Feliz na tal
Gosto de um Natal humano. De crianças felizes com as suas prendas, de famílias reunidas, de desejos de felicidade e bom ano a torto e a direito, de velhas canções sempre recicladas.
Esses desejos não são sinceros? São, quase sempre. O Natal é uma festa mercantil? Pois é, mas apenas reflete a sociedade em que vivemos. Não sou o indivíduo mais festivo da minha rua, mas gosto destas pequenas alegrias e boas vontades, destas luzes coloridas no meio da penumbra do inverno.
O Natal sempre teve o seu significado no rolar das estações, no renovar da vida. É uma festa de solstício de inverno e sempre foi. Não me interessa tanto o Natal com deuses. Como qualquer personagem narcisista, apoderam-se da festa e fazem com que tudo o que se passa seja deles e para eles. E ainda por cima, nem sequer existem.
Mas continuamos a ver os filmes de Natal, quase sempre os mesmos, e a ruminar a velha história do menino nas palhinhas, do burrinho e da vaquinha, dos Reis Magos e da estrela. Poucos se dão conta de estes ingredientes pertencem a histórias diferentes e incompatíveis.
Os cristãos importam-se pouco com as escrituras
Dos quatro Evangelhos, Marcos, Mateus, Lucas e João, só dois, Lucas e Mateus, falam no nascimento de Jesus. O problema é que contam histórias completamente diferentes.
Lucas diz que Jesus nasceu depois de 6 EC (Era Comum). Os pais viviam em Nazaré, na Galileia (parte norte de Israel atual), mas tiveram que fazer uma viagem de 130 km, até Belém, para responderem ao censo do governador Públio Sulpício Quirino. Esse governador é referido por Lucas, e foi nomeado para o cargo nesse ano. Isso não faz sentido porque o censo é para cobrar impostos e tem que ser feito onde as pessoas vivem, não no lugar de onde é originária a família. Em Belém nasce o garoto, num estábulo, encontram os pastores e voltam a casa, depois de uma visita ao Templo de Jerusalém.Mateus, por seu lado, põe Jesus a nascer dez ou mais anos antes, pelo menos em 5 AEC (Antes da Era Comum), porque refere que o rei Herodes estava vivo e ele morreu nesse ano. Os pais não viviam em Nazaré, mas em Belém. O bebé nasce em casa, não no estábulo. Aqui aparecem os Reis Magos, que seguem uma estrela (impossível) do oriente até Jerusalém, onde se põem a perguntar onde nasceu o Messias, por causa de uma profecia. Com isso chamam a atenção do rei Herodes, que lhes manda que o informem onde está o menino, com a intenção de o matar, porque ele era rei e não queria nenhum Messias.
Herodes tinha 70 anos e estava a morrer, por isso é pouco provável que se importasse com um Messias que só lhe faria sombra muitos anos depois do rei estar debaixo da terra. Além disso, Herodes é mesmo burro, porque não manda uma escolta com os Magos e confia que eles voltem. Para um rei impiedoso que matou várias esposas e filhos, não joga. Os Magos visitam Jesus e piram-se dali. O rei fica danado e manda matar todas as crianças pequenas de Belém. Herodes não era boa rês, mas os seus crimes estão documentados e a matança dos inocentes não consta. José, Maria e Jesus fogem para o Egito e ficam lá até Herodes morrer (em 5 EAC).
Então voltam, mas não vão para Belém, na Judeia, onde moravam antes, vão para Nazaré.
Com estas duas histórias incompatíveis, só se pode concluir que um dos evangelistas está a mentir, ou mentem os dois.
Isto não aflige os cristãos, que contam a história do Natal misturando as duas narrativas, metendo o menino nas palhinhas, pastores, estrelas e Reis Magos, perseguição de Herodes e visita ao Templo, burrinhos, vaquinhas e camelos, tudo ao molho.
Para quem seja cético, o que se passa é evidente: os dois evangelistas nada sabiam sobre Jesus, exceto talvez que era de Nazaré e que tinha que nascer em Belém para se cumprir uma profecia a indicar que seria o Messias. À volta destes dois pontos obrigatórios, inventaram dois enredos bem diferentes.
Com tudo isto, a Natividade está cada vez mais no mesmo plano que o Pai Natal: um pedaço de folclore que pertence à quadra festiva, mas não é levado a sério.
Pronto, sendo assim, boas festas para tod@s!
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