Optimismo ou ruína

Conselhos de Jacques Ellul, Edward Snowden, Karl Popper e Noam Chomsky.

Tradução da publicação de Neil Godfrey Be Optimistic — Or Doomed, de 2021-10-05, no blogue Vridar.

Primeiro, mergulhe cada um no seu seu próprio mundo cibernético, onde o seu ambiente identifica os seus interesses e preconceitos.

Em segundo lugar, alimente-se cada pessoa com notícias e dados que reforcem os seus preconceitos. Massas e massas de dados que servem esse fim. Demasiados dados para poder analisar criticamente. Tantos dados que inundam cada pessoa com a confirmação dos seus sistemas de crenças sobre o mundo. Resultado? Muitas vezes, paralisia.

Ellul

Jacques Ellul, autor de “Propaganda, The Formation of Men’s Attitudes”

E muitas das informações disseminadas hoje em dia – resultados de pesquisas, factos, estatísticas, explicações, análises – eliminam o julgamento pessoal e a capacidade de formar a própria opinião de forma ainda mais segura do que a propaganda mais extravagante. Esta afirmação pode parecer chocante; mas é um facto que o excesso de dados não ilumina o leitor ou o ouvinte. Afoga-o. Não consegue lembrar-se de todos, ou coordená-los, ou entendê-los; se não quer arriscar perder a cabeça, simplesmente fará deles um quadro geral. E, quanto mais dados são fornecidos, mais simplista é a imagem. Se alguém receber um item de informação, vai retê-lo; se receber cem dados num campo, ou numa questão, terá apenas uma ideia geral dessa questão. Mas se receber cem itens de informação sobre todos os aspectos políticos e económicos de uma nação, chegará a um julgamento sumário – “Os russos são fantásticos!”, e assim por diante.

Um excesso de dados, longe de permitir que as pessoas façam julgamentos e formem opiniões, impede-as que o façam e, na verdade, paralisa-as.

(Ellul, “Propaganda”, 87)

Isto foi escrito em 1962!!! Quão assustadoramente mais verdadeiro deve ser hoje!

Como lutar num mundo tão distópico?

Se acreditamos que nos mantemos suficientemente bem informados para manter a cabeça fria, cuidado. Há aqui uma armadilha escondida.

Na medida em que a propaganda é baseada em notícias atuais, ela não pode permitir tempo para pensamento ou reflexão. Uma pessoa agarrada pelas notícias deve permanecer na superfície dos eventos que o conquistam ao longo da corrente...

Estamos mais sujeitos a cair na armadilha se pensarmos que podemos reconhecer ou, com pouco esforço, separar as mentiras da verdade. Essa confiança leva a duas atitudes:

A primeira é: “Claro que não seremos vítimas de propaganda porque somos capazes de distinguir a verdade da falsidade.” Quem tem essa convicção é extremamente suscetível à propaganda, porque quando a propaganda fala “verdade”, fica então convencido de que já não é propaganda e, além disso, a sua autoconfiança torna-o ainda mais vulnerável a ataques que desconhece.

A segunda atitude é: “Não acreditamos em nada do que o inimigo diz, porque tudo o que ele diz é necessariamente falso”. Mas se o inimigo puder demonstrar que disse a verdade, o resultado será uma mudança repentina a seu favor...

(Ellul, 46, 52)

Snowden

Edward Snowden

Lembremo-nos de Popper e do que ele tinha a dizer sobre a necessidade de procurar falsificar (desmentir) o que pensamos ser verdade. Edward Snowden, alguns meses atrás, disse o mesmo:

Eis uma forma melhor de pensar: num […] mundo saturado de informações, onde se pode basicamente encontrar provas para qualquer teoria que se queira, onde as pessoas vivem em realidades online separadas, devemos concentrar-nos na falsificabilidade (capacidade de desmentir, que pode ser testada) em vez da suportabilidade (acordo com a afirmação, que não pode).

(Snowden, “Apophenia” )

Sentimos que os eventos estão fora de controlo? Que o governo é uma força do mal e todos nós somos impotentes frente a ele? Esta guerra nuclear com a China é inevitável? Este Covid-19 é apenas a salva de abertura de epidemias mais sérias? Que as condições que tornaram a civilização humana possível estão-nos a ser rapidamente arrancadas pela mudança climática? É fácil ficar tão sobrecarregado que o resultado é a inércia.

Esse sentimento é semelhante a acreditar em forças ocultas todas-poderosas por trás das instituições que moldam as nossas vidas e que não há nada que possamos fazer para mudá-las. É aqui que as teorias da conspiração entram em cena:

Foi isso que o sociólogo judeu austríaco Karl Popper, refugiado do Holocausto na Nova Zelândia e mais tarde na Inglaterra, expôs na sua teoria da ciência. Popper acreditava que as teorias da conspiração são exatamente o que alimenta um estado totalitário como a Alemanha de Hitler, jogando com e aumentando a paranoia do público em relação ao Outro. E os autoritários safam-se precisamente porque as suas afirmações pseudocientíficas, disfarçadas de pesquisa sólida, são desenhadas para serem difíceis de ser provadas "falsas" no calor do momento, quando os conjuntos de dados – para não mencionar um senso das consequências históricas... são necessariamente incompletos.

Pelas luzes de Popper – e, diria eu, pela intuição da decência humana básica – não devemos considerar essas teorias provisórias como “ciência” de forma alguma.

(Snowden, “Apophenia” . Esta é a segunda vez que estou a recorrer ao mesmo artigo de Edward Snowden.)

Claro, quando gastamos algum tempo a aprofundar como essas instituições realmente funcionam (e já falámos sobre a instituição dos media algumas vezes aqui), descobrimos que as pessoas neles muitas vezes se descobrem a espalhar consequências de que pessoalmente não gostariam, ou que se fazem acreditar que não afinal são assim tão malignas:

Popper é um dos favoritos nos estudos de teorias da conspiração, mas quero trazer uma sua ideia adjacente que acho que não é enfatizada neste contexto, que é que a maioria das ações humanas tem consequências não intencionais. A propaganda instantânea deveria produzir consumidores informados; a National Security Agency deveria proteger-"nos", explorando-"os". Esses planos correram terrivelmente mal. Mas quando acordarmos para a ideia de que o mundo foi padronizado, intencionalmente ou não, de formas com as quais não concordamos, podemos começar a mudá-lo.

(Snowden, “Apophenia”)

Sozinhos, não podemos fazer nada significativo, é verdade. Mas somos seres sociais. O confinamento solitário, como foi publicado recentemente, enlouquece-nos.

É de boa fé que os denunciantes em todo o mundo trazem essas contradições à atenção do público; eles facilitam a revelação pública, lembrando-nos de que não estamos em quarentena nos nossos "estágios" paranoicos particulares. Pensar em público, juntos, permite-nos encenar uma atuação totalmente diferente. Tornamo-nos mais parecidos com os teóricos sociais de Popper:

(Snowden, “Apophenia” )

Karl Popper

Karl Popper

É isso. Pensar em público. Estar socialmente engajado. Compreender o mundo à nossa volta requer algum esforço para nos puxarmos até a margem e não sermos carregados pela corrente de que Ellul falou. Eis uma passagem de um ensaio de Popper.

É tarefa da teoria social explicar como surgem as consequências indesejadas das nossas intenções e acções, e que tipo de consequências surgem se as pessoas fizerem isto ou aquilo numa determinada situação social. E é, especialmente, tarefa das ciências sociais analisar desta forma a existência e o funcionamento de instituições (tais como forças policiais ou companhias de seguros, ou escolas ou governos) e de coletivos sociais (como estados nacionais, ou classes ou outros grupos sociais). O teórico da conspiração acreditará que as instituições podem ser entendidas inteiramente como resultado de um projeto consciente; e como coletivos, geralmente atribui-lhes uma espécie de personalidade de grupo, tratando-os como agentes conspiradores, como se fossem pessoas individuais. Em oposição a esta visão, o teórico social deve reconhecer que a persistência de instituições e coletivos cria um problema a ser resolvido em termos de análise das ações sociais individuais e suas consequências sociais não intencionais (e muitas vezes indesejadas), bem como as pretendidas.

(Popper, “Conspiracy Theory of Society”, 15. Snowden cita a última parte deste mesmo parágrafo em “Apophenia” )

Será isto optimismo ingénuo?

Talvez eu seja o iludido por encontrar motivos para otimismo nesta ideia [...]. O pensamento de Popper oferece uma saída de emergência dos nossos mundos privados e de volta à esfera pública. O teórico social é um pensador público, orientado para a melhoria da sociedade; o teórico da conspiração é vítima de instituições que estão além de seu controlo.

(Snowden, “Apophenia” )

Chomsky

Noam Chomsky

Como disse Noam Chomsky, não há alternativa ao optimismo. O pessimismo leva ao desengajamento e o desengajamento garante o pior resultado.

O optimismo é uma estratégia para construir um futuro melhor. Porque, a menos que acreditemos que o futuro pode ser melhor, é improvável que demos um passo à frente e assumamos a responsabilidade fazê-lo. Se presumimos que não há esperança, garantimos que não haverá esperança. Se presumirmos que existe um instinto de liberdade, que existem oportunidades para mudar as coisas, existe uma hipótese de contribuirmos para a construção de um mundo melhor. A escolha é nossa.

(Chomsky, “On Choosing Optimism”)


Ellul, Jacques. “Propaganda: The Formation of Men’s Attitudes”. Traduzido por Konrad Kellen and Jean Lerner. New York: Vintage, 1973. https://archive.org/details/propagandaformat0000ellu

Popper, Karl. “The Conspiracy Theory of Society” In Conspiracy Theories: The Philosophical Debate, editado por David Coady, 13–15. Aldershot, Hampshire, England; Burlington, VT: Routledge, 2006.

Snowden, Edward. “Apophenia”. Substack newsletter. Continuing Ed — com Edward Snowden (blogue), 6 de agosto de 2021. https://edwardsnowden.substack.com/p/conspiracy-pt2.

Sustainably Motivated. “Noam Chomsky On Choosing Optimism,” March 12, 2017. https://sustainablymotivated.com/2017/03/12/noam-chomsky-choosing-optimism/.


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