As outras mulheres afegãs
No campo, a matança interminável de civis virou as mulheres contra os ocupantes que afirmavam estar a ajudá-las.
Por Anand Gopal — 6 de setembro de 2021
Anand Gopal tem aqui, neste artigo publicado em The New Yorker: The Other Afghan Women, um relato do que se passou no chão, entre as pessoas massacradas e bombardeadas. Um dos melhores e mais humanos relatos de guerra que já vi. Um relato também da mais extraordinária maldade, disfarçada aos olhos ocidentais com propaganda delicodoce. Mas lá no chão, é uma guerra como as outras, violência, horror e lágrimas. O artigo também serve como narrativa desta guerra, a “Guerra Americana”, como lhes chamam as suas vítimas, olhada de baixo e vista por mulheres, as outras mulheres.
Três mulheres caminham por uma estrada de terra em direção às montanhas
Mais de setenta por cento dos afegãos não vivem em cidades. Nas áreas rurais, a vida sob a coligação liderada pelos EUA e seus aliados afegãos tornou-se puro perigo; até mesmo beber chá num campo ao sol ou guiar para o casamento de uma irmã irmã era uma aposta potencialmente mortal.
Fotografia de Stephen Dupont / Contact Press Images
No final de uma tarde de agosto passado, Shakira ouviu pancadas no portão da frente. No vale de Sangin, que fica na província de Helmand, no sul do Afeganistão, as mulheres não devem ser vistas por homens que não sejam parentes delas, por isso o seu filho de dezanove anos, Ahmed, foi ao portão. Do lado de fora estavam dois homens com bandoleiras e turbantes pretos, carregando carabinas. Eram membros dos talibãs, que estavam a levar a cabo uma ofensiva para reconquistar as zonas ao Exército Nacional Afegão. Um dos homens avisou: “Se não saírem já, toda a gente vai morrer”.
Shakira, que tem quarenta e poucos anos, arrebanhou a sua família: o seu marido, um comerciante de ópio, que estava profundamente adormecido, tendo sucumbido às tentações do seu produto, e os seus oito filhos, incluindo a mais velha, Nilofar de vinte anos – tão velha como a própria guerra – a quem Shakira chamava “ajudante”, porque ajudava a cuidar dos mais jovens. A família cruzou um velho passadiço que atravessa um canal, depois serpenteou por entre juncos e leiras irregulares de feijão e cebola, passando por casas escuras e vazias. Os seus vizinhos também tinham sido avisados e, exceto galinhas errantes e gado órfão, a aldeia estava vazia.
Amand Gopal
A família de Shakira caminhou horas sob um sol escaldante. Começou a sentir o estrépito de baques distantes e viu pessoas a fluir de aldeias ribeirinhas: homens agachandos sob trouxas carregadas com tudo o que não suportavam deixar para trás, mulheres a andar tão depressa quanto as suas burcas permitiam.
O som da artilharia encheu o ar, anunciando o início de um ataque dos talibãs a um posto avançado do Exército Afegão. Shakira equilibrava a sua filha mais nova, de dois anos, no quadril enquanto o céu brilhava e trovejava. Ao cair da noite, chegaram ao mercado central do vale. As frentes de loja de chapa ondulada tinham sido em grande parte destruídas durante a guerra. Shakira encontrou uma loja de uma só sala com o telhado intacto, e a sua família acomodou-se para passar a noite. Para as crianças, ela mostrou um conjunto de bonecas de pano – uma das várias distrações que cultivou durante os anos de batalha em fuga. Enquanto segurava as figuras à luz de um fósforo, a terra tremeu.
Perto do amanhecer, Shakira saiu e viu que algumas dezenas de famílias se tinham abrigado no mercado abandonado. Já fora em tempos o bazar mais próspero do norte de Helmand, com lojistas a pesar açafrão e cominhos em balanças, carrinhos carregados de vestidos de mulher e lojas dedicadas à venda de ópio. Agora, pilares perdidos projetavam-se no ar e o ar cheirava a restos de animais em decomposição e plástico queimado.
À distância, a terra de repente explodiu em erupções de pó. Helicópteros do Exército Afegão zumbiam no alto e as famílias esconderam-se atrás das lojas, pensando no próximo movimento. Havia combates ao longo dos baluartes de pedra ao norte e na margem do rio a oeste. A leste, havia um deserto de areia vermelha, até onde Shakira podia ver. A única opção era seguir para o sul, em direção à frondosa cidade de Lashkar Gah, que permanecia sob o controlo do governo afegão.
A viagem iria envolver cruzar uma planície estéril exposta a bases abandonadas dos EUA e da Grã-Bretanha, onde os atiradores faziam ninho, e atravessar buracos potencialmente cheios de explosivos. Algumas famílias começaram. Mesmo se alcançassem Lashkar Gah, não poderiam ter a certeza do que encontrariam lá. Desde o início do blitz dos talibãs, os soldados do Exército Afegão renderam-se em massa, implorando passagem segura para casa. Era claro que os talibãs chegariam a Cabul em breve e que os vinte anos e os triliões de dólares dedicados a derrotá-los não tinham servido para nada. A família de Shakira estava no deserto, discutindo a situação. O tiroteio soou mais perto. Shakira avistou veículos dos talibãs a correr em direção ao bazar – e decidiu ficar parada. Estava cansada até os ossos, os seus nervos esfrangalhados. Iria enfrentar o que se seguisse, aceitaria-o como um julgamento. “Fugimos toda a nossa vida”, disse-me ela. "Não saio daqui.”
A guerra mais longa da história americana terminou a 15 de agosto, quando os talibãs capturaram Cabul sem disparar um tiro. Homens barbudos e magros com turbantes negros assumiram o controlo do palácio presidencial, e ao redor da capital as austeras bandeiras brancas do Emirado Islâmico do Afeganistão foram hasteadas. Seguiu-se o pânico. Algumas mulheres queimaram os seus registos escolares e esconderam-se, temendo um retorno aos anos 90, quando os talibãs as proibiram de saírem sozinhas e baniram a educação de meninas. Para os americanos, a possibilidade muito real de que os ganhos das últimas duas décadas pudessem ser apagados parecia representar uma escolha terrível: comprometer-se novamente com uma guerra aparentemente sem fim ou abandonar as mulheres afegãs.
Neste verão, viajei à zona rural do Afeganistão para conhecer mulheres que já viviam sob o domínio dos talibãs, para ouvir o que elas pensavam sobre esse dilema que se aproximava. Mais de setenta por cento dos afegãos não vivem em cidades e, na última década, o grupo insurgente engoliu grandes áreas do campo. Ao contrário da relativamente liberal Cabul, visitar mulheres nessas zonas não é fácil: mesmo sem o governo dos talibãs, as mulheres tradicionalmente não falam com homens não aparentados. Os mundos público e privado estão profundamente divididos e, quando uma mulher sai de casa, ela mantém um casulo de reclusão por meio da burca, que antecede em séculos os talibãs. As meninas, essencialmente escondem-se nas suas casas na puberdade, emergindo apenas já avós, se é que alguma vez o fazem. Foi por meio das avós – encontrando cada uma delas através de recomendações e falando com muitas sem ver os seus rostos – que pude conhecer dezenas de mulheres, de todas as idades. Muitas viviam em tendas no deserto ou lojas vazias, como Shakira; quando os talibãs encontraram a sua família escondida no mercado, os combatentes aconselharam-nos, e a outros, que não voltassem para casa até que alguém pudesse varrer as minas. Encontrei-a pela primeira vez numa casa segura em Helmand. “Nunca encontrei um estrangeiro antes”, disse ela timidamente. “Bem, um estrangeiro sem arma.”
Shakira tem um talento especial para encontrar humor na vivência e no absurdo total dos homens da sua vida: nos anos 90, os talibãs ofereceram-se para fornecer eletricidade à aldeia, e os barbas grisalhas locais inicialmente recusaram, temendo a magia negra. “É claro que nós, mulheres, sabíamos que a eletricidade era boa”, disse ela, rindo. Quando ri, ela puxa o xale sobre o rosto, deixando apenas os olhos expostos. Disse-lhe que compartilhava o nome de uma estrela pop de renome mundial, e os seus olhos arregalaram-se. “É verdade?”, perguntou a um amigo que a acompanhou até à casa segura. “Poderia ser?”
Shakira, como as outras mulheres que conheci, cresceu no Vale Sangin, uma fenda verde entre afloramentos montanhosos pontiagudos. O vale é banhado pelo rio Helmand e por um canal que os americanos construíram na década de 1950. Pode-se caminhar por toda a largura do vale numa hora, passando por dezenas de pequenos vilarejos, passadiços que rangem e paredes de tijolos de barro. Quando menina, Shakira ouviu histórias da sua mãe, dos velhos tempos em a sua aldeia, Pan Killay, que era o lar de cerca de oitenta famílias: as crianças a nadar no canal sob o sol quente, as mulheres a moer grãos em pilões de pedra. No inverno, o fumo saía das lareiras de barro; na primavera, os campos ondulantes estavam cobertos de papoulas.
Em 1979, quando Shakira era criança, os comunistas tomaram o poder em Cabul e tentaram lançar um programa de alfabetização feminina em Helmand – uma província do tamanho da Virgínia Ocidental (⅔ de Portugal), com poucas escolas para meninas. Os anciãos e proprietários tribais recusaram. Na versão dos residentes, o modo de vida tradicional em Sangin foi destruído da noite para o dia, porque forasteiros insistiram em trazer os direitos das mulheres para o vale. “A nossa cultura não aceitava mandar as suas meninas à escola”, lembra Shakira. “Era assim antes da época do meu pai, antes da época do meu avô.” Quando as autoridades começaram a forçar as meninas a frequentar as aulas sob a mira de uma arma, uma rebelião eclodiu, liderada por homens armados que se auto-denominavam mujahidin. Na sua primeira operação, sequestraram todos os professores do vale, muitos dos quais apoiavam a educação de meninas, e cortaram-lhes as gargantas. No dia seguinte, o governo prendeu anciãos tribais e proprietários de terras sob a suspeita de que estavam a financiar os mujahidin. Esses líderes comunitários nunca mais foram vistos.
Tanques da União Soviética cruzaram a fronteira para apoiar o governo comunista – e para libertar as mulheres. De imediato, o Afeganistão foi basicamente dividido em dois. No campo, onde os rapazes estavam dispostos a morrer lutando contra a imposição de novos modos de vida – incluindo escolas para meninas e reforma agrária – as raparigas permaneceram invisíveis. Nas cidades, o governo apoiado pelos soviéticos proibiu o casamento infantil e concedeu às mulheres o direito de escolher os seus parceiros. As meninas matricularam-se em escolas e universidades em número recorde e, no início dos anos 80, as mulheres ocupavam assentos parlamentares e até mesmo o cargo de vice-presidente.
A violência no campo continuou a espalhar-se. Certa manhã, quando Shakira tinha cinco anos, a sua tia acordou-a apressadamente. As crianças foram conduzidas pelos adultos da aldeia a uma caverna na montanha, onde se amontoaram por horas. À noite, Shakira viu a artilharia rasgar o céu. Quando a família voltou para Pan Killay, os campos de trigo estavam carbonizados e marcados pelas lagartas dos tanques soviéticos. As vacas tinham sido abatidas com metralhadoras. Para onde quer que olhasse, via vizinhos – homens a quem costumava chamar “tios” – ensanguentados. O seu avô não se tinha escondido com ela, e não conseguia encontrá-lo na aldeia. Mais tarde, mais crescida, soube que ele tinha ido para uma caverna diferente e fora capturado e executado pelos soviéticos.
As evacuações noturnas tornaram-se uma ocorrência frequente e, para Shakira, uma fonte de excitação: os cantos escuros das cavernas, os grupos clamorosos de crianças. “Procurávamos helicópteros russos”, disse ela. “Era como avistar pássaros estranhos.” Às vezes, esses pássaros voavam baixo, a terra explodia e as crianças corriam para o local em busca de ferro, que poderia ser vendido por um bom preço. Ocasionalmente, juntou cacos de metal para poder construir uma casa de bonecas. Certa vez, mostrou à mãe uma fotografia de revista de uma boneca de plástico que exibia a forma feminina; sua mãe arrancou-lha, chamando-lhe imprópria. Então, Shakira aprendeu a fazer bonecas com pano e gravetos.
Quando tinha onze anos, deixou de sair. O seu mundo reduziu-se às três salas da sua casa e ao pátio, onde aprendeu a costurar, assar pão num tandur (forno de barro) e ordenhar vacas. Um dia, a passagem de jatos sacudiu a casa, e ela refugiou-se num armário. Debaixo de uma pilha de roupas, descobriu um livro infantil do alfabeto que pertencera ao seu avô – a última pessoa da família a ir à escola. Durante as tardes, enquanto os seus pais dormitavam, começou a combinar as palavras em pashto com as imagens. Lembrou: “Eu tinha um plano para ensinar um pouco a mim própria todos os dias.”
Em 1989, os soviéticos retiraram-se derrotados, mas Shakira continuou a ouvir o barulho de morteiros fora das paredes de barro da casa. As facções mujahidin concorrentes agora tentavam dividir o país entre elas. Aldeias como Pan Killay eram alvos lucrativos: havia camponeses para taxar, tanques soviéticos enferrujados para resgatar, ópio para exportar. Pazaro, uma mulher de um vilarejo próximo, relembrou: “Não tivemos uma única noite de paz. O nosso terror tinha um nome, e era Amir Dado.”
A primeira vez que Shakira viu Dado, pela portinhola do portão de entrada de seus pais, ele estava numa camioneta, seguido por uma dúzia de homens armados, desfilando pela aldeia “como se fosse o presidente”. Dado, um rico vendedor de frutas que se tornou comandante mujahidin, com uma barba preta como azeviche e uma barriga prodigiosa, começou a atacar os homens fortes rivais antes mesmo da derrota soviética. Vinha do vale Sangin superior, onde a sua tribo, os Alikozais, mantinha vastas plantações feudais há séculos. O vale inferior era o lar dos Ishaqzais, a tribo pobre à qual Shakira pertencia. Shakira viu os homens de Dado irem de porta em porta, exigindo um “imposto” e revistando casas. Algumas semanas depois, os homens armados voltaram, saqueando a sala de estar da sua família enquanto ela se agachava num canto. Nunca antes estranhos tinham violado a santidade da sua casa, e ela sentiu-se como se tivesse sido despida e atirada à rua.
No início dos anos 90, o governo comunista do Afeganistão, agora sem o apoio soviético, estava-se a desmoronar. Em 1992, Lashkar Gah caiu para uma facção mujahidin. Shakira tinha um tio que morava lá, um comunista sem tempo para ir à mesquita e um fraco por canções pashtun. Casara-se recentemente com uma jovem, Sana, que escapara a um noivado forçado com um homem com quatro vezes a sua idade. A dupla tinha começado uma vida nova na Pequena Moscovo, um bairro de Lashkar Gah que Sana chamava “a terra onde as mulheres têm liberdade” – mas, quando os mujahidin tomaram o poder, eles foram forçados a fugir para Pan Killay.
Shakira estava a cuidar das vacas uma noite, quando os homens armados de Dado a cercaram. "Onde está o teu tio?", gritou um deles. Os guerrilheiros invadiram a casa – seguidos pelo noivo rejeitado de Sana. “É ela!”, disse ele. Os pistoleiros arrastaram Sana para longe. Quando os outros tios de Shakira tentaram intervir, foram presos. No dia seguinte, o marido de Sana entregou-se às forças de Dado, implorando para ser preso em seu lugar. Ambos foram enviados ao tribunal religioso do homem forte e condenados à morte.
Não muito depois, os mujahidin derrubaram os comunistas em Cabul, e eles trouxeram consigo costumes camponeses. Na capital, os seus líderes – que receberam quantias generosas de financiamento dos EUA – emitiram um decreto declarando que “as mulheres não devem deixar as suas casas, a menos que seja absolutamente necessário, caso em que se devem cobrir completamente”. As mulheres também foram proibidas de “andar graciosamente ou com orgulho”. A polícia religiosa começou a percorrer as ruas da cidade, prendendo mulheres e queimando fitas de áudio e vídeo em fogueiras.
Mesmo assim, o novo governo mujahidin rapidamente se desintegrou e o país entrou em guerra civil. À noite, em Pan Killay, Shakira ouvia tiros e, às vezes, gritos de homens. De manhã, enquanto cuidava das vacas, via vizinhos a carregar corpos embrulhados. A sua família reuniu-se no pátio e discutiu, em voz baixa, como poderiam escapar. Mas as estradas estavam repletas de postos de controlo pertencentes a diferentes grupos mujahidin. Ao sul da aldeia, na cidade de Gereshk, uma milícia chamada 93.ª Divisão mantinha uma barricada particularmente notória numa ponte; havia histórias de homens a ser roubados ou mortos, de mulheres e meninos a ser violados. O pai de Shakira às vezes cruzava a ponte para vender produtos no mercado de Gereshk, e a sua mãe começou a implorar que ficasse em casa.
A família, confinada entre Amir Dado ao norte e a 93.ª Divisão ao sul, estava a ficar desesperada. Então, uma tarde, quando Shakira tinha dezasseis anos, ouviu gritos na rua: “Os talibãs estão aqui!” Ela viu um comboio de Toyota Hilux brancos cheio de guerrilheiros de turbante preto com bandeiras brancas. Shakira nunca tinha ouvido falar dos talibãs, mas o seu pai explicou que os seus membros eram muito parecidos com os estudantes religiosos pobres que ela vira a vida inteira a pedir esmolas. Muitos tinham lutado sob a bandeira dos mujahidin, mas saíram após a retirada dos soviéticos; agora, disseram, eles voltavam a mobilizar-se para pôr fim ao tumulto. Em pouco tempo, invadiram a ponte de Gereshk, desmantelando a 93.ª Divisão, e voluntários juntaram-se a eles enquanto desciam a Sangin. O seu irmão voltou para casa relatando que os talibãs também tinham invadido as posições de Dado. O senhor da guerra abandonou os seus homens e fugiu para o Paquistão. “Ele foi-se”, dizia o irmão de Shakira. “Foi-se mesmo.” Os talibãs logo dissolveram o tribunal religioso de Dado – libertando Sana e o seu marido, que aguardavam a execução – e eliminaram os postos de controlo. Ao fim de quinze anos, o Vale Sangin estava finalmente em paz.
Quando pedi a Shakira e outras mulheres do vale que refletissem sobre o governo dos talibãs, não quiseram julgar o movimento em relação a algum padrão universal – só em relação ao que se tinha passado antes. “Eles eram mais suaves”, disse Pazaro, a mulher que morava num vilarejo vizinho. “Lidavam conosco com respeito.” As mulheres descreveram as suas vidas sob os talibãs como idênticas às suas vidas sob Dado e os mujahidin – exceto os estranhos a irromper nas casas à noite e os mortíferos postos de controlo.
Shakira contou-me sobre uma serenidade recém-descoberta: manhãs tranquilas com chá verde fumegante e pão naan, noites de verão no telhado. Mães, tias e avós começaram a indagar discretamente sobre a sua elegibilidade; na aldeia, o casamento era um laço que unia duas famílias. Logo ficou noiva de um parente distante cujo pai havia desaparecido, provavelmente à mãos dos soviéticos. A primeira vez que viu o noivo foi no dia do casamento: ele estava sentado timidamente, rodeado por mulheres da aldeia, que zombavam dele sobre os seus planos para a noite de núpcias. “Oh, ele era um idiota!” Shakira lembrou, rindo. “Ficou tão envergonhado que tentou fugir. Tiveram que agarrá-lo e trazê-lo de volta.”
Como muitos jovens ambiciosos do vale, ele trabalhava no tráfico de ópio e Shakira gostou do brilho de determinação nos seus olhos. No entanto, começou a preocupar-se que a coragem por si só não fosse o suficiente. Quando o regime dos talibãs se estabeleceu, uma campanha de recrutamento foi lançada. Jovens foram levados para o norte do Afeganistão, para ajudar na luta contra um gangue de senhores da guerra mujahidin conhecida como Aliança do Norte. Um dia, Shakira viu um helicóptero pousar njum um campo e descarregar os corpos de recrutas caídos. Os homens do vale começaram a esconder-se em casas de amigos, mudando-se de aldeia em aldeia, com medo de serem convocados. Os rendeiros pobres eram os que corriam maior risco – os ricos podiam comprar a evasão do serviço militar. “Essa foi a verdadeira injustiça dos talibãs”, disse Shakira. Passou a detestar a visão de patrulhas itinerantes dos talibãs.
Em 2000, a província de Helmand passou por uma seca terrível. Os campos de melancia estavam arruinados e havia cadáveres inchados de animais de carga espalhados pelas estradas. Num lampejo de crueldade, o líder supremo dos talibãs, Mullah Omar, escolheu aquele momento para proibir o cultivo de ópio. A economia do vale entrou em colapso. Pazaro lembrou: “Não tínhamos nada para comer, a terra não nos dava nada e nossos homens não podiam sustentar os nossos filhos. As crianças choravam, gritavam e sentíamo-nos como se tivéssemos falhado.” Shakira, que estava grávida, mergulhava quadrados de pão naan rançoso no chá verde para alimentar as suas sobrinhas e sobrinhos. O seu marido partiu para o Paquistão, para tentar a sorte nos campos de lá. Shakira foi assaltada pelo pensamento de que o seu bebé nasceria sem vida, que o seu marido nunca mais voltaria, que ficaria sozinha. Todas as manhãs, rezava por chuva, por libertação.
Um dia, um locutor de rádio disse que houve um ataque na América. De repente, falou-se que soldados do país mais rico do planeta vinham derrubar os talibãs. Pela primeira vez em anos, o coração de Shakira agitou-se de esperança.
Uma noite em 2003, Shakira acordou sobressaltada com vozes de homens estranhos. Ela correu a cobrir-se. Quando correu para a sala, viu, em pânico, os canos das espingardas apontados para ela. Os homens eram os maiores que ela já vira e estavam de uniforme. Estes são os americanos, percebeu, maravilhada. Alguns afegãos estavam com eles, homens magricelas com Kalashnikovs e lenços xadrez. Um homem de barba enorme gritava ordens: Amir Dado.
Os EUA rapidamente derrubaram os talibãs após a sua invasão, instalando em Cabul o governo de Hamid Karzai. Dado, que fizera amizade com as Forças Especiais americanas, tornou-se o chefe da espionagem da província de Helmand. Um dos seus irmãos era governador do distrito de Sangin e outro irmão tornou-se o chefe de polícia de Sangin. Em Helmand, o primeiro ano da ocupação americana foi pacífico e os campos mais uma vez transbordaram de papoulas. Shakira agora tinha dois filhos pequenos, Nilofar e Ahmed. O seu marido tinha voltado do Paquistão e encontrado trabalho a transportar sacos de resina de ópio para o mercado de Sangin. Mas agora, com Dado de volta no comando – resgatado do exílio pelos americanos – a vida regrediu aos dias da guerra civil.
Quase todas as pessoas que Shakira conhecia tinham uma história sobre Dado. Certa vez, os seus guerrilheiros exigiram que dois jovens pagassem um imposto ou se juntassem à sua milícia particular, que ele mantinha apesar de ter o seu posto oficial. Quando se recusaram, os seus guerrilheiros espancaram-nos até a morte, amarrando os seus corpos a uma árvore. Um morador lembrou: “Fomos descê-los e tinham sido abertos, com o estômago a sair para fora”. Noutra aldeia, as forças de Dado foram de casa em casa, executando pessoas suspeitas de serem talibãs; um estudioso idoso que nunca havia pertencido ao movimento foi morto a tiro.
Shakira ficou perplexa com a escolha de aliados dos americanos. “Era esse o plano deles?”, perguntou-me. “Vieram para trazer paz ou tinham outros objetivos?” Insistiu que o seu marido deixasse de levar resina para o mercado de Sangin, e então ele mudou o seu comércio para o sul, para Gereshk. Mas voltou uma tarde com a notícia de que isso também se tornara impossível. Surpreendentemente, os Estados Unidos ressuscitaram a 93.ª Divisão – e tornaram-na o seu parceiro mais próximo na província. Os pistoleiros da Divisão novamente começaram a parar os viajantes na ponte e a saquear o que podiam. Agora, no entanto, o seu esforço mais lucrativo era coletar recompensas oferecidas pelos EUA; de acordo com Mike Martin, um ex-oficial britânico que escreveu a história de Helmand, eles ganhavam até dois mil dólares por comandante dos talibãs capturado.
No entanto, isso representava um desafio, porque dificilmente havia algum talibã ativo para capturar. “Nós sabíamos quem eram os talibãs na nossa aldeia”, disse Shakira, e eles não estavam envolvidos na guerra de guerrilha: “Eles estavam todos sentados em casa, sem fazer nada”. Um tenente-coronel das Forças Especiais dos EUA, Stuart Farris, que foi destacado para a área naquela época, disse a um historiador do Exército dos EUA: “Praticamente não houve resistência nesta rotação”. Assim, milícias como a 93.ª Divisão começaram a acusar pessoas inocentes. Em fevereiro de 2003, rotularam Hajji Bismillah – o diretor de transportes do governo de Karzai para Gereshk, responsável pela cobrança de portagens na cidade – de ser terrorista, levando os americanos a despachá-lo para Guantánamo. Com a eliminação de Bismillah, a 93.ª Divisão monopolizou a receita da portagem.
Dado foi ainda mais longe. Em março de 2003, soldados americanos visitaram o governador de Sangin – irmão de Dado – para discutir a recuperação de uma escola e de uma clínica de saúde. Ao partir, o seu cortejo foi atacado, e os sargentos Jacob Frazier e Orlando Morales tornaram-se os primeiros americanos mortos em combate em Helmand. O pessoal dos EUA suspeitou que o culpado não eram os talibãs, mas Dado – uma suspeita que me foi confirmada por um dos ex-comandantes do senhor da guerra, que disse que o seu chefe tinha arquitetado o ataque para manter os americanos dependentes dele. No entanto, quando as forças de Dado alegaram ter prendido o verdadeiro assassino – um ex-talibã chamado Mullah Jalil – os americanos enviaram Jalil para Guantánamo. Inexplicavelmente, isso aconteceu apesar do facto de que, de acordo com o arquivo confidencial de Jalil em Guantánamo, as autoridades americanas sabiam que Jalil tinha sido acusado apenas para “encobrir” o facto de que as forças de Dado estavam “envolvidas na emboscada”.
O incidente não afetou o relacionamento de Dado com as Forças Especiais dos EUA, que o consideravam valioso de mais para servir “terroristas”. Agora patrulhavam juntos e, logo após o ataque, a operação conjunta vasculhou a aldeia de Shakira em busca de suspeitos terroristas. Os soldados não ficaram muito tempo em sua casa, mas ela não conseguia tirar da cabeça a visão dos canos das espingardas. Na manhã seguinte, removeu e esfregou os tapetes e limpou as marcas das botas.
Os amigos e vizinhos de Shakira estavam apavorados de mais para falar, mas as Nações Unidas começaram a pressionar para a remoção de Dado. Os EUA bloquearam repetidamente o esforço e um guia do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA argumentou que, embora Dado estivesse “longe de ser um democrata jeffersoniano”, a sua forma de justiça rude era “a solução testada pelo tempo para controlar os pashtuns rebeldes”.
O marido de Shakira deixou de sair de casa, enquanto os helmandeses continuavam a ser levados sob pretextos fúteis. Um agricultor de uma aldeia próxima, Mohammed Nasim, foi preso pelas forças dos EUA e enviado para Guantánamo porque, de acordo com uma avaliação confidencial, o seu nome era semelhante ao de um comandante dos talibãs. Um oficial do governo de Karzai, chamado Ehsanullah, visitou uma base americana para informar sobre dois membros dos talibãs; nenhum tradutor estava presente e, na confusão, ele próprio foi preso e enviado para Guantánamo. Nasrullah, um coletor de impostos do governo, foi enviado para Guantánamo depois de ser retirado aleatoriamente de um autocarro, após uma escaramuça entre as Forças Especiais dos EUA e membros de tribos locais. “Estamos muito felizes com os americanos”, disse ele mais tarde, num tribunal militar. “Não sabia que acabaria por vir para Cuba.”
Por fim, Nasrullah voltou para casa, mas alguns detidos nunca conseguiram voltar. Abdul Wahid, de Gereshk, foi preso pela 93.ª Divisão e espancado severamente; ele foi entregue à custódia dos Estados Unidos e deixado numa gaiola, onde morreu. Os militares americanos notaram queimaduras no peito e no estômago, e hematomas nos quadris e virilha. De acordo com uma investigação desclassificada, os soldados das Forças Especiais relataram que os ferimentos de Wahid eram consistentes com “um método normal de entrevista / interrogatório” usado pela 93.ª Divisão. Um sargento afirmou que “poderia fornecer fotos de detidos anteriores com ferimentos semelhantes”. No entanto, os EUA continuaram a apoiar a 93.ª Divisão – uma violação da Lei Leahy, que proíbe o pessoal americano de apoiar conscientemente unidades que cometem abusos flagrantes dos direitos humanos.
Em 2004, a ONU lançou um programa para desarmar milícias pró-governo. Um comandante da 93.ª soube do plano e rebatizou um segmento da milícia como uma “empresa de segurança privada” sob contrato com os americanos, permitindo que cerca de um terço dos combatentes da Divisão permanecessem armados. Outro terço manteve as suas armas assinando um contrato com uma empresa sediada no Texas para proteger as equipas de pavimentação de estradas. (Quando o governo Karzai substituiu esses guardas particulares por polícias, o líder da 93.ª engendrou um assalto que matou quinze polícias e, em seguida, recuperou o contrato.) O terço restante da Divisão, encontrando-se sujeito a ameaças de extorsão pelos seus ex-colegas, fugiu com suas armas e juntou-se aos talibãs.
As mensagens da coligação liderada pelos Estados Unidos tendiam a retratar a crescente rebelião como uma questão de extremistas a lutar pela liberdade, mas os documentos da NATO que obtive admitiam que os Ishaqzais não tinham “nenhuma boa razão” para confiar nas forças da coligação, tendo sofrido “opressão às mãos de Dad Mohammad Khan”, ou Amir Dado. Em Pan Killay, os anciãos incentivaram os seus filhos a pegar em armas para proteger a aldeia e alguns estenderam a mão a ex-membros dos talibãs. Shakira gostaria que o seu marido fizesse alguma coisa – ajudar a proteger a aldeia ou mudá-los para o Paquistão – mas ele hesitou. Numa aldeia próxima, quando as forças dos EUA invadiram a casa de um respeitado ancião tribal, matando-o e deixando o seu filho paraplégico, as mulheres gritaram aos seus homens: “Vocês têm turbantes enormes na cabeça, mas fazem o quê? Nem conseguem proteger-nos. Vocês intitulam-se homens?”
Era agora 2005, quatro anos após a invasão americana, e Shakira tinha um terceiro filho a caminho. Os seus deveres domésticos consumiam-na – “de manhã à noite, eu trabalhava e suava” – mas quando parava de alimentar o forno tandur ou de podar os pessegueiros, percebia que tinha perdido o senso de promessa que havia sentido antes. Quase todas as semanas, ouvia falar de outro jovem que fora levado embora pelos americanos ou pelas milícias. O seu marido estava desempregado e, recentemente, começara a fumar ópio. O seu casamento azedara. Um ar de desconfiança instalou-se na casa, combinando com o humor sombrio da vila.
Então, quando uma coluna dos talibãs chegou a Pan Killay, com homens de turbante preto hasteando bandeiras brancas, ela considerou os visitantes com interesse, até mesmo com perdão. Desta vez, pensou ela, as coisas podem ser diferentes.
Em 2006, o Reino Unido juntou-se a um contingente crescente de Forças de Operações Especiais dos EUA que trabalhava para conter a rebelião em Sangin. Logo, lembrou Shakira, “começou o inferno”. Os talibãs atacaram patrulhas, lançaram ataques a postos avançados de combate e montaram bloqueios de estradas. No topo de uma colina em Pan Killay, os americanos confiscaram a casa de um traficante, transformando-a num forte de sacos de areia, torres de vigia e arame farpado. Antes da maioria das batalhas, os jovens talibãs visitavam as casas, alertando os residentes para saírem imediatamente. Então os talibãs lançavam o seu ataque, a coligação responderia e a terra estremeceria.
Às vezes, mesmo fugir não garantia segurança. Durante uma batalha, Abdul Salam, um tio do marido de Shakira, refugiou-se na casa de um amigo. Após o fim da luta, visitou uma mesquita rezar. Alguns talibãs também estavam lá. Um ataque aéreo da coligação matou quase todos lá dentro. No dia seguinte, os enlutados reuniram-se para os funerais; um segundo ataque matou mais uma dúzia de pessoas. Entre os corpos devolvidos a Pan Killay estavam os de Abdul Salam, do seu primo, e dos seus três sobrinhos, com idades entre seis e quinze anos.
Mulheres afegãs na sala de espera de uma clínica governamental de obstetrícia e ginecologia, na província de Kandahar, outubro de 2020 — Imagem AFP
Desde a infância que Shakira não conhecia ninguém que tivesse morrido de ataque aéreo. Ela estava agora com vinte e sete anos e dormia agitada, como se a qualquer momento precisasse de correr para se proteger. Uma noite, acordou com um barulho estridente tão alto que se perguntou se a casa estava a ser destruída. O seu marido ainda roncava e ela amaldiçoou-o em voz baixa. Foi em bicos dos pés até ao jardim da frente. Veículos militares da coligação estavam a passar, rodando sobre sucata metálica espalhada na frente. Despertou a família. Era tarde de mais para evacuar e Shakira rezou para que os talibãs não atacassem. Empurrou as crianças para vãos de janela recuados – uma tentativa desesperada de protegê-las caso um ataque fizesse o telhado desabar – e cobriu-as com cobertores pesados.
Voltando ao jardim da frente, Shakira avistou um dos veículos dos estrangeiros parado, imóvel. Um par de antenas projetavam-se para o céu. Eles vão matar-nos, pensou. Subiu ao telhado e viu que o veículo estava vazio: os soldados tinham estacionado e saído a pé. Viu-os a marchar sobre o passadiço e desaparecer entre os juncos.
Alguns campos adiante, os talibãs e os estrangeiros começaram a disparar. Por horas, a família amontoou-se dentro de casa. As paredes tremeram e as crianças choraram. Shakira trouxe as suas bonecas de pano, amparou Ahmed contra o peito e sussurrou histórias. Quando as armas silenciaram, por volta do amanhecer, Shakira saiu para dar uma olhadela. O veículo permanecia lá, sem vigilância. Ela tremia de raiva. Durante todo o ano, aproximadamente uma vez por mês, era submetida a este terror. Os talibãs tinham lançado o ataque, mas a maior parte da sua raiva era dirigida aos intrusos. Porque tinham que sofrer ela e os filhos?
Um pensamento selvagem passou pela sua cabeça. Correu para dentro de casa e falou com a sogra. Os soldados ainda estavam do outro lado do canal. Shakira encontrou alguns fósforos e a sua sogra pegou num jerrycan de gasóleo. Na rua, um vizinho olhou para o jerrycan e entendeu, voltando a correr com um segundo jerrycan. A sogra de Shakira molhou um pneu, depois abriu o capot e encharcou o motor. Shakira riscou um fósforo e atirou-o ao pneu.
Da casa, viram o céu ficar pálido com as chamas. Em breve, ouviram o zumbido de um helicóptero a aproximar-se, vindo do sul. “Ele vem à nossa procura!”, gritou a sua sogra. O cunhado de Shakira, que estava com eles, reuniu as crianças freneticamente, mas Shakira sabia que era tarde de mais. Se vamos morrer, vamos morrer em casa, pensou.
Atiraram-se para uma uma trincheira rasa no quintal, os adultos em cima das crianças. A terra tremeu violentamente, então o helicóptero afastou-se. Quando saíram à rua, Shakira viu que os estrangeiros tinham tido como alvo o veículo em chamas, para que nenhuma da suas peças caísse nas mãos do inimigo.
As mulheres de Pan Killay vieram congratular Shakira; ela era, como disse uma mulher, “uma heroína”. Mas teve dificuldade em arranjar qualquer orgulho, apenas alívio. “Eu estava a pensar que eles não voltariam aqui”, disse ela. “E teríamos paz.”
Em 2008, os fuzileiros navais dos EUA foram implantados em Sangin, reforçando as Forças Especiais Americanas e os soldados do Reino Unido. As forças da Grã-Bretanha foram acossadas – um terço das suas baixas no Afeganistão ocorreria em Sangin, levando alguns soldados a apelidar a missão de “Sangingrado”. Nilofar, agora com oito anos, podia intuir os ritmos do tempo de guerra. Ela perguntava a Shakira: “Quando vamos para a casa da tia Farzana?” Farzana vivia no deserto.
Mas o caos nem sempre era previsível: uma tarde, os estrangeiros novamente apareceram antes que alguém pudesse fugir, e a família correu para a trincheira do quintal. Algumas portas adiante, a esposa e os filhos do falecido Abdul Salam fizeram o mesmo, mas um morteiro matou a sua filha de quinze anos, Bor Jana.
Ambos os lados da guerra fizeram esforços para evitar a morte de civis. Além de emitir avisos para evacuar, os talibãs mantinham os moradores informados sobre que áreas tinham sido semeadas com artefactos explosivos improvisados (IED) e fechavam estradas ao tráfego de civis ao atacar colunas militares. A coligação usou bombas guiadas a laser, usou alto-falantes para alertar os aldeões sobre combates e despachava helicópteros antes da batalha. “Eles lançavam folhetos a dizer: ‘Fiquem em vossas casas! Salvem-se!’”, Lembrou Shakira. Numa guerra travada em casas de paredes de barro cheias de vida, no entanto, nenhum lugar era realmente seguro e um número extraordinário de civis morreu. Às vezes, essas vítimas geravam condenação generalizada, como quando um foguete da NATO atingiu uma multidão de aldeões em Sangin em 2010, matando cinquenta e dois. Mas a grande maioria dos incidentes envolvia uma ou duas mortes – vidas anónimas que nunca foram relatadas, nunca registadas por organizações oficiais e, portanto, nunca contadas como parte do número de vítimas civis da guerra.
Dessa forma, as tragédias de Shakira aumentaram. Havia Muhammad, um primo de quinze anos: foi morto por um buzzbuzzak, um drone, enquanto guiava a sua motocicleta pela aldeia com um amigo. “Aquele som estava em toda parte”, lembra Shakira. “Quando o ouvíamos, as crianças começavam a chorar e eu não conseguia consolá-las.”
Muhammad Wali, um primo adulto: Os aldeões foram instruídos pelas forças da coligação a ficarem dentro de casa por três dias enquanto conduziam uma operação, mas depois do segundo dia a água potável tinha-se esgotado e Wali foi forçado a aventurar-se a sair. Foi alvejado.
Khan Muhammad, um primo de sete anos: A sua família estava a fugir de um combate de carro quando, por engano, se aproximou de uma posição da coligação; o carro foi metralhado, matando-o.
Bor Agha, um primo de 12 anos: Estava a dar um passeio à tarde, quando foi morto por fogo de uma base da Polícia Nacional Afegã. Na manhã seguinte, o seu pai visitou a base, em estado de choque e em busca de respostas, e foi informado que o menino havia sido avisado antes para não se aproximar da instalação. “O comandante deu a ordem para alvejá-lo”, relembrou seu pai.
Amanullah, um primo de dezasseis anos: Estava a trabalhar na terra quando foi alvo de um atirador do Exército Afegão. Ninguém deu uma explicação, e a família estava com demasiado medo de se aproximar da base do Exército e perguntar.
Ahmed, um primo adulto: Depois de um longo dia no campo, estava a voltar para casa, carregando um grelhador, quando foi atingido pelas forças da coligação. A família acredita que os estrangeiros confundiram o grelhador com um IED
Niamatullah, irmão de Ahmed: Estava a colher ópio quando um tiroteio rebentou nas proximidades; ao tentar fugir, foi abatido por um buzzbuzzak.
Gul Ahmed, um tio do marido de Shakira: Queria começar o dia cedo, por isso pediu aos seus filhos que levassem o seu café da manhã ao campo. Quando chegaram, encontraram o seu corpo. Testemunhas disseram que ele encontrara uma patrulha da coligação. Os soldados “deixaram-no para ali, como um animal”, disse Shakira.
Ramos inteiros da árvore genealógica de Shakira, desde os tios que costumavam contar histórias aos primos que brincavam com ela nas cavernas, desapareceram. Ao todo, perdeu dezasseis membros da família. Perguntei-me se seria o mesmo para outras famílias em Pan Killay. Fiz uma amostra de uma dúzia de famílias ao acaso na aldeia e fiz pesquisas semelhantes noutras aldeias, para garantir que Pan Killay não fosse um caso isolado. Para cada família, documentei os nomes dos mortos, cruzando os casos com certidões de óbito e depoimentos de testemunhas oculares. Em média, descobri, cada família perdeu de dez a doze civis no que os habitantes locais chamam Guerra Americana.
Essa escala de sofrimento era desconhecida numa metrópole movimentada como Cabul, onde os cidadãos gozavam de relativa segurança. Mas em enclaves rurais como Sangin, os incessantes assassinatos de civis levaram muitos afegãos a aproximar-se dos talibãs. Em 2010, muitas famílias nas aldeias Ishaqzai tinham filhos nos talibãs, a maioria dos quais aderiu simplesmente para se proteger ou se vingar; o movimento estava mais completamente integrado na vida de Sangin do que nos anos noventa. Agora, quando Shakira e os seus amigos discutiam os talibãs, estavam a falar dos seus próprios amigos, vizinhos e entes queridos.
Alguns oficiais britânicos no terreno ficaram preocupados com o facto dos EUA estarem a matar muitos civis e, sem sucesso, pressionaram para que as Forças Especiais Americanas fossem removidas da área. Em vez disso, tropas de todo o mundo invadiram Helmand, incluindo australianos, canadianos e dinamarqueses. Mas os aldeões não sabiam a diferença – para eles, os ocupantes eram simplesmente “americanos”. Pazaro, a mulher de uma aldeia próxima, relembrou: “Havia dois tipos de pessoas – um com rostos negros e outro com rostos cor de rosa. Quando os vemos, ficamos apavorados.” A coligação retratou os residentes locais como sedentos de se libertarem dos talibãs, mas um relatório classificado da espionagem de 2011 descreveu as perceções da comunidade sobre as forças da coligação como “desfavoráveis”, com os moradores a alertar que, se a coligação “não deixasse a área, os cidadãos locais seriam forçado a evacuar.”
Em resposta, a coligação mudou para a estratégia de corações e mentes de contra-insurreição. Mas os esforços dos estrangeiros para se integrarem na população podem ser cruéis: muitas vezes ocuparam casas, expondo ainda mais os aldeões ao fogo cruzado. “Eles vinham à força, sem obter a nossa permissão”, disse-me Pashtana, uma mulher de outra aldeia Sangin. “Às vezes eles arrombavam a nossa casa, partiam todas as janelas e ficavam a noite toda. Tínhamos que fugir, para o caso de os talibãs dispararem contra eles.” Marzia, uma mulher de Pan Killay, relembrou: “Os talibãs disparavam alguns tiros, mas os americanos respondiam com morteiros”. Um morteiro atingiu a casa da sua sogra. Ela sobreviveu, disse Marzia, mas desde então “perdeu o controlo de si mesma” – sempre “a gritar com coisas que não podemos ver, com fantasmas”.
Com o fracasso da abordagem de corações e mentes, alguns funcionários da NATO tentaram persuadir os comandantes dos talibãs a mudar de lado. Em 2010, um grupo de comandantes dos talibãs de Sangin, em contacto com os britânicos, prometeu trocar de lado em troca de assistência às comunidades locais. Mas, quando os líderes dos talibãs se reuniram para estabecer o seu lado do acordo, as Forças de Operações Especiais dos EUA – agindo de forma independente – bombardearam a reunião, matando a principal figura dos talibãs por trás da abertura de paz.
Os fuzileiros navais finalmente deixaram Sangin em 2014; o Exército Afegão manteve a sua posição por três anos, até que os talibãs puseram a maior parte do vale sob seu controlo. Os EUA transportaram de avião as tropas do Exército afegão e arrasaram muitos complexos do governo – deixando, como uma declaração da NATO descreveu com aprovação, apenas “entulho e lixo”. O mercado de Sangin foi destruído dessa forma. Quando Shakira viu as lojas em ruínas pela primeira vez, disse ao marido: “Eles não deixaram nada para nós”.
Ainda assim, um sentimento de otimismo tomou conta de Pan Killay. O marido de Shakira matou uma ovelha para comemorar o fim da guerra, e a família discutiu a remodelação do jardim. A sua sogra falou dos dias anteriores aos russos e americanos, quando famílias faziam piqueniques ao longo do canal, os homens se espreguiçavam à sombra dos pessegueiros e as mulheres dormitavam nos telhados sob as estrelas.
Mas em 2019, enquanto os EUA mantinham conversações com líderes dos talibãs em Doha, Qatar, o governo afegão e as forças americanas avançaram em conjunto sobre Sangin pela última vez. Naquele janeiro, lançaram talvez o ataque mais devastador que o vale testemunhou em toda a guerra. Shakira e outros moradores fugiram para o deserto, mas nem todos conseguiram escapar. Ahmed Noor Mohammad, dono de uma loja de telefones, decidiu esperar para evacuar, porque os seus filhos gémeos estavam doentes. A sua família foi para a cama ao som de artilharia distante. Naquela noite, uma bomba americana atingiu o quarto onde os gémeos dormiam, matando-os. Uma segunda bomba atingiu uma sala adjacente, matando o pai de Mohammad e muitos outros, oito deles crianças.
No dia seguinte, no funeral, outro ataque aéreo matou seis pessoas em luto. Numa aldeia próxima, um helicóptero matou três crianças. No dia seguinte, mais quatro crianças foram mortas a tiro. Noutra parte de Sangin, um ataque aéreo atingiu uma escola islâmica, matando uma criança. Uma semana depois, doze convidados de um casamento foram mortos num ataque aéreo.
Após o bombardeamento, o irmão de Mohammad viajou para Kandahar para relatar os massacres às Nações Unidas e ao governo afegão. Quando não viu possibilidade de justiça, juntou-se aos talibãs.
Com a força de um abastecimento aparentemente infinito de recrutas, os talibãs não tiveram dificuldades em sobreviver à coligação. Mas, embora a insurgência, finalmente, tenha trazido paz ao interior do Afeganistão, é uma paz de desolação: muitas aldeias estão em ruínas. A reconstrução será um desafio, mas uma dificuldade maior será exorcizar as memórias das últimas duas décadas. “A minha filha acorda a gritar que os americanos estão a chegar”, disse Pazaro. “Temos que ir falando baixinho com ela e dizer-lhe: ‘Não, não, eles não vão voltar.’”
Os talibãs chamam ao seu domínio Emirado Islâmico do Afeganistão e afirmam que, assim que os estrangeiros se forem embora, presidirão a uma era de estabilidade tranquila. Enquanto o governo afegão se desmoronava neste verão, viajei pela província de Helmand – a capital de facto do emirado – para ver como seria um Afeganistão pós-americano.
Parti de Lashkar Gah, que permanecia sob controlo do governo. Nos arredores, erguia-se um prédio atarracado de cimento com uma bandeira do governo afegão – além deste posto de controlo, a autoridade de Cabul desaparecia. Uma pick-up estava parada nas proximidades; empilhados no leito de carga estavam meia dúzia de membros dos sangorian, uma temida milícia paga pela agência de inteligência afegã, que era apoiada pela CIA. Dois dos guerrilheiros pareciam não ter mais de doze anos.
Família em fuga aos combates, perto de Lashkar Gah, Helmand, 14 de outubro de 2020 — Imagem AFP
Eu estava com dois moradores num Corolla em mau estado e passámos pelo posto de controlo sem problema. Logo, estávamos num horizonte de terra escaldante sem árvores, praticamente sem nenhuma estrada por baixo de nós. Passámos por postos avançados abandonados do Exército e da Polícia afegãos, construídos pelos americanos e britânicos. Além deles, assomava uma série de fortificações circulares de lama, com um atirador solitário dos talibãs deitado de bruços. Bandeiras brancas tremulavam atrás dele, anunciando a porta de entrada para o Emirado Islâmico.
A diferença mais marcante entre o país dos talibãs e o mundo que deixávamos para trás era a escassez de homens armados. No Afeganistão, acostumei-me a polícias de calças largas, milicianos em balaclavas, agentes de espionagem inspecionando carros. No entanto, raramente cruzávamos um posto de controlo dos talibãs e, quando o fazíamos, os combatentes examinavam o carro despreocupadamente. “Toda a gente tem medo dos talibãs”, disse o meu motorista, a rir. “Os postos de controlo estão nos nossos corações.”
Se as pessoas temiam os seus novos governantes, também confraternizavam com eles. Aqui e ali, grupos de aldeões sentavam-se sob alpendres à beira da estrada, tomando chá com os talibãs. O país abria-se enquanto seguíamos aos solavancos por uma estrada de terra na zona rural de Sangin. No canal, os meninos faziam corridas de natação; os aldeões e os talibãs mergulhavam os pés na água turquesa. Passámos por terras agrícolas verdes e copas de árvores de fruto. Grupos de mulheres caminhavam ao longo de uma rua de mercado e duas meninas saltitavam com vestidos amarrotados.
Aproximámo-nos de Gereshk, então sob a autoridade do governo. Como a cidade era o posto de portagem mais lucrativo da região, dizia-se que quem a possuía controlava toda a Helmand. Os talibãs tinham lançado um ataque e os estrondos da artilharia ressoaram pela planície. Um fluxo de famílias, os seus burros a laborar sob o peso de fardos gigantes, estavam a escapar do que eles chamavam ataques aéreos. Na beira da estrada, uma mulher com uma burca azul-clara estava com um carrinho de mão; dentro estava um corpo embrulhado. Alguns talibãs reuniram-se no topo de uma colina, colocando um camarada caído numa cova.
Conheci Wakil, um comandante dos talibãs, de óculos. Como muitos lutadores que encontrei, ele veio de uma linha de fazendeiros, estudou alguns anos no seminário e perdeu dezenas de parentes para Amir Dado, a 93ª Divisão e os americanos. Discutiu as calamidades que afetaram a sua família sem rancor, como se a Guerra Americana fosse a ordem natural das coisas. Com trinta anos, alcançara o seu posto depois de um irmão mais velho, comandante dos talibãs, ter morrido em combate. Quase nunca havia saído de Helmand, e o seu rosto iluminou-se de espanto com a ideia de capturar Gereshk, uma cidade a poucos quilómetros de distância de onde morava, mas que não podia visitar há vinte anos. “Esquece a tua escrita”, riu-se enquanto eu rabiscava notas. “Vem ver-me tomar a cidade!” Atento a um helicóptero que deslizava no horizonte, recusei. Ele saiu a correr. Uma hora depois, uma imagem apareceu no meu telefone, de Wakil a arrancar um poster de uma figura do governo ligada à 93.ª Divisão. Gereshk havia caído.
Na casa do governador de distrito talibã, um grupo de talibãs comia quiabo e naan, oferecidos pela aldeia. Perguntei-lhes sobre os seus planos para quando a guerra acabasse. A maioria disse que voltaria a trabalhar na agricultura ou iria procurar a educação religiosa. Eu tinha voado do Iraque para o Afeganistão, um facto que impressionou Hamid, um jovem comandante. Disse que sonhava em ver as ruínas de Babilónia e perguntou: "Você acha que, quando isso acabar, eles vão dar-me um visto?"
Ficou claro que os talibãs estão divididos sobre o que acontecerá a seguir. Durante a minha visita, dezenas de membros de diferentes partes do Afeganistão ofereceram visões surpreendentemente contrastantes para seu emirado. Talibs de mentalidade política que viveram no exterior e mantêm casas em Doha ou no Paquistão disseram-me – talvez de forma calculista – que tinham uma visão mais cosmopolita do que antes. Um estudioso que passou grande parte das últimas duas décadas viajando entre Helmand e o Paquistão, disse: “Houve muitos erros que cometemos nos anos noventa. Naquela época, não sabíamos sobre direitos humanos, educação, política – apenas tomámos tudo através do poder. Mas agora entendemos.” No cenário otimista do estudioso, os talibãs dividirão ministérios com ex-inimigos, as meninas frequentarão a escola e as mulheres trabalharão “ombro a ombro” com os homens.
No entanto, em Helmand era difícil encontrar esse tipo de talib. Mais típico foi Hamdullah, um comandante de rosto estreito que perdeu uma dúzia de membros da família na Guerra Americana e media a sua vida por casamentos, funerais e batalhas. Ele disse que a sua comunidade havia sofrido demasiado para dividir o poder e que o turbilhão dos vinte anos anteriores oferecia apenas uma solução: o status quo ante. Disse-me, com orgulho, que planeava juntar-se à marcha dos talibãs para Cabul, uma cidade que nunca tinha visto. Ele calculava que chegaria lá em meados de agosto.
Na questão mais sensível da vida na aldeia – os direitos das mulheres – homens como ele não se moveram. Em muitas partes da zona rural de Helmand, as mulheres são proibidas de visitar o mercado. Quando uma mulher de Sangin recentemente comprou biscoitos para seus filhos no bazar, os talibãs bateram-lhe, no marido e no lojista. Membros dos talibãs disseram-me que planeavam permitir que as meninas frequentassem madrassas, mas só até à puberdade. Como antes, as mulheres seriam proibidas de trabalhar, excepto como parteiras. Pazaro disse, pesarosa: “Eles não mudaram em nada”.
Viajando por Helmand, dificilmente pude ver quaisquer sinais dos talibãs como um estado. Ao contrário de outros movimentos rebeldes, os talibãs praticamente não proporcionaram nenhuma reconstrução, nenhum serviço social além dos seus severos tribunais. Não admitem oposição: em Pan Killay, os talibãs executaram um aldeão chamado Shaista Gul depois de saberem que ele ofereceu pão a membros do Exército Afegão. No entanto, muitos helmandeses pareciam preferir o governo dos talibãs – incluindo as mulheres que entrevistei. Era como se o movimento tivesse vencido apenas à revelia, pelos fracassos abjetos dos seus oponentes. Para os habitantes locais, a vida sob as forças da coligação e seus aliados afegãos era puro perigo; até mesmo beber chá num campo ao sol ou guiar para o casamento da irmã era uma aposta potencialmente mortal. O que os talibãs ofereceram para além dos seus rivais foi uma simples alternativa: obedeçam-nos e não iremos matar-vos.
Esse cálculo sombrio pairava sobre todas as conversas que tive com os aldeões. No vilarejo de Yakh Chal, deparei com as ruínas de um posto avançado do Exército Afegão que havia sido tomado recentemente pelo Talibã. Tudo o que restou foram montes de sucata, fios, placas de aquecimento, cascalho. Na manhã seguinte, os aldeões desceram ao posto avançado, em busca de algo para vender. Abdul Rahman, um agricultor, estava a revolver o lixo com o seu filho quando um helicanhão do Exército Afegão apareceu no horizonte. Estava a voar tão baixo, lembrou ele, que “até mesmo as Kalashnikovs podiam disparar contra ele”. Mas não havia talibãs por perto, apenas civis. O helicanhão disparou e os aldeões começaram a cair para a direita e para a esquerda. Em seguida, deu um a volta e continuou a atacar. “Havia muitos corpos no chão, a sangrar e a gemer”, disse outra testemunha. “Muitas crianças pequenas.” De acordo com os moradores, pelo menos cinquenta civis foram mortos.
Mais tarde, falei ao telefone com um piloto de helicóptero do Exército Afegão que acabara de substituir aquele que atacou o posto avançado. Ele disse-me: “Eu perguntei à tripulação porque fizeram isso, e eles disseram, ‘Nós sabíamos que eles eram civis, mas Camp Bastion’” – uma antiga base britânica que havia sido entregue aos afegãos – “‘deu ordens para matá-los a todos’” Enquanto conversávamos, helicópteros do Exército Afegão disparavam contra o mercado central cheio em Gereshk, matando muitos civis. Um funcionário de uma organização internacional com sede em Helmand disse: “Quando as forças do governo perdem uma área, vingam-se nos civis”. O piloto do helicóptero reconheceu isso, acrescentando: “Estamos a fazer isso isto por ordem de Sami Sadat”.
Sami Sadat
O general Sami Sadat chefiou um dos sete corpos do exército afegão. Ao contrário da geração de homens fortes de Amir Dado, que eram provincianos e analfabetos, Sadat obteve o diploma de mestre em gestão estratégica e liderança numa escola no Reino Unido e estudou na Academia Militar da NATO, em Munique. Ocupou o seu cargo militar ao mesmo tempo que era o CEO da Blue Sea Logistics, uma empresa sediada em Cabul que fornecia às forças anti-Talibã de tudo, desde peças de helicópteros a veículos tácticos blindados. Durante a minha visita a Helmand, helicópteros Blackhawk sob o seu comando cometiam massacres quase diariamente: doze afegãos foram mortos enquanto catavam sucata numa antiga base fora de Sangin; quarenta foram mortos num incidente quase idêntico no Camp Walid, abandonado pelo Exército; vinte pessoas, a maioria mulheres e crianças, foram mortas por ataques aéreos no bazar de Gereshk; soldados afegãos que eram mantidos prisioneiros pelos talibãs numa central elétrica foram alvejados e mortos pelos seus próprios camaradas num ataque aéreo. (Sadat recusou repetidos pedidos de comentário.)
Um dia antes do massacre no posto avançado de Yakh Chal, a CNN transmitiu uma entrevista com o general Sadat. “Helmand é lindo – se for pacífico, o turismo pode vir”, disse ele. Os seus soldados estavam com o moral elevado, explicou, e estavam confiantes em derrotar os talibãs. A locutora parecia aliviada. “Você parece muito otimista”, disse ela. “É reconfortante ouvir isso.”
Mostrei a entrevista a Mohammed Wali, um vendedor de carrinhos de mão numa vila perto de Lashkar Gah. Poucos dias depois do massacre de Yakh Chal, as milícias do governo nessa área renderam-se aos talibãs. Os Blackhawks do general Sadat começaram a atacar casas, aparentemente ao acaso. Dispararam contra a casa de Wali, e a sua filha, atingida na cabeça por estilhaços, morreu. O seu irmão correu para o pátio, mostrando o corpo inerte da garota aos helicópteros, gritando: “Somos civis!” Os helicópteros mataram-no, e também o filho de Wali. A sua esposa perdeu a perna e outra filha está em coma. Enquanto Wali assistia ao clipe da CNN, soluçou. “Porque é que eles estão a fazer isto?”, perguntou. “Estão a troçar de nós?”
No decorrer de algumas horas em 2006, os talibãs mataram trinta e dois amigos e parentes de Amir Dado, incluindo o seu filho. Três anos depois, mataram o próprio senhor da guerra – que nessa época tinha ingressado no parlamento – numa explosão na estrada. Quem orquestrou o assassinato veio de Pan Killay. De um ponto de vista, o ataque é a marca de uma insurgência fundamentalista a lutar contra um governo reconhecido internacionalmente; de outro, uma campanha de vingança de aldeões empobrecidos contra o seu ex-algoz; ou uma salva numa longa guerra tribal; ou um ataque de um cartel de drogas contra uma empresa rival. Todas essas leituras são provavelmente verdadeiras, simultaneamente. O que é claro é que os EUA não tentaram resolver essas divisões e construir instituições inclusivas e duráveis; em vez disso, intervieram numa guerra civil, apoiando um lado contra o outro. Como resultado, como os soviéticos, os americanos efetivamente criaram dois Afeganistãos: um atolado num conflito sem fim, o outro próspero e esperançoso.
É o esperançoso Afeganistão que está agora sob ameaça, depois dos combatentes dos talibãs terem marchado sobre Cabul em meados de agosto – exatamente como Hamdullah previu. Milhares de afegãos passaram as últimas semanas a tentar desesperadamente chegar ao aeroporto de Cabul, sentindo que a frenética evacuação dos americanos pode ser a sua última chance de uma vida melhor. “Mano, tens que me ajudar”, implorou ao telefone o piloto de helicóptero com quem falei antes. Nesse momento, ele estava a lutar contra multidões para ver o portão do aeroporto; quando as rodas do último avião norte-americano deixaram a pista, ficou para trás. O seu chefe, Sami Sadat, teria escapado para o Reino Unido.
Até recentemente, a Cabul de onde Sadat fugiu parecia muitas vezes um país diferente, até mesmo um século diferente, de Sangin. A capital tinha-se tornado uma cidade de luzes nas encostas, salões de casamento cintilantes e outdoors de néon, cheia de mulheres: mães passeavam pelos mercados, meninas saíam da escola aos pares, polícias patrulhavam de hijab, funcionárias de escritório carregavam bolsas de designers. Os ganhos que essas mulheres experimentaram durante a guerra americana – e agora perderam – são impressionantes e difíceis de entender, quando considerados contra as austeras aldeãs de Helmand: o parlamento afegão tinha uma proporção de mulheres semelhante à do Congresso dos Estados Unidos e cerca de um quarto dos estudantes universitários eram mulheres. Milhares de mulheres em Cabul estão compreensivelmente apavoradas com o facto dos talibãs não terem evoluído. No final de agosto, falei por telefone com uma dermatologista que estava abrigada em sua casa. Ela estudou em vários países e dirige uma grande clínica que emprega uma dúzia de mulheres. “Eu trabalhei muito para chegar aqui”, disse-me. “Estudei muito, fiz o meu próprio negócio, criei a minha própria clínica. Este era o sonho da minha vida.” Não saía de casa há duas semanas.
A tomada dos talibãs restaurou a ordem no campo conservador enquanto mergulhava as ruas relativamente liberais de Cabul no medo e na desesperança. Essa reversão de destinos traz à luz a premissa tácita das últimas duas décadas: se as tropas dos EUA continuassem a lutar contra os talibãs no campo, a vida nas cidades poderia florescer. Este pode ter sido um projeto sustentável – os talibãs não foram capazes de capturar cidades em face do poder aéreo dos EUA. Mas foi justo? Os direitos de uma comunidade podem depender, para sempre, da privação de direitos de outra? Em Sangin, sempre que levantava a questão do género, as mulheres da aldeia reagiam com escárnio. “Eles estão a dar direitos às mulheres em Cabul e estão a matar mulheres aqui”, disse Pazaro. "Isso é justiça?" Marzia, de Pan Killay, disse-me: "Isso não é ‘direitos das mulheres’ quando nos estão a matar, a matar os nossos irmãos, a matar os os nossos pais.” Khalida, de uma aldeia próxima, disse: “Os americanos não nos trouxeram nenhum direito. Eles simplesmente vieram, lutaram, mataram e partiram.”
As mulheres em Helmand discordam entre si sobre quais os direitos que deveriam ter. Algumas anseiam por que as regras da velha aldeia se desmoronem – desejam visitar o mercado ou fazer um piquenique à beira do canal sem sofrer insinuações ou coisa pior. Outras agarram-se a interpretações mais tradicionais. “Mulheres e homens não são iguais”, disse Shakira. “Cada um é feito por Deus, e cada um tem seu próprio papel, suas próprias forças que o outro não tem.” Mais de uma vez, enquanto seu marido estava num estado de estupor do ópio, ela fantasiou em deixá-lo. No entanto, Nilofar está a amadurecer, e um divórcio pode envergonhar a família, prejudicando as suas perspetivas. Através de amigos, Shakira ouve histórias de cidades dissolutas cheias de casamentos desfeitos e prostituição. “Muita liberdade é perigosa, porque as pessoas não conhecem os limites”, disse ela.
Todas as mulheres que conheci em Sangin, porém, pareciam concordar que os seus direitos, sejam eles quais forem, não podem fluir do cano de uma arma – e que as próprias comunidades afegãs devem melhorar as condições das mulheres. Algumas aldeãs acreditam que possuem um poderoso recurso cultural para travar essa luta: o próprio Islão. “Os talibãs estão a dizer que as mulheres não podem sair, mas na verdade não existe nenhuma regra islâmica assim”, disse Pazaro. “Enquanto estivermos cobertas, devemos ter permissão.” Perguntei a um importante estudioso talibã de Helmand onde é que no Islão estava estipulado que as mulheres não podem ir ao mercado ou à escola. Ele admitiu, um pouco consternado, que não se tratava de uma injunção islâmica real. “É a cultura da aldeia, não o Islão”, disse ele. “As pessoas de lá têm essas crenças sobre as mulheres e nós seguimo-las”. Assim como o Islão oferece modelos mais justos para casamento, divórcio e herança do que muitas normas tribais e aldeãs, essas mulheres esperam mobilizar a sua fé – a linguagem compartilhada nas muitas divisões do seu país – para conquistar maiores liberdades.
Embora Shakira dificilmente fale sobre isso, ela própria nutre esses sonhos. Ao longo das décadas de guerra, continuou a aprender a ler sozinha e agora está a trabalhar na tradução do Alcorão em pashto, uma sura de cada vez. “Isto dá-me um grande conforto”, disse ela. Está a ensinar o alfabeto à filha mais nova e tem uma ambição ousada: reunir as seus amigas e exigir que os homens construam uma escola para meninas.
Mesmo enquanto Shakira contempla fazer andar Pan Killay para frente, está determinada a lembrar-se do seu passado. A aldeia, disse-me, tem um cemitério que se espalha pelos topos de algumas colinas. Não há placas nem bandeiras, apenas pilhas de pedras que brilham em vermelho e rosa ao sol da tarde. Um par de lajes nuas projeta-se de cada túmulo, uma marcando a cabeça e a outra os pés.
A família de Shakira visita todas as semanas, e ela aponta para os montículos onde está o seu avô, onde seus primos estão, porque não quer que os seus filhos esqueçam. Amarram lenços aos galhos das árvores para atrair bênçãos e oram pelos que partiram. Passam horas no meio de uma geografia sagrada de pedras, arbustos e riachos, e Shakira sente-se renovada.
Pouco antes de os americanos partirem, dinamitaram a sua casa, aparentemente em resposta ao disparo de uma granada dos talibãs nas proximidades. Com duas salas ainda de pé, a casa está meio habitável, meio destruída, assim como o próprio Afeganistão. Disse-me que não se importa com a falta da cozinha ou com o buraco onde ficava a despensa. Em vez disso, opta por ver uma aldeia renascer. Shakira tem a certeza de que uma estrada recém-pavimentada logo passará pela casa, o macadame escaldante nos dias de verão. Os únicos pássaros no céu serão do tipo com penas. Nilofar vai-se casar e os seus filhos vão caminhar ao longo do canal para a escola. As meninas vão ter bonecas de plástico, com cabelos que podem escovar. Shakira terá uma máquina capaz de lavar roupa. O seu marido ficará limpo, reconhecerá as suas falhas, dirá à família que os ama mais do que tudo. Visitarão Cabul e vão pôr-se à sombra de gigantescos edifícios de vidro. “Eu tenho que acreditar”, disse ela. “Caso contrário, para que serviu tudo isto?”
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