Em defesa da infidelidade conjugal

Já me meti em problemas. Não há nada a fazer. Tenho sido um tipo simpático, escrevendo sobre coisas que, se não são consensuais, pertencem pelo menos ao domínio das ideias pensáveis pelas pessoas de bem.

Mas eu sou escravo das minhas ideias. Penso, portanto meto-me em sarilhos. Vamos em frente, então, que se lixem os torpedos!

Este texto tem a ver com uma conversa com uma querida amiga minha. Fofoquices, estão a ver? Quem se está a divorciar, quem anda à procura de uma nova relação, coisas dessas.

Eu defendi que os casamentos hoje, com as exigências que as pessoas lhes fazem, nomeadamente o sexo constante e bom, não podem durar muito. Ela contrapunha com a felicidade das crianças.

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Eu também sou a favor da felicidade das crianças, claro. Mas…

Ela dizia que é possível fazer durar a felicidade sexual, com o uso de técnicas específicas. Pois. As revistas cor-de-rosa estão cheias de artigos com receitas para manter a chama acesa. Mas o amor e o sexo nunca se deixam domesticar. Há sempre um elemento selvagem, transgressor no sexo.

Toda a felicidade conjugal na cama não impede esse comportamento tão definido, tão perfeitamente descrito em milhares de romances, filmes e canções que provavelmente pertence ao nosso património instintivo: a súbita paixão por alguém novo, a urgência de partilhar com essa pessoa a mais desavergonhada intimidade carnal.

Ouve, a pílula apareceu em 1960. Eu já era nascido. A pílula tornou possível essa coisa extraordinária, o sexo recreativo acessível a todos. Mas tivemos ainda pouco tempo para nos adaptarmos à situação: 50 anos.

De momento, temos essa forma de organização familiar, a monogamia em série, com filhos de casamentos anteriores, a boa ou má diplomacia com os/as ex-cônjuges e as respectivas caras metades actuais, as crianças do cônjuge actual e dos/das ex-cônjuges que não são nossas, mais uma razoável colecção de sogros e ex-sogros que são ou não avós das nossas crianças, cunhados e ex-cunhados que são ou não tios das nossas crianças.

As nossas crianças têm também irmãos completos, meios irmãos e até irmãos colaços (os que são criados como irmãos mas não têm qualquer consanguinidade).

Sorte a minha que só tive uma filha. Mesmo assim, há uns tempos, nos anos do meu neto, estavam duas das minhas ex e respectivos cônjuges. Rimo-nos do assunto, mas noutras famílias pode ser um caso sério. Um conhecido meu tinha o problema logístico de visitar três crianças de três mães diferentes no mesmo fim-de-semana. Uma amiga minha que já não vejo há tempo tinha o problema inverso, se bem que, no caso dela, creio que os três pais das suas crianças primavam pela ausência.

Nunca investimos tanto em cada criança, no seu bem-estar físico e afectivo, na sua educação. Mas nunca conseguimos dar-lhes segurança, pela boa razão que nós próprios também não a temos.

Eu e a minha amiga tivemos que nos separar quando a conversa estava neste ponto tão interessante. Mas eu continuei a pensar no assunto.

Qual o motivo da ruptura dos casamentos? O casal pode estar farto de estar casado, mas a minha amiga tinha dito uma coisa fundamental: sempre que alguém se separa, tem alguém em vista. A minha experiência corrobora isso.

Quando alguém se apaixona por outra pessoa, rompe o casamento. É claro que parte deste processo é um esforço de melhoria, quero dizer, alguém que casou com uma pessoa que afinal não suporta procura refazer uma associação com outra que o faça feliz. Mas estes casos, na minha opinião, não sustentam este movimento incessante de casa-descasa.

A maioria dos casamentos dissolve-se devido a infidelidade conjugal. É isso. Quando um dos cônjuges se enfatua por alguém e sente a necessidade urgente de ir para a cama com essa pessoa. O outro cônjuge raramente é capaz de retaliar. Quem fica agarrado ao casamento, numa espécie de luto solitário, é quem foi traído. Quem pode sair de nariz no ar sem sentir dor é o cônjuge traidor. Injusto, não é? É assim a vida.

Significa que a nova pessoa é, digamos, melhor partido que a outra pessoa que foi abandonada? Às vezes acontece, sem dúvida, mas na maioria dos casos acho que fica ela por ela. Há também quem mude para francamente pior.

Quase sempre, há outros factores que pioram a vida de todos durante um divórcio, começando pelos filhos, é evidente. Os filhos deixam de ter um lar seguro. Se os pais não envenenaram o lar com conflitos, os pais naturais de cada criança serão sempre o melhor ninho afectivo para ela. Todas outras construções sociais são pobres aproximações.

Do ponto de vista material, o divórcio complica tudo. Interrompe o processo de acumulação de riqueza da família, ou então destrói as suas defesas perante os azares da vida. Para todos envolvidos, é um voltar atrás.

Pergunto eu então: e se a infidelidade conjugal não fosse razão para terminar o matrimónio?

Se o cônjuge sofredor de uma paixão escaldante por alguém pudesse apagar o fogo numa escapadinha e voltar para o seu lar e tratar da sua família como de costume, talvez com o bónus de espicaçar também a actividade recreativa na cama?

Para quase todas as famílias isso seria excelente, mas há o problema óbvio, o ciúme.

O ciúme é um bicho muito estranho. Em certas condições é poderoso e assassino, noutras está ausente. É raro o amante de uma mulher casada ter ciúmes do marido dela. Um chulo não tem ciúmes dos clientes das mulheres que tem por conta. Como sabemos também, o ciúme manifesta-se fora do sexo, mais famosamente nas crianças.

Creio que o seu veio principal é o medo de perder o acesso ao amor. Mas o ciúme tem também uma componente social, ou seja, ficamos ciumentos quando a sociedade espera que isso aconteça. Conheço vários casos em que um dos cônjuges tinha uma discreta relação extra-conjugal, que o outro fingia desconhecer. Se colocado numa posição em que não pode continuar a fingir ignorância, por exemplo ao ser avisado por um amigo, tem que desencadear o ciúme, porque se não o fizesse seria desprestigiado publicamente.

Para o ciúme não ser devastador, devem verificar-se várias condições. Em primeiro lugar, o cônjuge potencialmente ciumento deve ter a expectativa de manter o seu acesso ao amor. Se espera que o outro, depois da sua aventura, volte para casa, o ciúme não terá muita força.

Em segundo lugar, a sociedade não deve exigir que a suposta parte lesada tenha um comportamento ciumento e destrutivo em nome da honra. Digamos, a censura poderia ser equivalente ao modo como hoje é encarada uma ocasional bebedeira. Seria talvez de bom tom acarinhar a pessoa que ficou em casa, em vez de espicaçar o seu despeito.

Em terceiro lugar, temos o problema da reciprocidade. A pessoa que tem de tolerar os devaneios sexuais do parceiro deverá sentir-se no direito de gozar os seus próprios devaneios.

Há precedentes na nossa sociedade e noutras sociedades. Há culturas onde se pratica a poligamia, outras a poliandria. Há também grupos restritos, normalmente secretos, que praticam o que se chama a poliamoria, ou seja tanto casamentos com múltiplos parceiros de ambos os sexos como grupos com troca constante de parceiros. Notáveis são os swingers, quase sempre casais estáveis que experimentam novos parceiros por acordo mútuo e quase sempre à vista uns dos outros.

E há a sociedade invisível. A infidelidade clandestina. A maioria dos homens que conheço confessam ter sido, ocasionalmente, infiéis às suas esposas. Alguns dos relatos, creio, foram inventados, porque quem mos contou se sentia inferiorizado por nunca ter tido uma aventura extraconjugal. Sim, não nos esqueçamos que na nossa cultura o sexo é status.

Há muitos casos em que um dos cônjuges é promíscuo, com conhecimento do outro cônjuge. Só que em quase todos os casos, o promíscuo é o homem e a casta é a mulher. A nossa cultura tolera as infidelidades do homem mas ainda condena violentamente a mesma coisa por parte da mulher. Para a mulher que sabe  das aventuras do marido e ao mesmo tempo está proibida de exercitar a sua sexualidade, a situação é muito humilhante e provoca não pouco sofrimento.

Mas as mulheres não deixam de molhar a sopa. São é muito mais discretas. Só uma vez em toda a minha vida uma amiga me contou que tinha sido infiel ao marido. Estava com remorsos e queria contar-lhe. Proibi-a terminantemente, porque não queria aquele casal separado. Gostava muito deles e dos filhos.

Uma ex minha, na altura do divórcio, quis-me confessar as vezes que tinha sido infiel. Não a quis ouvir.

Mas a infidelidade das mulheres é um facto demonstrado, mesmo de uma forma matemática. Se a maioria dos homens tem relações extra-conjugais, vai tê-las com quem? Só com prostitutas ou mulheres solteiras? Não me parece…

Há tempos soube de uma pesquisa genética anónima feita na Europa e nos EUA, que mostra o que se suspeitava há muito: uma percentagem importante das crianças não são filhas do homem que pensam ser o seu pai.

Estes comportamentos clandestinos trazem sofrimento e stress. Não valia mais fazê-los às claras? Ao fim de viver alguns anos e de ter sido feliz ao amor várias vezes – e infeliz noutras – cheguei a uma conclusão simples: o único amor eterno é o amor aos filhos. Na nossa sociedade, é considerado normal lesar as crianças para cumprir o ciúme dos pais. Acho essa situação completamente invertida.

Tudo isto é imoral? Imoral é o comportamento que nos faz infelizes ou torna outros infelizes sem necessidade ou sem justiça.

Se uma sociedade conseguisse manter os lares estáveis, com as crianças seguras da permanência afectiva do seu ninho familiar, acomodando ao mesmo tempo a luxúria irreprimível dos adultos, se calhar seríamos obrigados a considerá-la altamente moral, ou não?

Podem passar muitos anos, antes que ideias deste tipo possam ser postas em prática? É muito possível, como é possível que aconteça mais cedo do que se espera. Ou que aconteça outra coisa qualquer que eu não previ. As pessoas procuram ser felizes, mas outras vezes parecem procurar deliberadamente ser infelizes.

Estas ideias estão em prática em muitos lugares, com excepção do nosso bairro pacato. Que digo eu? Se calhar estão e eu não sei!

Estou a pensar numa amiga minha do Facebook, escritora e cartoonista erótica que vive em São Francisco, Califórnia e parece ser uma personalidade local. Bissexual, está casada com uma mulher de quem fala com naturalidade e muito carinho. Mas a parte mais interessante é que ela diz que está num casamento não monógamo.

Casamento não monógamo? Que ideia interessante!

Pessoas como ela prestam-nos um serviço, pois são os nossos pisteiros morais. Descobrem o trilho, aventuram-se nele, muito antes que nós, os caretos, tenhamos a coragem de pôr lá os pés. Se lá pusermos alguma vez os pés, será porque estas pessoas corajosas e desavergonhadas nos abriram o caminho.


Nota: eu não pratico porra nenhuma das ideias com que brinco aqui. Não lidei com a infidelidade conjugal melhor que a maioria. Entretanto, escusam de me fazer propostas para bacanais, OK?

Comentários

  1. Helena Cristina20/6/10

    ...tudo o que disse é verdade...mas o importante mesmo é sermos felizes...para fazermos felizes quem está ao nosso lado...

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