A lógica retorcida do 'direito histórico' dos judeus a Israel

Tradução de um artigo no diário israelita Haaretz.

Shlomo Sand

Shlomo Sand (pronuncia-se Zand) (Linz, 10 de setembro de 1946) é um historiador israelita, professor emérito de História na Universidade de Tel Aviv e autor do livro "A Invenção do Povo Judeu" (2009). Tem como principais áreas de interesse o nacionalismo, a história do cinema e a história intelectual francesa. A sua orientação política é anti-sionista. Neste artigo defende a posição de que não há qualquer direito histórico dos judeus a ocupar a Palestina e entra em polémica com Chaim Gans, um professor de Filosofia da mesma universidade, que procura arranjar uma justificação 'sionista de esquerda' para o estado de Israel.

Shlomo Sand

A nossa cultura política insiste em ver os judeus como descendentes diretos dos antigos hebreus. Mas os judeus nunca existiram como "povo" – ainda menos como nação

Eu gosto das vacilações de Chaim Gans1, mesmo que nem sempre as entenda. Tenho a mais alta estima pela sua honestidade intelectual – mesmo que às vezes, talvez como todos nós, tente resolver contradições com argumentos coxos.

No entanto, antes de entrar no cerne da questão, devo deter-me num erro irritante – tenho a certeza de que, no fundo, não é deliberadamente enganoso, mas uma tolice – sobre meus escritos. No artigo, “From rabid Zionism to egalitarian Zionism” (9 de novembro), escreve Gans, “porque, segundo [Sand], não há supostamente continuidade genética entre o antigo e o moderno judeu, segue-se que a nacionalidade judaica gerada pelo sionismo é uma fabricação total, uma nacionalidade criada a partir do nada”.

Se a minha suposição de que Gans examinou os meus livros está correta, parece ter lido os dois a correr e na diagonal. Desde a publicação do meu primeiro livro "A Invenção do Povo Judeu" há uma década, fiz questão de enfatizar que não são só os judeus quem não possui um DNA comum – também carecem dele todos os outros grupos humanos que afirmam ser povos ou nações – além do que eu nunca pensei que a genética possa conferir direitos nacionais. Por exemplo, os franceses não são os descendentes diretos dos gauleses, assim como os alemães não são descendentes dos teutões ou dos antigos arianos, ainda que até pouco mais de meio século atrás muitos idiotas acreditassem justamente nisso.

Um traço que todos os povos têm em comum é que são invenções retroativas sem "traços" genéticos distintos. O problema agudo que genuinamente me perturba é que eu vivo numa cultura política e pedagógica singular que continua persistentemente a ver os judeus como descendentes diretos dos antigos hebreus.

O mito fundador do sionismo – que segue numa linha ininterrupta, de Max Nordau e Arthur Ruppin, até geneticistas problemáticos em várias universidades israelitas e na Universidade Yeshiva em Nova York – atua como a principal cola ideológica para a unidade eterna da nação, e hoje mais do que nunca. A justificação para o estabelecimento / colonização sionista (escolha o seu termo preferido – significam a mesma coisa) é o meta-paradigma que é expresso na declaração do estabelecimento do estado, a saber: “Nós estávamos aqui, nós fomos desenraizados, nós voltámos."

Esclarecimento completo: Mesmo quando eu acreditava, erroneamente, que o "povo judeu" foi exilado pelos romanos em 70 EC ou 132 EC, não achava que isso conferisse aos judeus qualquer espécie de "direito histórico" imaginado à Terra Santa. Se procurarmos organizar o mundo como há dois mil anos, vamos transformá-lo numa grande casa de loucos. Por que não levar os nativos americanos de volta a Manhattan, por exemplo, ou restaurar os árabes na Espanha e os sérvios no Kosovo? Naturalmente, essa lógica distorcida do "direito histórico" também nos comprometerá a apoiar os contínuos estabelecimentos / colonatos de Hebron, Jericó e Belém.

Ao prosseguir a minha pesquisa, a minha perceção de que o Êxodo do Egito nunca aconteceu e que os habitantes do reino de Judá não foram exilados pelos romanos, deixou-me perplexo. Não há um estudo de um historiador especializado em antiguidade que narre esse "exílio" ou qualquer estudo historiográfico sério que reconstrua uma migração em massa do local. O “exílio” é um evento formativo que nunca ocorreu, caso contrário, seria o tema de dezenas de pesquisas. Os camponeses de Judá, que constituíam a maioria absoluta da população no primeiro século EC, não eram marinheiros como os gregos ou os fenícios e não se espalharam pelo mundo. Foi o monoteísmo jeovista, que desde a era dos Hasmoneus se tornou uma religião dinâmica envolvida na conversão, que lançou as bases para a existência milenar dos judeus em todo o mundo.

Aqui é que chegamos ao coração dos argumentos de Gans. Este distinto jurista e teórico político não está preparado para aceitar as justificações padrão para a colonização e para o conceito sionista de propriedade da terra desde o final do século XIX. Ele está bem ciente de que tais proposições populares o obrigariam a justificar a continuação do atual projeto de colonização, e talvez também a negar os direitos dos nativos que ainda permanecem na "terra de Israel".

Gans sabe que nunca houve realmente uma nação judaica, e é por isso que ele recorre à imagem literal de um “perfil” – um termo surpreendente e original no contexto nacional – totalmente baseado na ignorância. Para ele entender o que Clermont-Tonnerre quis dizer no seu famoso discurso2 (um assunto que abordei num artigo na edição em hebraico do Haaretz em agosto passado), uma busca na Wikipedia teria bastado. Teria aprendido imediatamente que, por "nação", o liberal francês estava a referi-se a uma comunidade religiosa fechada e insular. Não se viam os judeus, ao contrário, como povo ou nação de acordo com o uso moderno desses termos?

Até à era moderna, os termos “povos” ou “nações” eram usados ​​numa variedade de sentidos. Na Bíblia, Moisés desce até ao povo e fala diretamente com eles (sem alto-falante, jornais, televisão ou Twitter). O povo também se reúne para dar as boas vindas a Josué e congratulá-lo pelas suas vitórias. Na Idade Média, os cristãos viam-se a si próprios como "povo de Deus", termo amplamente usado por centenas de anos. No nosso tempo, os termos “povos” ou “nações” são aplicados de maneira diferente, embora nem sempre com precisão. Um “povo” é, geralmente, uma comunidade humana que vive dentro de um território definido, cujos membros falam uma língua comum e mantêm uma cultura secular com as mesmas fundações, ou similares. "Nação", por outro lado, é um termo que hoje é geralmente aplicado a um povo que reivindica soberania sobre si mesmo ou já a alcançou.

Não acho que existissem povos antes da era moderna – essa possibilidade teria sido descartada pelo nível de comunicação que possuíam. Havia grandes clãs, tribos, reinos poderosos, grandes principados, comunidades religiosas e outros grupos com várias formas de vínculos políticos e sociais – geralmente frouxos. Numa época em que poucas pessoas sabiam ler e escrever, quando cada aldeia tinha um dialeto diferente e o léxico era espantosamente escasso, é difícil falar sobre pessoas com uma consciência compartilhada. Minorias de alfabetizados instruídos ainda não constituíam nações, mesmo que por vezes tenham criado essa impressão.

Não entendo porque todos os gatos têm que ser chamados gatos e todos os cães, cães – e só um gato tem que ser chamado cão. Os judeus, como os cristãos, os muçulmanos ou os seguidores da fé Bahá'í, tinham em comum uma forte crença em Deus ao lado de práticas religiosas diversas e intimamente ligadas. No entanto, um judeu de Kiev não podia conversar com um judeu de Marraquexe, não cantava as canções do judeu iemenita e não comia os mesmos alimentos que a comunidade Falash Mura, ou Beta Israel, da Etiópia. Todo o tecido da vida secular do dia a dia era completamente diferente em cada comunidade. Assim, até hoje – e com razão – a única maneira de se unir ao “povo judeu” é através de um acto de conversão religiosa.

Os cristãos, em contraste, viam os judeus como membros de uma abominável fé veneradora de dinheiro. Os muçulmanos consideravam-nos adeptos de uma religião inferior. Com o advento do progresso na era moderna, muitos europeus começaram a tratá-los como uma raça contaminada. O antissemitismo esforçou-se poderosamente por considerar os judeus como uma raça de pessoas alienígenas com sangue diferente (o DNA ainda não havia sido descoberto).

Mas que raios era o seu próprio "perfil"? Produto saliente do sistema de educação sionista, Chaim Gans diz-nos que eles se viam como um tipo de nação que sonhava em chegar à “Terra de Israel”. Eu vou sugerir que Gans leia autores distintamente judaicos como Hemann Cohen ou Franz Rosenzweig, ou o Talmud, que rejeitaram a emigração coletiva para a Terra Santa. Decerto não terá tempo para isso. Só lhe sugiro que leia uma história curta um pouco mais confiável.

Até a Segunda Guerra Mundial, a grande maioria dos judeus orientais e ocidentais – tradicionalistas, ortodoxos, conservadores, reformistas, comunistas e bundistas – eram declarados anti-sionistas. Não desejavam a soberania sobre si próprios dentro de uma estrutura de estado-nação no Oriente Médio. Os bundistas, na verdade, viam-se a si próprios, e com toda a razão, como um povo iídiche necessitado de autonomia linguístico-cultural, mas rejeitavam liminarmente a proposta de migrar para a Palestina como parte de um projeto de nação judaica transmundial.

E aqui chegamos à última tentativa desesperada de justificar retroativamente o empreendimento sionista: o sionismo como resposta a uma emergência. A história, infelizmente, foi mais trágica. O sionismo fracassou totalmente em resgatar os judeus da Europa, nem poderia tê-lo feito. De 1882 até 1924, os judeus fluíram em massa – cerca de 2,5 milhões – para o promissor continente norte-americano. E sim, se não fosse devido ao racista Acto de Imigração de Johnson-Reed que impediu a imigração continuada, outro milhão ou talvez dois milhões destas almas poderiam ter sido salvos.

Esclarecimento completo adicional: Eu nasci após a guerra num campo de deslocados na Áustria. Durante os meus primeiros dois anos, morei com os meus pais noutro acampamento, na Baviera. Os meus pais, que perderam os seus pais no genocídio nazista, queriam esgueirar-se para França ou, em alternativa, migrar para os Estados Unidos. Mas todas as portas foram fechadas e eles foram obrigados a ir para o jovem país de Israel, o único lugar que concordou em aceitá-los. A verdade é que, para a Europa, depois da sua participação no massacre dos judeus, era conveniente expelir o remanescente de uma população nativa que não havia participado do terrível assassinato e, assim, criaram nova tragédia, embora a uma escala completamente diferente.

Chaim Gans não se sente confortável com esta narrativa histórica, especialmente quando a opressão dos nativos e a pilhagem das suas terras continua até hoje. O sionismo, que teve êxito em forjar uma nova nação, não está preparado para reconhecer a sua criação político-cultural-linguística, nem mesmo os direitos nacionais específicos que esse processo lhe conferiu. Mas Gans, finalmente, está certo. De Meir Kahane a Meretz, todos os sionistas continuam a ver o estado em que vivemos, não como uma república democrática pertencente a todos os seus cidadãos israelitas – que definitivamente têm direito à autodeterminação – mas como uma entidade política que pertence aos judeus do mundo, que como seus antepassados ​​não têm vontade de vir aqui ou definir-se como israelitas.

O que me resta, entretanto, é continuar a ser um a-zionista ou não-zionista enquanto faço o que posso para salvar o sítio em que vivo de um racismo que se intensifica, devido, entre outras razões, ao ensino de um passado histórico falso, ao medo da assimilação com o Outro, à repugnância pela cultura indígena e por aí fora. Porque, como escreve o o poeta turco Nazim Hikmet, “se eu não arder / se tu não arderes / se nós não ardermos / como irá a luz / vencer as trevas?”

1 Chaim Gans é professor de Filosofia Moral e Política na Universidade de Tel Aviv. Tem procurado justificar o Estado de Israel e o sionismo com uma argumentação mais aparentemente progressista do que é corrente hoje em dia. Voltar

2 Stanislas de Clermont-Tonnerre, deputado monarquista à Assembleia Nacional durante a Revolução Francesa, onde afirmou: "Devemos recusar tudo aos judeus como nação e dar tudo aos judeus como indivíduos" no debate sobre o fim da discriminação dos judeus.Voltar

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