Jesus de Nazaré Desaparecido em Combate

David Madison, que colabora no site Debunking Christianity de John Loftus, debruça-se aqui sobre um ensaio de Earl Doherty “A Sacrifice in Heaven: The Son in the Epistle to the Hebrews” (Um Sacrifício no Céu: O Filho na Epístola aos Hebreus), na coletânea “Varieties of Jesus Mythicism: Did He Even Exist?” (Variedades no Miticismo Sobre Jesus: Será que Ele Sequer Existiu?), coordenada por David Madison e Robert Price.

O miticismo sobre Jesus, ou seja, a noção de que se trata de um personagem mítico em vez de histórico, tem vindo a ganhar adeptos entre os estudiosos das origens do cristianismo. Teve adeptos desde o século XIX na Alemanha e na Holanda, mas ressurgiu com grande força nos últimos anos do século XX e, sobretudo, já no nosso século XXI. Um dos principais e mais antigos promotores da ideia foi Earl Doherty, o outro Robert Price. Esta é uma tradução do artigo “Jesus of Nazareth Missing in Action” em Debunking Christianity, por David Madison em 1/07/2022

Diferentes pontos de vista sobre Jesus no Novo Testamento

De onde vieram os evangelhos? Uma vez que estes documentos transbordam de detalhes sobre Jesus – os seus provérbios e ditos, milagres impressionantes – tem sido geralmente assumido pelos leigos que foram escritos por pessoas que conheciam Jesus. Tem sido mais fácil pensar assim porque eles são “segundo” Mateus, Marcos, Lucas e João: estes nomes acrescentam um toque pessoal. Mas quando historiadores – incluindo crentes piedosos – começaram a aplicar aos evangelhos os mesmos padrões que aplicam a outros documentos do mundo antigo, os pressupostos comuns sobre as origens evangélicas não se sustentavam. De facto, tem sido uma luta – e tanto que os estudiosos cristãos têm tentado – encontrar uma forma de demonstrar que os evangelhos se qualificam como história.

Nos próprios documentos, nenhum autor reclama crédito – por exemplo, “escrito por Marcos” – nem nenhum deles está assinado e datado. Também não temos qualquer ideia de onde foram escritos, ou seja, onde os autores viveram. Tem havido muito trabalho de adivinhação e especulação, mas continua a não passar disto.

Então de onde vieram os evangelhos? Ironicamente, é o próprio Novo Testamento que suscita a suspeita de que os evangelhos possam ser – será demasiado forte? – fake news. Tem sido comummente assumido pelos leigos – e também na academia cristã – que as histórias do evangelho de Jesus foram transmitidas fielmente pelas pessoas que tinham testemunhado o seu ministério. Ou seja, deve ter existido uma forte tradição oral em grande circulação nas décadas anteriores à escrita dos evangelhos.

Se ao menos tivéssemos alguma forma de verificar isso, mas as provas, de facto, sugerem o contrário. E essas provas estão no Novo Testamento. Há grandes extensões deste documento nas quais Jesus de Nazaré está ausente. Isto é difícil de explicar se os evangelhos o perceberam corretamente se se basearam numa tradição oral robusta a que os primeiros escritores cristãos tivessem tido acesso. Uma boa introdução a este puzzle é o ensaio de Earl Doherty, “A Sacrifice in Heaven: The Son in the Epistle to the Hebrews” (Um Sacrifício no Céu: O Filho na Epístola aos Hebreus), que é o Capítulo Dez da nova antologia editada por John Loftus e Robert Price, “Varieties of Jesus Mythicism: Did He Even Exist?” (Variedades no Miticismo Sobre Jesus: Será que Ele Sequer Existiu?).

Como Doherty salienta, a Epístola aos Hebreus é a segunda mais longa do Novo Testamento (depois de Romanos). Mesmo na Antiguidade, havia dúvidas de que tivesse sido escrita por Paulo, cujo nome não aparece no texto. No início do seu ensaio, Doherty anota: “Quem é o escritor, onde escreve, a quem se dirige permanece desconhecido.” (p. 239) E o antigo escritor não traiu nenhum conhecimento de quaisquer histórias sobre Jesus de Nazaré que supostamente eram acarinhadas nos círculos cristãos:

“Em Hebreus 9:11 o autor diz que ‘Cristo veio’, mas será isto uma referência à sua vida na Terra? Pelo contrário, o contexto indica que ele se refere à ‘entrada’ de Cristo na nova tenda do seu sacerdócio celestial, o santuário espiritual... Este escritor cristão pode falar da ‘vinda’ de Cristo e ainda assim não dizer uma palavra sobre nenhuma das suas obras na terra, apenas do que ele fez no céu.” (p. 264)

Estudiosos devotos também tiveram de lidar com este silêncio sobre Jesus de Nazaré nas cartas de Paulo. Procuramos em vão nas cartas de Paulo uma menção ao nascimento de Jesus, aos seus ensinamentos e milagres. Paulo nem sequer menciona o túmulo vazio, e gaba-se em Gálatas de não ter recebido qualquer informação sobre Jesus das pessoas que o conheciam. Ele descobriu Jesus exclusivamente a partir das suas visões. As histórias boca-a-boca também não lhe chegaram – ou se chegaram, ele ignorou-as.

Se não havia tradição oral – e falta-nos qualquer documentação contemporânea para verificar as palavras e os actos de Jesus – então como é que os escritores do evangelho inventaram as suas histórias? A frase inicial do Evangelho de Marcos indica com que estamos a lidar: “O início do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus.” Os escritores dos evangelhos eram teólogos, não historiadores; o seu objectivo era ganhar convertidos para a pequena seita cristã. Leitores atentos podem ver como os teólogos que copiaram o texto de Marcos – Mateus e Lucas – escreveram a partir das suas próprias perspetivas teológicas. E o autor de João estava num mundo próprio; como escrevi noutros lugares, ele contribuiu poderosamente para a inflação teológica sobre Jesus.

O autor de Hebreus levou isto ao seu próprio extremo, bem ilustrado pelos quatro versículos iniciais do seu tratado:

“Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, A quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo. O qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas alturas; feito tanto mais excelente do que os anjos, quanto herdou mais excelente nome do que eles.” – Hebreus 1:1-4

Seria difícil encontrar uma descrição mais brilhante de um super-herói idealizado, mas em toda a epístola o autor não faz qualquer tentativa de colocar o seu santo herói na Galileia ou em Jerusalém. Mas esta epístola ilustra como ideias e filosofias actuais nesse tempo moldaram esta marca particular do cristianismo. Num artigo aqui publicado no mês passado, discuti o ensaio de Derreck Bennett nesta nova antologia Loftus/Price sobre o cristianismo, no contexto de outros deuses salvadores mortos e ressuscitados da época. Doherty discutiu a influência do Platonismo:

“...Hebreus fornece talvez o melhor exemplo no Novo Testamento de como a crença em Cristo surgiu espontaneamente das correntes e tendências da época, em expressões independentes, cada uma tomando as suas próprias características como resultado das condições locais e das pessoas envolvidas. A epístola é o que é porque um grupo distinto formulou a sua própria imagem das realidades espirituais.

“Procuraram nas Escrituras informações e discernimento sobre o Filho de Deus, sob a influência da atmosfera religiosa e filosófica mais ampla do primeiro século, especialmente o Platonismo de Alexandria, e foi isto que descobriram”. (p. 255)

Esquadrinharam as escrituras. A minha velha e esfarrapada Bíblia Padrão Revista – agora presa com cola e fita-cola – inclui uma ferramenta muito útil: na parte inferior de cada página há notas de rodapé que cruzam outros versos das escrituras que se aplicam. Nos treze capítulos de Hebreus, há 98 referências a textos do Antigo Testamento. É aqui que o autor de Hebreus estava certo de poder encontrar informações sobre o seu Jesus.

Não estava interessado no que se passava com Jesus de Nazaré; Doherty faz estas observações:

“Em Hebreus, não há citações de Jesus; não há acontecimentos da sua vida tal como registados nos Evangelhos a que o escritor recorra para explicar a sua interpretação de Jesus como Sumo Sacerdote. Nem mesmo o conceito central do sacrifício de Jesus como o estabelecimento de um novo pacto foi iluminado pela mais pequena referência à Última Ceia ou às palavras que Jesus disse nessa ocasião para inaugurar tal pacto.” (p. 256)

“O sacrifício de Cristo no reino celestial está exposto em Hebreus 8 e 9. A estrutura deste pensamento é completamente platónica, embora espelhe também algumas ideias judaicas de longa data.” (p. 256)

“O ‘acontecimento’ em que o escritor se concentra constantemente não parece ser a própria morte de Cristo, mas a sua acção de entrar no santuário celeste e oferecer o seu sangue a Deus.” (p. 258) Doherty refere-se a isto como “o centro de gravidade” de Hebreus.

Assim, eis um antigo teólogo que estava certo da sua própria versão de Cristo, mas parece não ter tido conhecimento do Jesus retratado nos evangelhos. Como poderia isso acontecer? Por um lado, não havia controlo de qualidade, como nota Doherty:

“Hebreus fornece fortes provas de que expressões independentes de crença na existência do Filho divino e no seu papel na salvação se encontravam em toda a paisagem do primeiro século, sem fonte ou autoridade central e com pouca partilha comum de doutrina e ritual. É impossível dizer onde se encontrava a comunidade que produziu Hebreus, ou o ano em que este documento único foi escrito, mas que deva a sua génese a qualquer acontecimento histórico em Jerusalém, ou em qualquer outro lugar, é muito difícil de sustentar.” (pp. 252-253)

Expressões de crença independentes. O apóstolo Paulo – certo como ele estava sobre Jesus, baseado exclusivamente nas suas próprias alucinações – ficou aborrecido por outros pregadores estarem a promover outras versões de Cristo. Repreendeu a congregação em Corinto:

“Mas temo que, assim como a serpente enganou Eva com a sua astúcia, assim também sejam de alguma sorte corrompidos os vossos sentidos, e se apartem da simplicidade que há em Cristo. Porque, se alguém for pregar-vos outro Jesus que nós não temos pregado, ou se recebeis outro espírito que não recebestes, ou outro evangelho que não abraçastes, com razão o sofreríeis.” – (2 Coríntios 11:3-4).

Tanto Paulo como o autor de Hebreus tinham mentes fechadas pela certeza teológica – o que raramente é uma boa ideia. Para Paulo, a crença na ressurreição de Jesus era fundamental. Por exemplo, Romanos 10:9: “Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo.”. O autor de Hebreus não se deu ao trabalho de enfatizar a ressurreição, mas concentrou-se em Jesus oferecendo o seu sangue a Deus: “Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção.” (Hebreus 9:12)

Duvido que a Epístola aos Hebreus seja uma parte favorita da Bíblia para a maioria dos leigos: não recebe muito tráfego – como provavelmente é o caso das epístolas de Paulo. É claro que há lá suficientes palavras confortadoras nos escritos de Paulo que parecem ter chegado para o designar como “santo”. Também há ditos reconfortantes em Hebreus, por exemplo, “...ele é capaz para sempre de salvar aqueles que se aproximam de Deus através dele, uma vez que vive sempre para interceder por eles”.

Mas é importante abordar a Epístola aos Hebreus com as nossas faculdades críticas em alerta máximo, e o ensaio de Doherty é uma ferramenta importante para ajudar nisso. Os apologistas resistem à ideia de que este antigo teólogo cristão pensava em Jesus a funcionar apenas em reinos celestiais – sem pegada no chão. No entanto, é precisamente esta característica destes primeiros escritos sobre Jesus – o fracasso em mencionar o ministério de Jesus tal como descrito nos evangelhos – que suscita a suspeita de que ele possa ter sido uma figura mítica desde o início.

Por favor, notem também que aqui existe teologia completamente fundamentada no pensamento mágico: “Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção.” (Hebreus 9:12) A própria ideia de que um deus pode ser apaziguado por ofertas de sangue animal é uma superstição primitiva, e o cristianismo disparou com a ideia de que o sangue do filho de um deus era suficientemente poderoso para garantir a vida eterna. Francamente, este foi o artifício que deu ao culto cristão primitivo o seu apelo, e esta antiga superstição sobrevive de forma potente até aos dias de hoje.

O autor de Hebreus estava concentrado em manter os fiéis na linha, lembrando assim aos seus leitores a ira de Deus. Sim, Iavé do Antigo Testamento ainda está à espera de se vingar:

“Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, Mas uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários. Quebrantando alguém a lei de Moisés, morre sem misericórdia, só pela palavra de duas ou três testemunhas. De quanto maior castigo cuidais vós será julgado merecedor aquele que pisar o Filho de Deus, e tiver por profano o sangue da aliança com que foi santificado, e fizer agravo ao Espírito da graça? Porque bem conhecemos aquele que disse: Minha é a vingança, eu darei a recompensa, diz o Senhor. E outra vez: O Senhor julgará o seu povo. Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo.” (Hebreus 10:26-31) O qual é, acrescenta em 12:29, “um fogo consumidor”.

Com tanto pensamento mágico e teologia da vingança neste texto, não poderia o deus que tanto ama o mundo ter feito um trabalho melhor a inspirar a sua palavra santa?

David Madison foi pastor na Igreja Metodista durante nove anos, e tem um doutoramento em Estudos Bíblicos pela Universidade de Boston. É o autor de dois livros, Ten Tough Problems in Christian Thought and Belief: a Minister-Turned-Atheist Shows Why You Should Ditch the Faith (2016; 2018 prefácio de John Loftus) e Ten Things Christians Wish Jesus Hadn’t Taught: And Other Reasons to Question His Words (2021). Tem escrito para o site Debunking Christianity desde 2016.

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