2. Paulo muda-se para o segundo século

Estou a traduzir uma série de artigos de René Salm, no seu site Mythiscist Papers, sobre a historicidade de Paulo de Tarso. Este é o segundo. O primeiro, 1. "Paulo", o improvável fantasma está aqui.

Poderosos ventos de proa...

Temos de nos perguntar como é que, depois de literalmente séculos de investigação, o campo dos “estudos bíblicos” (abrangendo tanto as escrituras judaicas como o Novo Testamento) ainda apresenta uma massa opaca de conclusões mutuamente contraditórias – e, de facto, nenhuma conclusão universal! Sempre que surge um avanço promissor – ou apenas ameaça aparecer – um coro de negações previsivelmente ascende das instituições entrincheiradas entre nós (igreja, sinagoga, e academia) para regressar ao status quo ante. A conclusão correta a tirar não é que (1) as pessoas são estúpidas, (2) os investigadores são cegos, ou (3) a informação é escondida (embora um pouco de todas as três seja provavelmente verdade), mas que, no campo dos estudos religiosos, a mudança é intolerável. A inércia é a ordem do dia. De facto, há que admitir que as religiões, tanto do judaísmo como do cristianismo, têm muito a perder com a mudança. O que é provavelmente outra forma de dizer que elas têm muito a perder com a verdade.

Mosteiro Simonos Petra

O mosteiro de Simonos Petra (Simão Pedro)
no Monte Athos, Grécia.

Mesmo na melhor das circunstâncias – isto é, se tivéssemos muitas testemunhas oculares de confiança e ainda comunicativas – descobrir “o que aconteceu” há dois mil anos atrás na Palestina seria difícil. Mas o investigador das origens cristãs também encontra uma forte resistência à livre investigação do passado. Sim, vivemos na era da Internet, de comunicação praticamente sem restrições, mas pode surpreender os leitores saber que muitos textos seminais ainda não estão disponíveis – embora sejam conhecidos há décadas! Pessoalmente, carreguei para este website os notáveis Atos de Marcos – ainda sem tradução, embora descobertos no Monte Athos nos anos 60. Porquê a resistência óbvia à introdução de um texto tão importante na discussão? Muitos outros exemplos poderiam ser dados.

Assim, não é preciso supor ingenuamente que a informação, bem como os textos contrários à tradição, estão de alguma forma livremente disponíveis. Não estão – tal como os cargos de ensino universitário não estão atualmente disponíveis para os mitologistas de Jesus. É verdade que os textos raivosamente heréticos já não são queimados. No entanto, existem agora outras formas mais subtis de os fazer desaparecer efetivamente. Tais textos são muitas vezes esquadrinhados em colecções 'privadas', e também em coleções 'públicas' acessíveis apenas através de um único e todo-poderoso (e inveteradamente conservador) estudioso. Nenhuma Lei sobre a Liberdade de Informação se aplica a este material. Se uma instituição – seja a Biblioteca do Vaticano, ou a Univerdidade de Notre Dame, ou uma faculdade privado ou público – se recusar a disponibilizar um documento, esse documento pode ser escondido da vista praticamente para sempre.

Mosteiro Simonos Petra

Alguns dos oitenta quilómetros de estantes do arquivo secreto do Vaticano

No passado, a situação era ainda pior. Os documentos eram queimados ou perversamente alterados. É agora óbvio que os prelados, em tempos, trataram, o melhor que que puderam, de que os dados disponíveis apoiassem a sua versão da história, e nenhuma outra. De facto, nos primeiros séculos cristãos, tiveram dificuldade em decidir que versão da história queriam, ou seja, que versão serviria melhor os seus interesses. Assim, os registos sobreviventes são pouco fidedignos, contraditórios e confusos.

O investigador das origens cristãs de hoje deve lidar com um fundo rico de falsas testemunhas antigas. Herdámos textos que sobreviveram a um longo esforço (que durou muitos séculos) para destruir e alterar provas. E hoje lidamos com a (contínua) poderosa oposição contra opiniões que não são consistentes com a ortodoxia. Todos estes são ventos de proa muito substanciais, e explicam em grande parte porquê – nas palavras acima – após literalmente séculos de investigação, o campo dos “estudos bíblicos” ainda apresenta uma massa opaca de conclusões mutuamente contraditórias.

Não há, no entanto, alternativa ao pensamento, ao questionamento e às perguntas... Queremos compreender. Isso é a natureza humana. Em última análise, não importa quão fortes são os ventos de proa. O progresso pode ser lento, mas é inevitável.

“Paulo” tem de passar para o segundo século EC

No meu recente livro NazarethGate (Capítulo 14), defendo a tese de que um profeta fundador viveu no início do século I AEC, um profeta que esteve de facto na origem do cristianismo. Os leitores podem estar familiarizados com esta tese geral a partir dos escritos de Alvar Ellegard (Jesus One Hundred Years Before Christ) e G.R.S. Mead. O profeta era muito diferente de “Jesus de Nazaré” – que, defendo eu, nunca existiu.

À precedente redatação do profeta fundador do primeiro século EC para o primeiro século AEC, creio que devemos também acrescentar uma segunda redatação crítica: a remoção do “Paulo” do primeiro século EC para o segundo século EC. Juntamente com Robert M. Price, Hermann Detering, e alguns outros, acredito também que 'Paulo' (pelo menos, como o concebemos) nunca existiu. Estas noções – a redatação de “Jesus”, a redatação de “Paulo”, e a opinião de que nenhuma delas existe – não são novas. Todas elas já existem há cerca de um século. Mas, devido à oposição académica e religiosa enraizada acima referida, nunca ganharam força.

No entanto, a situação parece agora estar a mudar. O trabalho de certos especialistas dentro da academia está a provar o que antes era escrupulosamente evitado. Estamos a atingir um ponto de viragem em que quase tudo o que foi escrito antes da viragem do milénio será obsoleto.

Inexoravelmente, dúvidas quanto à autenticidade das epístolas paulinas (e mesmo quanto à existência de Paulo) conduzem a uma figura muito digna e pouco conhecida: Marcião de Sinope. De acordo com os Padres da Igreja, este imponente “herege” do século II recolheu primeiro as cartas de Paulo e reuniu primeiro um cânone de obras – o “Novo Testamento”. Alguns estudiosos consideram que Marcião – ou os seus estudantes – podem não ter simplesmente “encontrado” as epístolas paulinas – eles podem ter sido autores de várias delas. O estudioso holandês Van Manen pensava que o próprio Marcião escreveu o primeiro rascunho da Epístola aos Galatianos. Robert Price concorda:

Tomo Marcião como autor, em parte devido ao comentário surpreendente de Tertuliano (Contra Marcião, 5:chp.3) que “Marcião, descobrindo a Epístola de Paulo aos Gálatas... trabalha muito para destruir o carácter destes Evangelhos que são publicados como genuínos e sob os nomes dos apóstolos”. Se tomarmos “descobrir” no seu sentido mais forte, o comentário implica que ninguém tinha visto a Epístola antes. Tal como Hilquias, o sacerdote que “descobriu” o Deuteronómio, ou Joseph Smith, que “descobriu” o Livro de Mórmon, Marcião escreveu realmente a Epístola aos Gálatas”. [R. Price, The Pre-Nicene New Testament (2006), pp. 315-316].

Alguns investigadores perguntaram-se se os marcionitas eram responsáveis pela autoria de todas as dez epístolas paulinas que “recolheram”. Uma consequência espantosa desta visão é, evidentemente, cronológica: “Paulo” torna-se subitamente uma figura do segundo século – as epístolas paulinas já não datam dos anos 50 EC, mas sim um século mais tarde! As considerações textuais (internas) conduzem, de facto, ao mesmo resultado. Price conclui: “Tudo [nas epístolas paulinas] aponta para dias posteriores – pelo menos no final do primeiro ou no início do segundo século” (The Amazing Colossal Apostle, 2012, p. 36).

Tudo na antiguidade concorda que Marcião exaltou Paulo. Mas a Igreja cristã também... Então, onde está o problema aqui? Poder-se-ia pensar que Marcião e a Igreja estariam a dar palmadinhas nas costas um do outro em vez de se vilipendiarem mutuamente. O problema, porém, é que Marcião e a Igreja tinham ideias radicalmente diferentes sobre o que “Paulo” pensava e escrevia. Embora ambos o venerassem, as diferenças eram fundamentais: Quem era o verdadeiro Paulo? O que é que ele ensinava? Será que o Apóstolo ensinou as doutrinas aprovadas da Igreja ou o que algum herege rico (Marcião era alegadamente um rico armador) pensava, nomeadamente, que existiam múltiplos deuses e que o deus dos judeus era essencialmente um vilão?

Em causa estava nada mais nada menos do que toda a criação. O gnóstico Marcião e os seus seguidores ascéticos ensinavam que a materialidade é uma triste prisão da “luz”, que a única fuga é a gnose e a renúncia. (Nota bene: isto é muito budista.) Eles afirmaram que Jesus mostrou este “Caminho” e que Paulo o ensinou. Os Padres da Igreja pragmáticos perceberam rapidamente que esta teologia auto-mortificadora não tinha absolutamente nenhuma hipótese de sucesso com as massas. A Igreja (como, antes dela, o judaísmo) resolveu que a criação é boa. A procriação é divinamente ordenada. A vida, tanto na dimensão carnal como na espiritual, é motivo de celebração. Óptimo! Podemos divertir-nos. Podemos casar, ter muitos filhos, ficar ricos... (Entra James Brown.)

Marcião não teve nada a ver com isto. Pelo contrário, ele ensinou que mesmo os casais casados precisavam de viver castamente. De facto, alguns sinais da sua visão ascética/encrática encontram-se no Novo Testamento (tanto nos evangelhos canónicos como nas epístolas paulinas). Isto pode não ser inteiramente coincidência, pois os estudiosos estão a notar (não pela primeira vez, aliás) que tanto as epístolas paulinas como os evangelhos canónicos nasceram historicamente, não no primeiro século EC, mas em meados do segundo século – ou seja, precisamente na época de Marcião. Não existe qualquer referência nos Padres da Igreja, nem às epístolas nem aos evangelhos antes de c. 150 EC. Trata-se de um facto bastante espantoso. Contribui para o ponto de vista de que todos os dados dos textos do Novo Testamento para o primeiro século EC são infundados. Durante centenas de anos, a os eruditos assumiram simplesmente que os textos do Novo Testamento datam do primeiro século – sem qualquer prova externa!

Mosteiro Simonos Petra

The Amazing Colossal Apostle, livro de R. Price, inclina-se para a não historicidade de Paulo

Na verdade, está agora a tornar-se claro que o “Pequeno Apocalipse” em Mc 13 se refere à Guerra de Bar Kokhba, e não à Primeira Revolta Judaica. Os evangelhos também contêm anacronismos marcantes que traem a composição no segundo século – incluindo a presença de fariseus e sinagogas na Galileia, e (de acordo com o meu trabalho) Nazaré, que só emargiu no segundo século. Se Marcião foi o autor das primeiras epístolas paulinas, o início do “cristianismo” como o conhecemos no segundo século está praticamente assegurado.

Alguns estudiosos (nem todos eles míticos, certamente) pensam que Marcião também pode ter escrito o primeiro evangelho. Terei muito mais a dizer sobre esta possibilidade numa série separada neste website. Mas os danos já foram feitos. Se as epístolas paulinas são do segundo século, então certamente também o são os evangelhos – visto que a visão universal (não sei de nenhum estudioso que a desafie) é que as epístolas precederam os evangelhos canónicos. As consequências, então, de uma datação posterior para as epístolas paulinas são espantosas – todo o Novo Testamento (com as possíveis exceções do Apocalipse de João [ver também os comentários abaixo] e da Epístola de Tiago) teve a sua génese bem no século II EC!

Uma nova cronologia

Parece agora que a génese do cristianismo foi muito mais complexa (e interessante!) do que se suspeitava até agora. Várias 'etapas' estão a emergir (de acordo com o meu esquema):

  1. Um profeta gnóstico fundador que viveu no início do primeiro século AEC
  2. Um sucessor (”califa” por R. Price) que viveu no primeiro século AEC. Pode ser conhecido sob os nomes Simão Mago, Tiago bar Cleophas, e Tiago 'o Justo'. Este gnóstico pode ter escrito alguns pequenos segmentos das epístolas paulinas.
  3. A fase 'evangélica' datada de meados do século II EC, talvez na sequência do trabalho de Marcião. Simultânea é também a invenção de Jesus 'o Nazareno' (Evangelho de Marcos), e pouco depois 'Jesus de Nazaré' (Evangelhos de Mateus, Lucas, e João). Esta foi também a época da recolha e expansão das epístolas, agora desgnostificadas (catolicizadas) e creditadas ao recente apóstolo dos gentios, 'Paulo'.

À medida que nos aprofundamos na história, encontramos camadas anteriormente insuspeitadas, incluindo as acima referidas. Outras podem estar à espera. Por exemplo, o papel de Marcião – embora agora reconhecido como de primeira importância (tanto para a teologia como para o Problema Sinóptico) – ainda é vago. Será que Marcião escreveu realmente o primeiro evangelho – como por vezes é provocadoramente reivindicado? Será que inventou a fabulosa história de Jesus o Nazareno? Ou talvez houvesse um 'UrMark' antes dele? Haverá, de facto, alguma ligação entre os nomes Marcos e Marcião (”pequeno Marcos”)?

Todos temos de estar atentos, pois em breve haverá grandes mudanças na nossa compreensão do cristianismo primitivo. – R.S.

 

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