Democracia e revolução
Temos, na Venezuela, uma situação nada inédita: um partido de esquerda ganhou as eleições e procurou executar o seu programa, mas as coisas correram mal. A governação desastrada do chavismo, junto com as medidas de embargo internacional promovidas, em especial, pelos EUA, levaram o país a uma situação desesperada. O retorno por meios democráticos a uma situação de governo não chavista parece bloqueado. Entretanto, prepara-se uma intervenção político-militar que terá, seguramente, consequências humanitárias muito graves e irá favorecer o retorno do país a uma situação de ditadura das antigas classes dominantes.
Fila de racionamento na Venezuela
Este problema tem-se posto repetidamente às pessoas de esquerda: ou apoiar regimes nominalmente de esquerda, com algumas medidas tomadas a favor dos trabalhadores, mas em que o povo acaba por odiar o regime, devido ao insucesso económico ou à repressão política, ou apoiar a contra-revolução.
Os socialistas do século XIX procuraram resolver o problema político de levar por diante as suas ideias num ambiente hostil. A ideologia que os dominava proclamava que, para libertar os trabalhadores da sua exploração, promover a igualdade e possibilitar o progresso, seria necessária uma transformação radical da posse do aparelho industrial: os meios de produção deviam ser coletivizados, na versão marxista, ou apropriados pelos seus trabalhadores e pelas comunidades, na versão descentralizada dos anarquistas.
Uma coisa é concluir, em tratados políticos e económicos, que a coletivização é necessária, outra fazer passar essas ideias numa parte importante da classe trabalhadora e da inteligentzia; outra ainda, muito mais difícil (senão impossível) é reunir o consenso necessário para levar a cabo esses objetivos pacificamente. A experiência das primeiras tentativas, como a Comuna de Paris em 1871, cedo convenceu os intelectuais progressistas que tal transformação política só podia acontecer por meios violentos ou pela irrupção massiva das massas populares na cena política.
As próprias revoluções democráticas (ou burguesas, se usarmos a terminologia marxista) não foram pacíficas. Os regimes senhoriais antigos não permitiam (e combatiam ferozmente) a expressão das forças políticas progressistas, pelo que os meios disponíveis tiveram que ser os violentos. Durante boa parte do século XIX, a Europa e as Américas foram sacudidas por uma série de revoluções, golpes de estado, contra-revoluções, repressões, exílios, guerras entre países e guerras civis. O processo já vinha do século anterior, se nos lembrarmos que a Revolução Americana foi 24 anos antes de acabar o século XVIII, a Revolução Francesa sete. No Reino Unido, a luta pela soberania do parlamento já tinha custado ao rei Charles I o pescoço, 150 anos antes, e passara por muitas convulsões depois. Fora das metrópoles imperiais, as revoluções democráticas adquiriram rapidamente uma dimensão anticolonial.1
Reformistas e revolucionários
Sobre este problema, os pensadores e as organizações operárias polarizaram-se à volta de duas estratégias:
- Os reformistas achavam que seria possível ir transformando gradualmente a sociedade através da participação nas eleições, ganhando influência e, eventualmente, obter a maioria no parlamento e formar governo. Nos países em que o estado era democático, claro.
- Os revolucionários não acreditavam que tal coisa fosse possível, tanto porque a forma como a sociedade estava organizada dava vantagens enormes às classes dominantes para defenderem o seu domínio sobre o estado, como porque, uma vez que as organizações e partidos progressistas estivessem prestes a tomar o poder, as liberdades e normas democráticas seriam imediatamente substituídas por uma ditadura brutal.
Ambas as tendências, quando postas em prática, deram resultados inesperados.
Os reformistas conseguiram efetivamente chegar ao poder em diversas ocasiões (nomeadamente na Alemanha, durante a República de Weimar e em diversos países, sobretudo na Europa), mas pouco fizeram para levar a cabo o programa esperado pelas camadas que os apoiavam. As poucas reformas que realizaram, em larga medida, deram forma ao estado social do século XX, mas não levaram a qualquer mudança no regime económico. Gradualmente, os reformistas foram abandonando todas as referências à transformação económica e social, propondo-se apenas gerir o sistema capitalista à esquerda.
Mas a mais decisiva das traições da corrente reformista foi o abandono do internacionalismo e da solidariedade com os trabalhadores de outros países que teve lugar no início da Primeira Guerra Mundial. Todos os partidos reformistas aderiram ao nacionalismo mais desavergonhado, aceitando mobilizar os trabalhadores dos seus países para a carnificina geral.2
Os revolucionários também conseguiram chegar ao poder, começando com a Revolução Russa de 1917. Em todos os lugares onde obtiveram o comando do estado criaram regimes ditatoriais de partido único, apoiados em polícia secreta, campos de concentração e pena de morte para a dissidência. Os resultados sociais e económicos prometidos, em nome dos quais exigiram aos cidadãos estes sacrifícios desmedidos, não se concretizaram. Após anos e anos de ditadura, todos estes regimes se desmoronaram, para alívio dos seus cidadãos e opróbio generalizado da sua ideologia.
O caso da URSS
Não creio que os comunistas originais, antes da Revolução de Outubro, imaginassem o regime sequente à tomada do poder como uma ditadura de partido único. Defendiam a ditadura do proletariado, mas caraterizavam-na como uma democracia operária. Na primeira Constituição da União Soviética3, o poder era atribuído a todos os cidadãos que trabalhassem por conta de outrém. Quem tivesse empregados ou vivesse de rendimentos, não votava nem podia ser eleito. Da base até ao topo, era uma pirâmide de conselhos. Por isso o país se chamava República dos Conselhos (Sovietes). Não havia separação de poderes e instituições de fiscalização e controlo.
Nunca se saberá se esta organização do estado era viável, porque na realidade nunca funcionou. Em outubro de 1917, as eleições para a Assembleia Constituinte, dissolvida quase de imediato pelos bolcheviques, deram a maioria, folgadamente, aos Socialistas Revolucionários, um partido socialista democrático ligado sobretudo aos camponeses e à exigência de uma reforma agrária. Dentro em pouco, no entanto, a Guerra Civil brutal impediu qualquer democracia. Ambos os lados usaram o terror, massacres e crimes terríveis. Já no fim da Guerra Civil, os comunistas estavam a reprimir de forma violenta uma revolta de marinheiros na base naval de Kronstadt, perto de São Petersburgo e a requisitar à mão armada o trigo dos agricultores famintos.
No fim da Guerra Civil, o que estava de pé não era uma República de Conselhos, mas uma ditadura do partido único, assente numa polícia política feroz, a Cheka, em prisões sem garantias, em execuções sumárias, em tortura, massacres e campos de concentração. É de discutir se os comunistas se tornaram asssim por efeito da Guerra Civil ou se já eram assim antes. No entanto, é de notar que a Cheka foi criada apenas um mês depois da tomada do poder.
Imaginando que os bolcheviques quisessem restaurar a forma de ditadura do proletariado que tinham projetado — ou democracia operária — uma vez estabilizado o regime e terminada a Guerra Civil, podiam tê-lo feito, autorizando de novo os partidos que tinham proibido, tomando medidas de reconciliação, libertando presos políticos. Até autorizando de novo as tendências no seio do seu partido.
Mas o poder é uma droga muito forte, e autorizar o acesso aos órgãos do poder àqueles que tinham combatido com as armas era demasiado. Além disso, seriam naturalmente responsabilizados pelos crimes que haviam cometido. Era também muito possível que os cidadãos eleitos não estivessem de acordo com algumas das decisões fundamentais dos comunistas e quisessem revertê-las. Isso seria intolerável, depois de todo o sangue vertido.
No fim, os comunistas não sentiam lealdade perante o povo, nem pelas massas trabalhadoras. A sua lealdade era perante a revolução, o projeto político que queriam realizar a todo o custo. Em breve, pensavam, novas revoluções na Europa iriam romper o seu isolamento. Era preciso aguentar o baluarte, custasse o que custasse.
Todas as revoluções que se seguiram (e em muito poucos sítios voltou a haver insurreição popular; o poder foi em regra tomado por meios militares) incorporaram as novas componentes autoritárias do comunismo: a ditadura do partido único, a polícia secreta, a censura, o uso cínico da manipulação e da repressão para manter o poder.
Voltando à Venezuela
E voltamos ao problema da Venezuela: os chavistas ascenderam ao poder de forma democrática, creio, e apressaram-se a tomar muitas medidas que, acreditavam, iam favorecer os trabalhadores. Não lhes ocorreu que podiam estar errados e que podia dar-se o caso do povo, através dos seus representantes eleitos, querer reverter algumas das suas medidas. Na sua ótica, havia o bem e o mal: o chavismo defendendo o povo venezuelano e o imperialismo norte-americano tentando subjugá-lo de novo. Sem meio termo.
Parte da miséria dos venezuelanos resulta, sem dúvida, das medidas imperialistas de boicote, retenção de capitais e isolamento; mas outra parte, nada pequena, resulta da inépcia dos chavistas. Os quais já irritaram tanto o povo que, havendo eleições livres, o mais certo é varrerem-nos do poder e liquidarem todas as suas políticas.
Essa humildade de reconhecer os erros cometidos (e talvez os crimes também) não faz parte da postura heróica dos bolivarianos. Manter o impasse político, teimar até o regime estar tão fraco que seja viável uma intervenção armada apoiada pelos EUA, com o seu inevitável banho de sangue, está mais de acordo com a sua forma de estar. Depois, talvez, perder uma breve guerra civil e ir para o mato fazer guerrilha contra a ditadura de extrema-direita que lhes vai suceder.
No meio disto tudo, o povo venezuelano sofre. Tal como o povo russo, na história que contei antes.
Conclusões
A esquerda de hoje tem que ser democrata. Pode (e deve) discordar da democracia capitalista habitual, com o seu governo por uma oligarquia, mas os melhoramentos serão sempre no sentido de mais abertura, mais transparência, mais participação, mais responsabilidade, mais vigilância.
Os políticos progressistas têm que poder prever, caso tenham acesso a poder, que podem estar enganados, que algumas das suas políticas se revelarão incorretas, ou que os cidadãos não estão preparados para aceitá-las — e aceitar que o povo lhes puxe as orelhas.
Há medidas que são bem aceites, que se tornam rapidamente parte da vida da comunidade e que um governo mais à direita que eventualmente se sente no poder muito dificilmente poderá reverter; há outras que parecem boas, que os livros aconselham, como a coletivização imediata dos meios de produção — mas que são aventureiras, pois ninguém sabe se funcionam e, antes que talvez funcionem, exigem duros anos de adaptação. Estas medidas provocam enorme reação política, quer pelo alarme das classes dominantes, quer porque haverá um preço caro a pagar pelas camadas populares, em desordem económica e carências. Os seus promotores podem ser tentados a ficar no poder a todo o custo, para evitar que sejam destruídas...
Outra questão a encarar com prudência é o isolamento nacional. Não é possível a um país avançar muito isolado dos outros. A economia está mais integrada que nunca e o isolamento é muito grave. É muito importante que os progressistas busquem alianças internacionais para coordenar as suas atividades políticas, fazendo da colaboração internacional uma força. Isto é verdade para todos os países, mas é ainda mais importante onde há instâncias supranacionais como a União Europeia.
Por fim, é preciso lembrar que o século XX não foi nada generoso com as ideologias, em particular as mais sectárias. Hoje há uma desconfiança saudável dessas construções sociais. Convém pensar, com Karl Popper, que nada sabemos sobre o futuro: "A crença no destino histórico é pura superstição e não há como prever, com os recursos do método científico ou de qualquer outro método racional, o caminho da história humana"4.
Mais vale, na minha opinião, lutar pelos objetivos concretos, racionais que são aparentes em dado momento, de acordo com uma ética de bem comum. Esses objetivos têm tendência, se concretizados, a ficar e a ser difíceis de desfazer. Como tudo isso se organizará, não sabemos. Nem podemos saber.
1 – Com respeito à questão colonial e à escravatura, as revoluções democráticas tiveram posições muito diversas Muitos dos colonos norte-americanos pretendiam a independência para protegerem o seu sistema esclavagista de interferências, assim como para serem eles próprios a apoderar-se das terras dos indígenas; no Brasil, a independência teve também a função de proteger a escravatura; já no Haiti, a revolta dos escravos em 1791 foi a primeira revolução ao mesmo tempo democrática e anticolonial. As revoluções anticoloniais independentistas das ex-colónias espanholas levaram à abolição da escravatura. Já as revoluções democráticas na Europa, em geral, mantiveram a política colonialista dos regimes que substituíram. [Voltar ao texto]
2 – Pode parecer estranho hoje, mas as ideologias operárias no princípio do século XX eram internacionalistas. Propunha-se a luta dos trabalhadores de todos os países contra as suas classes dominantes. Nos primeiros anos da União Soviética, quando outras revoluções não se concretizaram e o regime ficou isolado, houve uma discussão acalorada sobre se seria possível construir o socialismo num só país, ideia de Estaline. No seguimento da II Guerra Mundial, a linguagem dos comunistas ficou cada vez mais contaminada pelo nacionalismo russo. O discurso marxista foi depois muito influenciado pela Revolução Chinesa e pela sua aplicação no quadro das revoluções anticoloniais. É daí que vem a componente nacionalista do programa do PCP, que propunha, antes do 25 de Abril, a revolução democrática e nacional.[Voltar ao texto]
3 – Constituição da União Soviética de 1918 em marxists.org (inglês) [Voltar ao texto]
4 – Popper, Karl, "A Pobreza do Historicismo", Wook [Voltar ao texto]
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