Língua de palmo

Vou falar de um assunto em que não sou muito sabido. Mas tenho desculpas: uma, sou cliente e utilizador do serviço em causa desde pequenino e, com alguma sorte, até ao dia em que me for; duas, tenho visto sobre este assunto opinantes bem menos sabidos que eu.

Falo dos espasmos de revolta contra o Acordo Ortográfico e em suposta defesa da língua portuguesa que volta e meia abalam as redes sociais e a comunicação.

Por mim, a nova ortografia não me complica a vida. As regras são simples: escreve-se o que se pronuncia, fato no Brasil, fáqueto aqui. Deixa de se usar consoantes mudas como acento, como em director, em que o C servia para se ler dirètôr. Às vezes torna-se um pouco impreciso descobrir quando a letra se lê e quando serve de acento, mas não conheço ninguém que diga eléquetrico em vez de elétrico (esta, ainda por cima, leva acento).

Fernão Lopes, crónica de D. João I, Tesouros da Torre do Tombo

São umas quantas palavras. Custam um pouco a rotinar, mas as novas rotinas tornam-se rapidamente automáticas. Isto sou eu, claro. Para outros, pode ser mais penoso. Eu comecei a trabalhar como revisor de imprensa em 1975 e, em todos os anos em que exerci essa profissão, aparecia gente a escrever mãi e quási, grafias de antes do acordo ortográfico anterior, de 1943.

Refilar sobre o acordo, cá para mim, tornou-se uma forma fácil de exprimir inconformismo, sem correr o risco de fazê-lo sobre alguma coisa de sério, que pudesse indispor contra o refilante o patronato local ou os poderes da situação.

Ah, a ditadura...

Quando do acordo de 43 mandava o Salazar, portanto todos tiveram que obedecer. Se quisessem discordar de qualquer coisa, ela tinha que merecer o sacrifício da liberdade, da saúde, da cidadania ou mesmo da vida. A ortografia não era um desses assuntos!

Hoje, sem ditadura política (a económica é outro caso), dava jeito que os meus concidadãos entendessem que a implementação do acordo é uma daquelas manobras em que, à falta de ditadura (!), requer alguma calma e autodisciplina da nossa parte. Era bom que não se abanasse demasiado o barco. Querer agora voltar para trás ia dar uma destas trapalhadas que só visto.

Mais vale deixar seguir. Estas coisas levam tempo. Daqui a uns anos haverá quem defenda ferozmente este acordo... contra o próximo!

Não estou a mandar calar ninguém, até porque eu não mando nada. Mas falem, opinem sobre outra coisa qualquer, sei lá...

Viva a tradição!

Gostava também de dizer uma coisa sobre a tradição.

A tradição da língua portuguesa é mudar. A ortografia mudou muito desde o tempo do Eça para a primeira metade do século XX, e daí para a segunda metade. Às portas do século XXI, nova cambalhota. É normal. Nem falando sequer da diferença entre os dias de hoje e os do Fernão Lopes!

A nossa tradição é tentar aproximar a grafia da fala.

Já o nosso primeiro gramático, Fernão de Oliveira, dava prioridade à fala na construção da ortografia: "Antes se ha de fazer muyta conta do costume de seu falar" [Gramatica da Lingoagem Portuguesa, Cap. XXXV, 1536]

Outras línguas são mais conservadoras. O inglês, creio, escreve-se praticamente como no século XIX. Cada palavra carrega bandos de letras inúteis, resíduos históricos que provêm, na maioria, do latim ou do grego. Pior ainda, muitas dessas letras foram inseridas modernamente pelos gramáticos para recuperar a grafia que era suposto terem trazido da história. Chama-se a isto a grafia pseudo-etimológica. Pseudo, porque aqui recria-se (inventa-se) a história para se parecer com os preconceitos dos estudiosos.

É por isso que eles ainda usam pharmacy, cellphone, hyperlink e coisas que tais. Para nós isso são coisas do tempo do Eça. Já tínhamos deixado de usá-las antes de 1943.

Grande exemplo desta tendência é Fernando Pessoa: "Sim, porque a ortographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha." — O Livro do Desassossego, heterónimo Bernardo Soares.

Fernão Lopes, crónica de D. João I, edição impressa de 1644, Biblioteca Nacional, Lisboa

Uma língua clara

Outra questão, continuando a comparar o inglês com o português, é que no inglês a grafia tem pouco a ver com a dicção (viram dicção? lê-se diqueção). As palavras though e thought dizem-se de forma completamente diferente, *duu e *sot. As línguas latinas do sul da Europa, com destaque para o português, são precisamente ao contrário. As discrepâncias são muito menores. São  linguas claras. Praticamente corresponde um fonema a cada letra.

Mais arrumadinhas, só as línguas eslavas. Cada letra (das deles) corresponde mesmo a um fonema. E as letras só têm um valor. Eles agradecem a São Cirilo e a São Metódio (embora o alfabeto cirílico só tenha sido desenvolvido, na Escola de Preslav, muido depois dos dois santos terem morrido), mas nós devemos a nossa trapalhada à longa história de usar o alfabeto latino para as mais diversas línguas e culturas. Temos assim o S que vale também de Z e às vezes de J. Temos o C que, além do seu ofício de soar como S, também faz biscates como Q, e por aí fora.

Talvez no próximo acordo mexam nisso. Decerto não estarei cá, mas imagino o regabofe!

Como exemplo, o parágrafo anterior ficaria, na tal hipotética grafia do futuro acordo, mais ou menos assim:

Maij arrumadinhaj, só aj línguaj eslavaj. Qada letra (daj delej) qorrejponde mejmo a um fonema. E aj letraj só teem um valor. Elej agradecem a São Sirilo e a São Metódio, maj nój devemoj a nosa trapalhada á longa hijtória de uzar o alfabeto latino para aj maij diversaj línguaj e qulturaj. Temoj asim o S qe vale também de Z e ás vezes de J. Temoj o C que, além do seu ofísio de soar como S, também faj bijcatej como Q, e por aí fora.

Bem...

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