A facada nas costas
A maioria dos historiadores do período que, na Alemanha, trouxe ao poder os nazis, considera muito importante o sentimento entre os soldados e os nacionalistas, de que o país não tinha, na verdade, sido derrotado na I Guerra Mundial, e que a catástrofe alemã só tinha sido possível pela traição da frente doméstica.
O glorioso exército alemão, à beira da vitória, teria sido apunhalado nas costas pelos social-democratas, pelos bolcheviques, pelos judeus, pela Maçonaria, pela “quinta coluna”.
Na verdade, no início da guerra, quando milhões se matavam nas trincheiras de França, o QG alemão, Hindenburg e Ludendorf já sabiam que ela estava perdida e que começá-la tinha sido insensato. O que não sabiam era como sair do impasse em que tinham metido o seu país sem arruinar o regime que serviam, o Império Alemão e o seu chefe Wilhelm II. Portanto, continuaram a alimentar a picadora de carne com mais e mais milhões de jovens soldados.
A Alemanha foi derrotada ainda a combater em França. Não foi a invasão pelas tropas inimigas que forçou a capitulação, mas o esgotamento total do país e a realização de que, face às derrotas na frente, a invasão seria inevitável e impossível de resistir.
Helicóptero de ataque russo Kamov Ka-52 “Alligator” que aterrou de emergência após ser atingido no ataque falhado ao aeroporto de Hostomel, na Ucrânia, 24/2/2022 [Fonte: Financial Times]
Assim, os famosos generais que tinham levado o país ao desastre, mais o seu imperador, saíram de cena, deixando aos políticos democratas, em especial os sociais-democratas, a tarefa de negociar os termos da paz e de tentar criar uma Alemanha democrática no meio da derrota, da humilhação, da pobreza geral e da crise mundial.
Mas o general Ludendorf, em vez de assumir a sua culpa no desastre, cedo emergiu como o principal proponente da teoria da “facada nas costas”. Tornou-se líder da extrema-direita militarista e organizou duas tentativas de golpe de estado, a segunda com Hitler, o (in)famoso Putsch da Cervejaria, em 1923. Escreveu vários livros, em particular “Der tolale Krieg” (A Guerra Total), em que defendia que “as forças físicas e morais da nação deveriam ser mobilizadas, porque a paz é apenas um intervalo entre guerras” [Fonte: Wikipedia, Ludendorf].
A lenda da “facada nas costas” era um dos artigos de fé fundamentais para Hitler. Vários historiadores da II Guerra Mundial, como Citino e Glanz, consideram que essa crença terá sido importante na recusa em procurar alguma situação negociada para a catástrofe, quando a sorte das armas começou a virar-se contra os nazis. Hitler preferiu destruir a Alemanha a fazer a paz. Mais um nacionalista que arruinou a sua nação ao procurar a glória nas armas.
Que tem isto de relevante hoje em dia? Hoje – é evidente para todos – mais um extremo nacionalista lançou uma guerra insensata e criminosa para levar o seu país à glória armada, arruinando-o totalmente no processo. Só não sabemos que parte da humanidade verá a sua sobrevivência também comprometida.
A facada nas costas da Rússia
A União Soviética foi derrotada na Guerra Fria, em 1991, sem ser vencida pela força das armas. Implodiu, simplesmente. Poucos analistas anteciparam tal evento, e muitos menos ainda compreenderam a força das tensões nacionais escondidas pelo regime opressivo, que a fizeram estilhaçar-se de um dia para o outro. Nos anos de miséria e caos que se seguiram, enquanto os mandarins burocratas se transformaram em novos capitalistas cleptocratas, a tese da traição, da “facada nas costas” foi fazendo o seu caminho.
Mesmo sem ter exatamente este nome, a tese da facada nas costas foi adotada pelos nacionalistas grão-russos, incluindo alguns francamente nazis como Zhirinovsky ou Dugin e acabou por ser acarinhada por Putin. A implosão da URSS não teria sido causada pelo impasse político, social e económico do regime, mas pela conspiração de alguns agentes ocidentais infiltrados no topo.
Vladimir Putin disse à Duma, em 2005, que "o fim da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século. Para o povo russo, tornou-se uma verdadeira tragédia. Dezenas de milhões dos nossos concidadãos e compatriotas ficaram a viver para além das fronteiras do território russo” [Fonte: NBC News, 25/4/2005].
Este é um discurso extremamente ameaçador para todos os países que se tornaram independentes com o fim da União Soviética, tal como a alegação de Hitler, em 1938, de que os alemães étnicos dos Sudetas, na Checoslováquia, deviam fazer parte da Alemanha nazi – pretexto para a invasão que se seguiu.
Ao confundir as fronteiras da União Soviética com as fronteiras da Rússia e ao considerar a Europa de Leste como a fronteira de segurança russa, Putin admite implicitamente uma realidade aparente para muitos analistas: A União Soviética posterior a 1945, com a subjugação de muitas nacionalidades no seu interior e a submissão política e militar de metade da Europa, foi a máxima expressão do Império Russo, apesar disso acontecer sob um regime de ideologia aparentemente internacionalista.
Ocupando talvez o terceiro lugar na hierarquia dos predadores mundiais antes de 1914, o Império Russo parecia ter desaparecido entre as duas guerras, sacudido pela sua revolução e pelo extermínio do povo pelo novo poder comunista de Estaline – embora os comunistas tenham tido vários sucessos, senão a reconstrui-lo, pelo menos a sustê-lo. Subjugaram a Ucrânia durante a Guerra Civil, asseguraram o domínio do oriente asiático e muçulmano, atacaram a Finlândia e a Polónia, terras que tinham pertencido aos czares.
Mas foi a resistir à agressão nazi, com o sacrifício pavoroso em vidas que isso implicou (e com ajuda substancial dos Aliados), que a URSS se transformou subitamente na segunda potência mundial. Os velhos impérios europeus afundaram-se, exangues pela guerra e pela emancipação das suas colónias, os impérios alemão e japonês eram ruínas fumegantes. Vencedor absoluto, os EUA, sem dúvida. Mas a URSS era dona de metade da Europa e metade da Ásia e rapidamente acedeu às armas nucleares.
Não vou agora deter-me na Guerra Fria, que em vários lugares foi muito quente, mas vou só notar que a maior parte da batalha se travou no terreno político, na interferência e contra-interferência na situação social e política em dezenas de países no mundo, em particular os que se tornaram independentes do jugo colonial, e também, decisivamente, na Europa Ocidental. A União Soviética deu muita luta.
Vladimir Putin quer restaurar o Império Russo. Já não o pode fazer cavalgando a derrota de Hitler, como teve a sorte de fazer Estaline, nem pode usar como soft power a esperança de muitas pessoas no comunismo. São águas passadas.
Restam-lhe velhas alegações raciais meio nazis de que todos os russos étnicos (o que quer que seja isso) devem estar submetidos a ele, Vladimir Putin. Resta-lhe também a ameaça nuclear e a falta de escrúpulos em usar sem limites a propaganda e censura do Estado para manter um estado de mentira.
Mas estamos no século XXI, não em 1939. As guerras de agressão não são toleradas pelos povos do mundo. Quem as fizer enfrenta uma perda massiva de soft power. As mentiras, embora tenham sucesso a curto prazo, face à impossibilidade de controlar os fluxos de informação, corroem a credibilidade de quem as diz. A Rússia, enfraquecida por dezenas de anos de desordem e cleptocracia, é uma sombra da antiga URSS. É uma economia do tamanho da da Itália. O PIB per capita da Rússia é inferior ao da Índia. Sustentar a gigantesca máquina de guerra – quanto mais uma invasão em grande escala – afunda a economia russa, mesmo sem ajuda das sanções ocidentais.
Invadir o Iraque (outro crime de guerra, sejamos claros), um país muito mais fraco, pobre e desorganizado, custou aos EUA para cima de um “trilião” e meio de dólares (1,5×1012, um milhão e meio de milhões). A Rússia não dispõe desse tipo de verba.
Nem os EUA tiveram, no Iraque, o seu rival geo-estratégico a oferecer ao país vitimizado o último grito da moda em mísseis e vigilância eletrónica contra os seus blindados, tanques, aviões e helicópteros.
Custa a entender como um criminoso calculista e cínico como Putin foi capaz de tamanho erro. Cego pelo nacionalismo, sem dúvida.
O velho Marx dizia que os episódios históricos aconteciam da primeira vez como tragédia, da segunda como farsa.
A representação de Putin tem muitos aspetos de farsa, não haja dúvida. Mas, para quem é atingido pela onda de sofrimento que desencadeou, a tragédia é muito real.
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