O Significado Gnóstico do Êxodo - R. Salm comenta H. Detering (2)

H. Detering, “O Significado Gnóstico do Êxodo” – Um comentário (Pt. 2)

René Salm (tradução de um post no seu blogue Mythicist Papers


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6 de abril de 2018

Código de cores: o material de Detering em castanho, os meu comentários em verde e pontos particularmente significativos (de qualquer um de nós) em vermelho.

Destaques deste post:

  • o Novo Testamento deve ser datado do segundo século EC
  • Epifânio de Salamina identifica os jesseus pré-cristãos com os terapeutas de Fílon, e os terapeutas com os primeiros cristãos
  • De acordo com Epifânio, alguns pré-cristãos judeus "incendiaram-se"
  • Epifânio mostra que os nazoreanos estavam de alguma forma relacionados com os monges indianos

Cronologia tardia (Jesus-miticista)

Nestes posts estamos imersos em desenvolvimentos durante o primeiro século EC. Este é um mundo diferente. Aparentemente há “veneradores de Josué / Jesus” (um nome semítico que significa aproximadamente “Y [ahweh] é Salvação”, BDB 221) – como o Dr. Detering irá afirmar mais tarde no seu artigo. No entanto, ainda não havia "cristãos" no sentido aceite dessa palavra (veja abaixo). Tanto Detering como eu concordamos que, no séc. I EC, ainda não havia conhecimento de Jesus de Nazaré (sobre isto, veja AQUI e AQUI).

Se alguém aceita que Jesus de Nazaré foi inventado na primeira metade do séc. II EC, então torna-se difícil aceitar o uso de “Cristo / Messias” antes daquele tempo, pois sem Jesus, o Nazareno, quem era o “Cristo”? Não havia nenhum.

E aqui chegamos à redefinição de termos que deve ser um desafio para quem investiga as origens cristãs. "Jesus" também deve ser redefinido. Pois, sem o deus-homem de Nazaré, cresce a suspeita de que Jesus era uma entidade espiritual – "o Jesus", e que não era homem algum – exatamente como os antigos docetistas afirmavam.

Falsche Zeugen, Hermann Detering, 2011 "Falsche Zeugen
Hermann Detering, 2011

A palavra “Cristo” (da qual veio “cristão”) translitera o grego Xristos, que significa literalmente “ungido”. Este, por sua vez, traduz o Meshiach hebraico (“Messias”) – novamente, “ungido”. No entanto, o termo hebraico é antigo, antecedendo o cristianismo. Pode referir-se a um ser humano (um rei, um profeta, uma figura exemplar) ou, unicamente, ao messias escatológico davídico, que virá como juiz no fim dos tempos. Pode-se também ser ungido com óleo em ocasiões bastante banais – o uso mais casual do termo.

Enquanto Meshiach já era um termo antigo na viragem da era, o grego Xristos era inteiramente novo. É especificamente "cristão" e vem sobrecarregado de bagagem doutrinária que é enfaticamente não-judaica: o "Cristo" cristão foi Deus feito homem. A diferença entre Meshiach e Xristos encapsula a diferença fundamental entre o judaísmo e o cristianismo: o primeiro mantém uma separação estrita entre Deus e o homem, mas o segundo rompe essa barreira.

Notamos também, a partir desta breve investigação de termos, que o cristianismo emergiu quando deixou a esfera judaica. Não é por acaso que o Novo Testamento é em grego – mas a grande maioria dos protagonistas e locais são israelitas. Num sentido fundamental, Jesus de Nazaré é uma figura helenística que se move entre adereços judaicos. Ele é um homem divino (theios anér) numa cena essencialmente estrangeira – a Palestina. Os evangelistas usam instituições judaicas, locais e ideosincrasias (tanto quanto os conhecem no séc. II CE) como acessórios. O essencial é o kerygma: a “proclamação” do Filho de Deus nascido de uma virgem, que nos redimiu por meio de sua morte na cruz e que se levantou da sepultura para se sentar eternamente à destra de Deus. Essa proclamação é inteiramente não-judaica e muito grega. É o coração da euaggelion, as “boas novas” – outro termo grego.

Actos 11:26 informa-nos que os discípulos foram chamados pela primeira vez "cristãos" em Antióquia. Essa renomeação é convencionalmente datada do meio do primeiro século EC. Mas uma "cronologia miticista" move tudo para mais tarde – a invenção de Jesus de Nazaré (início-meados do séc. II EC), os evangelhos canónicos (provavelmente 140 a 150 EC, em rápida sucessão) e também o primeiro uso do termo "cristãos" (início do séc. II CE?). O tradicionalista irá objetar que existem várias testemunhas textuais não-cristãs de “Cristo” e “cristão” que se originam do primeiro e do começo do segundo século EC. Mas Detering escreveu um livro inteiro (Falsche Zeugen, 2011) examinando os seis autores antigos em questão, e mostrou que todas as passagens pertinentes são falsas – interpolações posteriores nas obras de Josefo, Tácito, Suetónio, etc. O resultado é que o termo “cristão” provavelmente surgiu mais ou menos na mesma época que o grego Xristos, e aproximadamente ao mesmo tempo que a escrita dos evangelhos canónicos: início do século II EC.

"Paulo" também não é obstáculo para a cronologia mítica. As suas cartas mencionam “Cristo” e “Jesus Cristo” repetidamente. Mas “Paulo” (a sua existência também está em dúvida!) deve também passar para o segundo século: o consenso miticista (Price, Detering, eu mesmo, alguns outros) é que as epístolas paulinas foram escritas primeiro pela escola de Marcião (cf. Apostolikon), e então 'adaptadas' pela Igreja Católica. Em resumo, pois, basicamente todo o Novo Testamento deve ser datado do segundo século EC. Surpreendentemente, a Revelação de João pode ser o mais antigo escrito do Novo Testamento!

Os primeiros crentes de Jesus

Como os Actos, Epifânio relata no capítulo crítico 29 de seu Panarion, (PDF) "Contra os Nazoraeanos", que os primeiros seguidores de Jesus não eram chamados "cristãos". Mas fornece mais detalhes. Epifânio escreve: “Naquela época, todos os cristãos eram chamados nazoreanos… Eles também passaram a ser chamados de 'jesseus' por um curto período de tempo, antes que os discípulos começassem a ser chamados cristãos em Antióquia” (Pan. 29.1.2, PDF). Se excluirmos “em Antióquia” e substituirmos por “c. 125 EC”, estamos mais próximos da verdade. Com essa data posterior em mente, vemos que Epifânio relata dois nomes para os crentes pré-cristãos: os nazorianos e os jesseus. O primeiro, é claro, sugere o apelido favorito do evangelista Marcos para Jesus: “o Nazareno” (geralmente mal traduzido por “de Nazaré” nas nossas Bíblias). O último nome, "jesseus", sugere os essaioi (essénios). E agora chegamos a algo muito interessante – Epifânio identifica esses jesseus pré-cristãos com os terapeutas de Fílon, e os terapeutas com os primeiros cristãos:

Se você gosta de estudar e leu sobre eles nos escritos históricos de Fílon, no seu livro [sic] intitulado “Jesseus”, pode descobrir que, ao relatar o seu modo de vida e hinos, na descrição dos seus mosteiros nas vizinhanças do pântano Mareano, Fílon não descreveu mais ninguém a não ser os cristãos... Mas Fílon escreveu tudo isso sobre a fé e o regime dos cristãos. ((Pan. 29.5.1, PDF)

Tudo isso é muito revelador, e consideraremos o longo exame de Detering aos terapeutas em posts subsequentes. (O altamente provocador ângulo dos essénios, entretanto – com possíveis elos com o cristianismo primitivo – deve ser deixado para outra altura). Se o precedente não foi surpreendente que chegue, Epifânio escreve algo absolutamente espantoso sobre esses nazoreanos – algo que tem sido uniforme e assiduamente ignorado pelos estudiosos: esses pré-cristãos judeus "incendiavam-se"! Na passagem de Epifânio lê-se:

Eu refiro-me aos nazoreanos, que eu estou a apresentar aqui. Eles eram judeus, estavam ligados à lei e tinham circuncisão. Mas foi como se as pessoas tivessem visto o fogo sem compreender. Não entendendo porquê, ou para quê, os que acenderam este fogo faziam isto – ou para cozinhar as suas rações com o fogo, ou queimar alguma lenha e arbustos, que são ordinariamente destruídos pelo fogo – eles também acendiam fogo, em imitação, e incendiavam-se. ( Pan. 29.5.4-5, tradução de Williams, PDF.)

Quang DucO monge budista Quang Duc imola-se pelo fogo em Saigão (hoje Ho Chi Min City) em 11 de junho de 1963

É uma passagem muito estranha. É óbvio que Epifânio não entende porque alguns nazoreanos se “incendiavam”. (Não se pode culpá-lo!) Na sua busca desesperada duma explicação, supõe frouxamente que o faziam de forma não intencional – simplesmente não sabiam usar o fogo corretamente (como se falasse de crianças de três anos de idade). E sejamos claros: Epifânio certamente não está a escrever alegoricamente, nem está a usar o termo "fogo" simbolicamente. Ele escreve “cozinhar as suas rações” e “queimar alguma lenha e arbustos”. Isso mostra que ele está a tratar o “fogo” como a força combustível, destrutiva e sensível que todos conhecemos. Nesse contexto muito real, ele escreve sobre os nazoreanos a incendiarem-se!

A passagem de Epifânio imediatamente traz à mente um famoso incidente do monge indiano que se incendiou na ágora ateniense cerca de 20 AEC. Estrabão (m. 24 EC) escreve sobre o auto-imolador em dois lugares. Num, identifica o seu nome, "Zarmanochegas" (Geographia xv.1.73). De Estrabão também aprendemos que Zarmanochegas era um gimnosofista. Gimnosofista significa "sábio nu" em grego, e o termo refere-se especificamente aos ascetas da Índia.

Na outra passagem, Estrabão escreve: “De um lugar na Índia, e de um rei, a saber, Pandion, ou, de acordo com outros, Porus, presentes e embaixadas foram enviados a Augusto César. Com os embaixadores veio o gimnosofista indiano, que se entregou às chamas em Atenas, como Calanus, que exibiu o mesmo espetáculo na presença de Alexandre”. (Geographia xv.i.4). Calanus era outro gimnosofista famoso, um dos muitos professores de Alexandre, o Grande, que, ainda no séquito de Alexandre, se imolou em Susa em 323 AEC.

Porfírio (final III CE) dividiu os gimnosofistas em dois grupos: brâmanes (sacerdotes védicos) e Samanaioi. O último termo assinala monges budistas. Em Pâli (a linguagem dos primeiros textos budistas), o singular masculino é Samano. Para o meu ouvido, isso é suspeitamente semelhante ao "Zarmano".

Em qualquer caso, quando ligamos os pontos (como faremos periodicamente), a conclusão é inescapável: Epifânio está claramente a indicar (sem querer, é claro) que os nazoreanos "pré-cristãos" estavam de alguma forma relacionados aos monges indianos!

Como que a cavar industriosamente a sua própria sepultura, Epifânio alarga-se ainda mais:

Mas, além disso, como eu indiquei, todos chamavam os cristãos nazoreanos, como dizem ao acusar o apóstolo Paulo: “Achamos este homem um homem pestilento e um pervertedor do povo, um líder da seita dos nazoreanos” [ Atos 24: 5]. E o santo apóstolo não negou o nome – não para professar a seita Nazoraeana, mas ele estava contente de possuir o nome que a malícia de seus adversários aplicou a ele por causa de Cristo. Pois ele diz no tribunal: “Não me acharam no templo falando com alguém, nem amotinando o povo nas sinagogas, nem na cidade. Nem tampouco podem provar as coisas de que agora me acusam. Mas confesso-te isto que, conforme aquele caminho que chamam seita, assim sirvo ao Deus de nossos pais, crendo tudo quanto está escrito na lei e nos profetas", [Atos 24: 12–14].

E não é de admirar que o apóstolo tenha admitido ser um nazoreano! Naqueles dias, todos chamavam isso aos cristãos por causa da cidade de Nazaré – não havia outro uso do nome naquela época. As pessoas assim deram o nome de “nazoraeanos” aos crentes em Cristo, dos quais está escrito: “Ele será chamado nazoreano” [Mt 2:23; Pan 29.6.2-5].

Aqui, então, Epifânio deriva o termo "nazoreano" da povoação de Nazaré. (tosse-tosse) Deixando de lado a questão da não-existência de Nazaré na virada da era, no entanto, além de Epifânio, não temos nenhum registro de residentes desse augusto povoado a incendiar-se! O que quer dizer: Epifânio não forneceu à posteridade a melhor explicação para a derivação de “nazoraeanos”. Por isso, teremos que procurar noutro lado.

Epifânio logo volta ao seu ponto original: os primeiros cristãos não tinham associação nem com “Nazaré” nem com “nazoreanos”. Eles eram puramente seguidores de Jesus: “Assim, os discípulos sagrados de Cristo se chamavam 'discípulos de Jesus', como de facto eram. Mas eles não se tornavam rudes quando outros lhes chamavam nazoreanos... ” (Pan 29.29.6.7). Isso diz-nos que “nazoreano” era uma denominação herética, aposta aos “santos discípulos” por outros e meramente tolerada. Eventualmente, colou porque "nosso Senhor Jesus foi chamado de 'o Nazoreano'" (Pan. 29.6.7). Não incomoda minimamente Epifânio que "nosso Senhor Jesus" fosse conhecido por um nome herético! Em qualquer caso, notamos mais uma vez que os primeiros cristãos não eram discípulos de Jesus “de Nazaré”, de Jesus “o Nazareno”, ou mesmo de Jesus “o Nazoreano”. Eles eram simplesmente discípulos de Jesus.

A questão agora surge: O que significa “Jesus” para os cristãos pré-antioquinos? Arriscaremos uma resposta em posts subsequentes, pois o Dr. Detering abordará essa importante questão no seu artigo.


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