o resultado é…

Nulo!

O disjuntor continua a saltar.

O Eugénio está perplexo. Mas é pelo menos tão teimoso como o Monteiro.

O resto dos convivas está inquieto e não pára de me telefonar. Não atendo.

Final feliz

Por fim, o Eugénio tem um momento eureka e repara que o único fio que não desligou foi a terra do esquentador. Como é que uma terra pode provocar um curto-circuito? Mistério. Mas desligada a terra, o exaustor pode trabalhar enfim e começar a dissipar o nevoeiro pegajoso. O problema do esquentador será resolvido no dia seguinte, pelo técnico que o instalou.

O galo está pronto e cheira bem. A loiça foi lavada, os vestígios do crime apagados (incuindo os últimos pregos que não param de aparecer pelo chão). Resta transportar o enorme tacho de cabidela para a oficina do Oliveira e dar início ao repasto. São onze da noite!

Claro que um ou dois convivas, devido à longa espera, já se tinham excedido um pouco no chouriço e no queijo (ou teria sido no vinho? já não sei bem). Mas fazem-nos uma recepção espectacular, todos de chapéu e com chapéus previstos para todos nós, da colecção de equipamento de caça do Oliveira. Sete homens na semiobscuridade, todos de chapéu à volta de uma mesa com um tacho gigante no meio, fazem um quadro intrigante. Ficou muito bem na fotografia, como podem ver.

Moral da história

Nem tudo correu mal, portanto. Desfrutou-se de um excelente galo de cabidela, acompanhado de bom convívio e amizade, numa bela noite de Verão. A adversidade pesou, mas conseguimos superá-la...

Mesmo o bom tempo foi uma sorte. Na manhã seguinte choveu a potes em todo o País.

Entretanto, já tive ocasião de falar com o Monteiro e fiquei feliz por saber que ele e a D. Henriqueta continuam casados e a dar-se bem, o que quer dizer que a crise foi ultrapassada (refiro-me ao que terá acontecido quando ela voltou a casa e encontrou a cozinha naquele estado, pois não há crime que possa ser escondido da sua investigação tipo CSI).

Por fim, leitor, aceita um conselho de quem não acredita em nada sobrenatural: se puderes evitar, não mates um galo à sexta-feira!

Comentários

  1. Anónimo12/8/09

    Devia estar bom, mas como não fui convidado... Sem comentários!!...

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