1. “Paulo”, o improvável fantasma
O ataque dos estudiosos bíblicos às escrituras sagradas tem procedido em vagas sucessivas, desde há mais de duzentos anos. O primeiro a cair foi, naturalmente, o Jesus da fé. Os milagres e eventos fantásticos narrados nos Evangelhos deixaram de ser credíveis. Ficou então um Jesus filósofo ou pensador, influente em todo o pensamento ocidental. Mas esse também ficou sob escrutínio. Nada da sua doutrina, teologia e filosofia pode ser atribuído aos cristãos (Bart Ehrman). Os inventores do cristianismo passaram a ser considerados... os cristãos!
Que sobra então de Jesus? Nada de especial. Pregador milagreiro e exorcista da Galileia, nem uma pequena nota mereceria, no grande drama histórico, se não fosse o fabuloso edifício ideológico construído sobre a sua ténue memória. Já na Idade Média, rabis escreveram (inventaram) no Talmud que Jesus não teria paternidade divina, mas devia a sua existência aos amores ilícitos de Maria com o legionário Pantera.
Essa própria ténue memória expôs-se a novos ataques. Desde o século XIX, cada vez mais investigadores defendem que o personagem Jesus tem uma existência apenas mítica: é uma divindade celestial a quem foi inventada uma existência histórica na terra (Bruno Bauer no século XIX, os críticos radicais holandeses na viragem para o século XX, Earl Doherty, Robert Price, Richard Carrier, David Fizgerald, René Salm na viragem e já no século XXI). São os chamados miticistas de Jesus, que debatem ferozmente os historicistas. No campo dos miticistas de Jesus existem investigadores sérios, mas também notórios conspiracionistas, como os que imaginam que Jesus foi uma criação dos Cláudios (Atwill), ou que foi, pelo contrário, criado como um instrumento político contra o Império Romano (David Skrbina).
Mas nova vaga se levanta. Além de Jesus, agora é a existência do apóstolo Paulo que é posta em causa. Não é exatamente de agora, pois essa tese já foi levantada pela escola radical. Os seus proponentes atuais são Robert Price, Hermann Detering e René Salm.
Vou traduzir uma série de artigos de René Salm sobre esta questão.
Parte 1 – “Paulo”, o improvável fantasma
René Salm 02/03/2016 em Mythicist Papers
Enquanto os miticistas de Jesus se têm concentrado na (a)historicidade de Jesus de Nazaré, uma guerra académica conexa tem sido travada nos bastidores, por assim dizer: a (a)historicidade de Paulo de Tarso – ou, mais precisamente, a inautenticidade das suas epístolas. Está agora a tornar-se cada vez mais claro que as duas questões estão intimamente ligadas. Afinal, se as epístolas paulinas são inautênticas, que base resta para postular a historicidade do seu autor? Para além das epístolas, tudo o que realmente resta a respeito do Paulo histórico é o notoriamente fabricado texto conhecido por nós como Atos dos Apóstolos.
O filme “Paulo, o Apóstolo”, de 2000
Das treze cartas atribuídas a Paulo no Novo Testamento (a Epístola aos Hebreus é “anónima”), seis são consideradas até por estudiosos da linha principal como não paulinas (pseudepigráficas). As sete restantes são hoje consideradas “autênticas” por todos, excepto na bolsa cristã mais liberal (ver abaixo). São: 1 Tessalonicenses, Gálatas, 1 e 2 Coríntios, Filipenses, Filemon, e Romanos. Esta é a lista que Helmut Koester elaborou em 1982 (History and Literature of Early Christianity), para a qual criou uma sequência cronológica que vai do outono de 50 d.C. (1 Tessalonicenses) ao inverno de 55-56 d.C. (Romanos).
Um coro de vozes da esquerda erudita, no entanto, iria fazer-nos duvidar da autenticidade de várias (ou de todas) estas epístolas “centrais”. Tal dúvida foi mais amplamente articulada pela chamada Escola Radical holandesa há um século atrás. Essa escola não só duvidou da autenticidade das epístolas paulinas, como também argumentou que o próprio Paulo nunca existiu. O nexo de problemas em torno da figura recebida de “Paulo” continua a ser habilmente ignorado pelos estudiosos da linha principal; no entanto o miticismo paulino vive hoje em dia no trabalho de vários investigadores, incluindo Hermann Detering (cuja tese de doutoramento foi sobre a Escola Radical holandesa), Robert Price – e eu próprio.
O que sabemos sobre Paulo?
É mais do que estranho que as epístolas de Paulo sejam frequentemente consideradas a prova mais segura da existência de Jesus de Nazaré – embora, pela sua própria admissão, Paulo (a) nunca tenha sequer conhecido o Mestre (Gal 1:12), e (b) para Paulo, “Jesus” é claramente uma entidade espiritual – como defendido por vários estudiosos (e por mim próprio, no meu recente livro NazarethGate, Capítulo 14). Tanto a nível histórico como teológico, Paulo não é de modo algum testemunha da figura que conhecemos como Jesus de Nazaré!
No entanto, como uma manada de búfalos disparados na direção de menor resistência, a tradição tem uma forma de simplesmente ignorar os factos acima referidos. O argumento padrão sustenta que as epístolas estão tão próximas no tempo de Jesus, e que “o Apóstolo” foi um convertido tão cedo (poucos anos após a crucificação de Jesus), que Paulo é a nossa primeira e, de facto, a nossa testemunha mais fiável da historicidade do próprio Jesus. O problema aqui é que as epístolas podem não estar “próximas no tempo de Jesus” e, além disso, que Paulo pode não ter sido de todo “um convertido prematuro” do Mestre. À observação de que as epístolas não dizem virtualmente nada sobre um Jesus humano, o crente responde: “Temos os evangelhos para isso. Paulo não precisava de dizer nada sobre a vida ou ministério de Jesus”! (Suspiro.)
Bem, se Paulo viveu de facto, que dados têm as pessoas que raciocinam para datar a sua atividade? As suas “próprias” epístolas são muito espartanas no que diz respeito a nomes e acontecimentos conhecidos da história. Surpreendentemente, só encontramos informações vagas – como que Paulo se encontra com Pedro, Tiago “o irmão do Senhor”, e João – os “pilares” (Gl 2,9), que angaria dinheiro para a jovem igreja de Jerusalém, e que subsequentemente proselitiza entre os gentios. Não muito.
Os Atos dos Apóstolos (aparentemente) datam Paulo com mais segurança: em Atos 22:3 ele é estudante de Gamaliel (morreu cerca de 50 EC); o Segundo Templo ainda existe (Atos 9:14, 21:27s, etc); Herodes Agripa (m. 44 EC) está no poder (12:1); Gálio é procônsul da Acaia (ca. 50 EC, Atos 18:12); Ananias (m. ca. 66 d.C.) é Sumo Sacerdote (At 23:2); o “governador” (na realidade, procurador da Judeia, 52-58 d.C.) é António Félix (At 23:24), cuja esposa Drusila também é mencionada (24:24); Pórcio Festo sucede a Félix (At 24:27; 25:9); e, finalmente, Herodes Agripa II e a sua irmã Berenice aparecem várias vezes (At 25-26). Isso é muito, certo?
“Paulo”, de Andrea Sacchi
(1599-1661)
Não, de facto, não é... O principal problema, é claro, é a própria natureza dos Atos. O livro é um recital de tal forma fantástico do milagroso e do improvável que nenhum indivíduo razoável creditará às suas narrativas um mínimo de objetividade. Então, também o carácter de Paulo (em Atos como noutros lugares) suscitou dúvidas consideráveis. Estudiosos questionaram o seu improvável estatuto de estudante de Gamaliel (por exemplo, porque é que Paulo usa invariavelmente a Septuaginta grega em vez das escrituras hebraicas?), interrogaram-se sobre o seu estatuto de fariseu altamente instruído que, surpreendentemente, abandona a sua herança judaica para proselitizar entre os gentios, e questionaram a sua cidadania romana e os seus benefícios, tal como descritos em Atos.
Depois, também nos seus escritos prolixos (a Guerra dos Judeus de 78 EC, e as Antiguidades dos Judeus de 94 EC), Josefo dá as histórias de Agripa, Festo, Félix, e da maioria das outras figuras mencionadas em Atos. Teria sido um caso relativamente simples para um autor do segundo século ter roubado os relatos do historiador judeu...
Assim, voltamos à nossa primeira pergunta: O que é que realmente sabemos sobre “Paulo”? A resposta é: Nada. Muitos estudiosos notaram que as epístolas são internamente contraditórias e traem pontos de vista contrastantes, tudo sob o nome de “Paulo”. Se considerarmos a literatura não canónica (os actos apócrifos, os escritos pseudo-clementinos, etc.), então torna-se evidente que “Paulo” foi tanto o seguidor mais idealizado como o mais vilipendiado de Jesus. A minha própria opinião é que Paulo não era tanto uma pessoa da história como era o “cristão ideal” em evolução para a Igreja, e também o “traidor quintessencial” para os inimigos da Igreja.
Uma nova cronologia
É claro que a inexistência de Paulo – se é que é verdade – tem repercussões gigantescas na natureza do estudo do Novo Testamento e nas nossas opiniões sobre as origens cristãs. De certo modo, porém, mesmo uma afronta tão monumental à história não afetaria seriamente a posição da Igreja. Afinal de contas, mesmo que “Paulo” seja um pastiche de figuras do primeiro século, ou se “ele” for uma reinterpretação de alguma testemunha muito antiga de Jesus – nestes casos a Igreja pode encolher os ombros e dizer: “E depois? Ainda temos uma testemunha crítica precoce de Jesus de Nazaré, uma testemunha que expõe a teologia cristã no seu sentido mais básico.”
O cerne da questão, portanto, não é de todo a existência de Paulo. É a datação de “Paulo”. Esta é a primeira de uma série de artigos a argumentar que “Paulo” é um desenvolvimento do segundo século. Eis a apresentação de uma nova cronologia, com consequências para a história do cristianismo muito mais devastadoras do que a mera inexistência do Apóstolo. Pois se as epístolas paulinas são escritos em meados do segundo século (como se suspeita cada vez mais), então os evangelhos canónicos – que são mais tardios – serão textos do segundo século! Podemos estar bastante confiantes nisto porque os estudiosos (sendo o mais recente Tom Dykstra no seu livro Mark, Canonizer of Paul, de 2012) demonstraram que o evangelho canónico mais antigo coloca a teologia paulina num (artificial) cenário histórico. De repente, o cristianismo, tal como o conhecemos, transforma-se, de um desenvolvimento histórico do primeiro século, num desenvolvimento literário inventado do segundo século.
No entanto, antes de levar Paulo para o segundo século com sucesso, é primeiro necessário cortar os seus laços, por assim dizer, com a primeira geração cristã. A discussão começa com uma questão: O que é que, de facto, temos que date com segurança de meados do século I EC? Revendo as informações de Atos e as epístolas, como já foi referido, a resposta é curta: Não temos absolutamente nada. O Paulo do primeiro século é um fantasma, uma figura improvável totalmente invisível para a história. Com essa admissão, surge pela primeira vez um novo perfil de origens cristãs, que paira como um casco mal detetável através de um denso nevoeiro: o Novo Testamento não pertence de todo ao primeiro século. Os textos que todos veneramos há dois milénios tiveram a sua incipiência cem anos mais tarde.
A seguir: Paulo muda-se para o século II CE.
Comentários
Enviar um comentário
Comente, mesmo que não concorde. Gosto de palmadas nas costas, mas gosto mais ainda de polémica. Comentários ofensivos ou indiscretos podem vir a ter de ser apagados, mas só em casos extremos.