Porquê tanto ódio aos judeus?

Como hoje é dia de lembrar o Holocausto, vou dar a minha modesta contribuição. Traduzi este artigo de Rick Snedeker, da recente plataforma humanista secular Only Sky. De facto, tal como o autor, sempre me intrigou o antissemitismo, como crença totalmente irracional. Sobretudo por parte de alguns cristãos que, no fim de contas, odeiam os judeus mas adoram um deus que escolheu nascer homem judeu.

Aqui em Portugal, o anti-semitismo não é tão feroz, de momento, diriam vocês? Bem... Como devem saber, aqui na nossa terrinha foram cometidos alguns dos piores crimes contra os judeus. Nada do nível eficiente e industrializado dos nazis, mais uma coisa persistente, insidiosa, beata e eclesiástica. O rei mandou os judeus converterem-se à força, ou serem expulsos. Depois, o grande massacre de Lisboa contra os que já se tinham convertido. A seguir, criaram a Inquisição, para continuar a perseguir e massacrar, durante quase 300 anos, os desgraçados cristãos novos. Felizmente, tivemos cem anos de políticos liberais e anticlericais que restauraram o prestígio nacional, o que nem Salazar conseguiu inverter. Demos abrigo e passagem a foragidos judeus, durante a II Guerra Mundial. Pois demos. Ainda bem. Mas ainda hoje se usa o verbo "judiar", com o significado de ser perverso e cruel. Porquê? É a lenda, que persiste na nossa linguagem, do libelo de sangue, de que os judeus praticavam secretos crimes...

Porque é que tantas pessoas em todo o mundo parecem odiar os judeus?

Isto deixou-me perplexo quando, em criança, soube da ascensão da Alemanha nazi e do Holocausto na escola e assisti a filmes horrendos a preto e branco de bulldozers nazis empurrando enormes pilhas de prisioneiros judeus mortos e emaciados para valas comuns. E fiquei ainda mais perplexo por este preconceito homicida contra os judeus também existir no meu próprio país, os Estados Unidos, durante a minha juventude protegida nos anos 60.

E ainda existe, embora em geral de forma menos abrangente, nos anos 2000.

Tanto quanto sei, os judeus nunca fizeram nada de mal a mim pessoalmente ou a alguém que eu conhecesse, mas, também nunca tinha conhecido nenhum, que eu soubesse. Onde é que eles estão, exactamente? Como é que eles são? A ampla animosidade para com eles pareceu-me extremamente nebulosa, sem forma, indistinta. Aparentemente não matavam pessoas, não as roubavam e não cometiam outros actos detestáveis. Eram odiados. Porque sim.

Os nazis odiavam os judeus nos anos 30 e 40, de acordo com os livros de história, porque os culpavam irracionalmente por controlarem de forma egoísta o sistema financeiro da Alemanha e por andarem a conspirar secretamente para uma guerra lucrativa na década de 1910, que eles acreditavam ter contribuído para a entrada da nação na Primeira Guerra Mundial (também conhecida como a Grande Guerra, 1914-1918) e a sua subsequente rendição incondicional e humilhação na derrota. E os alemães predominantemente cristãos também responsabilizaram os judeus por uma ladainha de males antigos imaginados, resultantes da história bíblica de que os judeus ordenaram a execução de Jesus pelas autoridades romanas. No entanto, o próprio Jesus era judeu, pelo que o argumento parece um pouco arrevesado.

Um estudo de 2019 mostrou que mais de um quarto dos Alemães tem opiniões anti-semitas.

Portanto, não foi que os judeus tivessem infringido qualquer lei alemã, moral, ética, ou outra. Eram apenas odiados porque tinham sido odiados e perseguidos durante muito tempo. Por serem banqueiros e financeiros de sucesso?

Ainda mais desconcertante é o facto de que este preconceito aparentemente absurdo, mas raivoso, ainda está bem presente muitas décadas mais tarde — tanto na Alemanha como nos Estados Unidos, como noutros lugares.

Fui recordado disto recentemente quando li um curioso artigo no ezine Slate, intitulado "Conheça um Judeu": À medida que a violência aumenta contra os judeus na Alemanha, um grupo tem um esquema radicalmente simples para ripostar".

O artigo focava um novo programa de aulas locais para estudantes, realizado em todo o país chamado, de facto, "Conheça um Judeu". Introduzido pelo Conselho Central de Judeus na Alemanha, o programa apresenta judeus a alemães não judeus em comunidades locais, desde Munique a Frankfurt e Leipzig. O objectivo, explicou o artigo do Slate, era "humanizar os judeus depois de anos de crescente violência anti-semita no país".

Mais uma vez, pergunto a mim mesmo, porque é que este ódio específico contra os judeus está a aumentar em qualquer lugar? É uma espécie de vigarice ideológica. O que fizeram eles a alguém que mereça uma perseguição tão odiosa e discriminatória?

A ideologia nacionalista tóxica do "sangue e da terra".

Incêndio na sinagoga da Boemestrasse em, Frankfurt, durante a Kristallnacht. Fonte: History Collection

Bem, aprendi que existe uma ideologia supremacista branca, nacionalista e racista, chamada "sangue e terra" ("Blut und Boden", em alemão), uma filosofia nazi central, que tem ajudado a inspirar esta aversão sem fim. A filosofia defende o ideal nazi de uma população nacional racialmente definida ("sangue") unida a uma área de povoamento ("solo") na qual a vida rural e agrícola é idealizada como um contrapeso à das cidades.

Em todo o lado ao longo da história ocidental, que está impregnada de dogmas cristãos e perseguição dos "outros", os judeus têm sido injustamente vistos como estrangeiros no nosso meio, como "outros", não cristãos, não cidadãos plenos, nem mesmo realmente brancos. Pelo menos até à criação do Estado judaico moderno de Israel, no meio da destruição da Segunda Guerra Mundial, em que o ódio aos judeus internacionais, juntamente com uma necessidade ardente de redenção das humilhações da Primeira Guerra Mundial, alimentaram a agressão mundial da Alemanha nazi.

Esta marca implacável de nacionalismo de direita, branco-supremacista e racista ressurgiu no Ocidente nos últimos anos, infectando e desestabilizando tanto as democracias americanas como as europeias.

Acontece que Donald Trump e Adolf Hitler têm muito em comum. Ambos idealizaram a brancura da pele, o fascismo e o nacionalismo cínico, e ambos cortejaram desonestamente as massas cristãs para darem aos seus movimentos um peso extra e um zelo sectário.

Neo-nazis em Charlottesville: "Os judeus não nos substituirão".

Nós, americanos, vimos a ligação em 2019, quando uma turba de neo-nazis e jagunços anti-negros marcharam à luz de tochas nas ruas de Charlottesville, Virgínia, gritando velhos slogans nazis em uníssono como "Sangue e terra!" e "Os judeus não nos substituirão!"

A algazarra reacionária na manifestação chamada "Unite the Right" (Unir a Direita) pareceu-me uma estranha brecha no tempo. Para começar, "sangue e solo" não é uma ideia americana, e os judeus, compreendendo apenas 2,4% da população dos EUA, parecem altamente improváveis para conseguirem substituir as dezenas de milhões de apoiantes do Trump — nos próximos tempos.

Quando Trump ganhou a nomeação presidencial do Partido Republicano em 2016, a revista The Atlantic, utilizando dados de pesquisa, descreveu os seus apoiantes de base como sendo, na sua maioria, homens brancos evangélicos pobres sem graus universitários, ainda hoje uma população eleitoral central entre os apoiantes.

Então, de que trata esta aversão da direita dos judeus? Bem, há muita aldrabice cristã fundamentalista cozinhada no movimento nacionalista cristão americano, incluindo o antigo e muito duvidoso conceito de "libelo de sangue", que sustenta que "os judeus assassinam crianças cristãs, frequentemente por volta da Páscoa, e usam o seu sangue em rituais de Páscoa", como explica um artigo em The Nation. Imaginem.

Como muito fanatismo, isto também se baseia em muitos disparates comprovadamente falsos, que os adeptos escolhem acreditar de todo o coração, por razões ideológicas, não objetivas.

Entretanto, as opiniões anti-semitas parecem estar entrincheiradas e a aumentar noutras partes do mundo, mesmo na Alemanha, onde, ironicamente, hoje em dia a simples negação do Holocausto ou o insulto aos judeus são ofensas federais. Escreveu o Slate:

"Um estudo realizado em 2019 descobriu que mais de um quarto dos alemães têm opiniões anti-semitas ('os judeus falam demasiado do Holocausto', 41% concordaram; os judeus têm 'demasiado poder' sobre a economia e os media na Alemanha, mais de 20% concordaram)".

O partido alemão de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD), ao mesmo tempo que vê a sua quota de votos escorregar nas eleições de 2021, ainda controla 11% dos lugares no Bundestag, o parlamento alemão.

"O preocupante é que as forças culturais e políticas que pressionam o anti-semitismo podem tornar-se mais fortes", disse Alex Sagan, professor em Harvard especializado na experiência dos judeus na Europa moderna, ao Slate.

Fanatismo ao estilo "sangue e solo" dos EUA

Nos EUA, ainda estamos a recuperar do assalto de 2021 ao Capitólio dos EUA, por extremistas, em grande parte cristãos, apoiantes do Trump, para sabotar os resultados das eleições presidenciais de 2020 (Lembram-se das bandeiras cristãs?). Centenas de insurretos nacionalistas de direita estão atualmente a ser processados metodicamente, julgados e encarcerados pelo Departamento de Justiça em relação a esse terrível acontecimento. E uma comissão selecionada da Câmara dos Representantes dos EUA está a fazer uma profunda investigação sobre se funcionários-chave do governo, incluindo o antigo presidente e membros do Congresso, participaram ilegalmente na vasta campanha "Stop the Steal" (Parem o Roubo) que culminou com o ataque ao Capitólio.

Ainda assim, como as mentiras descaradas eram a principal arma de propaganda nazi, Trump também continua a insistir no que é incontestavelmente falso: que a vitória de 2020 lhe foi "roubada".

Esta estratégia anti-lei, antidemocrática, anti-civil dos nacionalistas de direita e do seu herói, Donald Trump, abalou a governação americana e ameaçou — ameaça — derrubá-la.

Entretanto, a grande maioria dos republicanos no Congresso (e noutros locais) ainda se recusa a reconhecer a "Grande Mentira", que a eleição foi supostamente manipulada de forma fraudulenta contra Trump e, portanto, que é ilegítima.

O anti-semitismo é um dos principais preconceitos da conspiração nacionalista branca dos cristão evangélicos, ainda alinhada com o ex-presidente agora no exílio. E esta gente é perigosa.

O FBI: O 'terrorismo doméstico' é a ameaça n.º 1 à segurança dos EUA

Em Janeiro, o director do FBI, Christopher Wray, disse memoravelmente ao Congresso que a insurreição de 6 de Janeiro não foi um incidente isolado, e que "o problema do terrorismo doméstico tem vindo a criar metástases em todo o país há vários anos".

Acrescentou que os incidentes violentos forjados por supremacistas brancos compreendem agora "a maior parte da nossa pasta de terrorismo doméstico em geral" e "foram responsáveis pelos ataques mais letais durante a última década".

Não esquecer que muitas destas pessoas são cristãos evangélicos que, por coincidência, ou desconfiam muito ou odeiam os judeus, por razões que as pessoas racionais e razoáveis não conseguem perceber.

É com isso que estamos a lidar hoje em dia. Os judeus não nos vão substituir? O que quer isto dizer, mesmo no século XXI, quando os judeus representam só uma fracção microscópica da sociedade?

O que é isto, 1938?

A "Noite de Cristal".

Nos dias 9-10 de novembro desse ano, os nazis orquestraram "a destruição final da existência judaica na Alemanha" numa atrocidade dirigida oficialmente a nível nacional, agora conhecida como Noite dos Cristais, (em alemão: "Kristallnacht"), também chamada Noite dos Vidro Partidos, segundo a Enciclopedia Britannica. O nome refere-se a estilhaços de vidro espalhados pelas ruas depois de bandidos nazis, dirigidos pela liderança nazi, terem vandalizado cerca de 7500 empresas e hospitais judeus, incendiado ou danificado mil sinagogas, e matado pelo menos 91 judeus. Cerca de 30 mil homens judeus foram presos; Hitler tinha ordenado à polícia que se mantivesse à parte durante o caos e só prendesse as vítimas.

Ironicamente, o FBI não estava plenamente consciente da extensão do crescimento do terrorismo supremacista branco nos EUA após a tragédia das Torres Gémeas em 11 de Setembro, após o que as agências de aplicação da lei se concentraram, como lasers na ameaça do terrorismo islâmico.

Mas, como sublinha a admissão de Wray no Congresso, estão agora concentrados nela.

Esta não é muito provavelmente a última vez que veremos aspirantes nazis enfurecidos a pavonearem-se nas ruas da América, a atacar judeus, negros, mulheres, e o odiado governo.

A ironia é que nenhum desses bodes expiatórios é o verdadeiro problema. A total incapacidade dos zelotas de direita de raciocinar objetivamente é que é.

Odiar irracionalmente os judeus é apenas um sintoma gritante.


Rick Snedeker é um jornalista/editor americano reformado que agora escreve em vários meios de comunicação e livros de não-ficção.

 

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