Que surpresa, Bernie Sanders afinal tinha razão!

Andrew Mitrovica

Escritor, colaborador da Al Jazeera em Toronto.

Traduzo e publico o artigo de opinião para informação; não me comprometo com o pensamento político do autor. (Nota de Carlos Cabanita)

Artigo publicado na Al Jazeera English

Um aparato político e económico preparado para enriquecer uns poucos, às custas dos muitos, estivera sempre destinado ao colapso.

Oh que ironia!

Confrontado com uma pandemia que mata a economia, é notável que um monte de políticos alarmados do Ocidente tenha encontrado muito dinheiro para tentar ressuscitar as suas folhas de balanço sustentadas no mercado, subitamente internadas nos cuidados intensivos.

Tudo somado, injetaram biliões* (triliões) de dólares nesse esforço frenético; dinheiro que sempre insistiram que não tinham e não podiam gastar para ajudar as pessoas, que afirmam — com graus variados de sinceridade — agora estão determinados em ajudar.

Hoje em dia, esses capitalistas duros como o aço tornaram-se quase socialistas e fac-símiles relutantes de Bernie Sanders — quer estejam preparados para o admitir quer não.

O incansável senador de Vermont sempre soube que o dinheiro estava lá para ajudar as pessoas que precisam de ajuda e sempre esteve preparado para gastá-lo com esse fim — muito antes de um vírus letal começar a obliterar o esquema em pirâmide da economia dos Estados Unidos com a ferocidade de um tornado.

O senador Bernie Sanders anuncia que suspende a sua campanha pela nomeação presidencial democrata, numa transmissão ao vivo em 8 de abril de 2020
[Campanha / Divulgação via Reuters]

Sanders e os seus projetos humanos para iniciar a reforma há muito esperada da infraestrutura política e económica existente, para ajudar as pessoas que precisam de ajuda, foram descartados pelo complexo industrial neoliberal como reflexões fantásticas de um cuco socialista que continuava a vender o impossível.

Bem, o impossível tornou-se milagrosamente possível. A fantasia, em parte, tornou-se real. Os especialistas e políticos que compõem o complexo industrial neoliberal, e que nos disseram que gastar muito dinheiro para ajudar as pessoas que precisam de ajuda era "louco, louco, louco", ultimamente têm gritado "gasta, gasta, gasta", como os "cucos" socialistas democráticos que ridicularizaram antes.

Sanders pode ter desistido da corrida para se tornar presidente, mas a receita clara e transformadora que definiu a sua carreira política e as suas duas campanhas improváveis ​​e revigorantes para presidente — que o governo deve usar a sua riqueza para ajudar pessoas que precisam de ajuda — não só foi adotado pelo complexo industrial neoliberal como, suspeito eu, se tornará o princípio definidor do governo no futuro próximo.

Certamente, Sanders pode obter uma boa dose de crédito por isso — independentemente dos neoliberais presunçosos e catastroficamente errados reconhecerem que o seu inimigo ideológico, desagradável e teimoso, esteve sempre certo, nessa questão seminal.

Na falta disso, Sanders será, sem dúvida, aplaudido pelos comentadores amigos do mercado-que-tem-sempre-razão por reconhecer tardiamente que o "seu caminho" para a nomeação democrata tinha "fechado" e, como resultado, finalmente fazer a coisa certa, pelas razões certas, na hora certa.

Outros podem até oferecer as patacoadas do costume para descrever a sua decisão de conceder, na verdade, a nomeação a esse outro membro encartado do complexo industrial neoliberal, Joe Biden, como "graciosa" ou "digna".

Não se deixem enganar pelas expressões ocas de magnanimidade. Esses são, lembrem-se, praticamente os mesmos negadores que gastaram tanto tempo e espaço azedo, na TV e em artigos, pintando uma caricatura absurda de Sanders como velho irritado e obstinado que representava uma ameaça existencial à economia "próspera" dos EUA.

Há quatro anos, Hillary Clinton era a escolha previsível do complexo industrial neoliberal. Ela era mais do que aceitável, pois contentava-se em reciclar a cansada linha-padrão de "abordar" as desigualdades "persistentes" prevalecentes nos EUA.

Clinton era a candidata do status quo, num momento em que o status quo estava a ser enfaticamente rejeitado por tantos norte-americanos** deixados à deriva. Sanders entendeu esse zeitgeist. Clinton não, e pagou por isso.

No final, apesar das choramingadelas incessantes dos progressistas a dar para o centrista, Clinton não conseguiu nem sequer derrotar um narcisista inepto onde e quando contava — no colégio eleitoral, em 8 de novembro de 2016.

Em vez de admitir que Clinton e companhia eram culpados de negligência política quase criminosa, os seus aliados apontaram um dedo acusador ao único candidato democrata capaz de construir um movimento que, à escala nacional, capturou e aproveitou a inquietude da época, porque, disseram, não se apressou a apoiar Clinton com a rapidez suficiente. Faz sentido...

Sanders alertou os norte-americanos, e qualquer pessoa que se preocupasse em ouvir-lo, que o aparato político e económico do país — onde poder e riqueza são investidos em poucos à custa dos muitos — era profunda e irreversivelmente danoso e, em última análise, insustentável.

A vasta e arreigada desigualdade que Sanders procurou remediar não apenas retoricamente, mas de formas concretas e tangíveis, está a desenrolar-se tragicamente, à medida que o COVID-19 cobra o seu preço humano implacável nos EUA.

Somente em Chicago, as minorias pobres com pouco ou nenhum acesso aos cuidados de saúde, não só foram contagiadas pelo vírus em números chocantemente desproporcionais, mas sucumbiram à doença em números igualmente chocantes e desproporcionais.

Sanders também alertou que um aparato político e económico criado para continuar a enriquecer os ricos à custa dos muitos não era apenas insustentável, mas estava destinado ao colapso.

Acontece que Sanders estava certo nesse aspeto também.

Por décadas, Sanders instou os norte-americanos a trabalharem juntos para construir uma nação mais justa, onde os dividendos da prosperidade seriam compartilhados por todos, e não pelos poucos que controlam a maior parte da imensa riqueza do país. Essa mensagem poderosa e igualitária ressoou em milhões de norte-americanos em 2016, como em 2020.

É uma pena profunda que Sanders, um homem transparentemente dedicado, honesto e honrado, seja incapaz de liderar essa nobre empresa como comandante-em-chefe. Ainda assim, tentou. Isso é mais do que os seus detratores mesquinhos e olvidáveis podem dizer.

Os EUA estão à beira de um precipício perigoso. São liderados por um presidente que mente e reescreve a história com a facilidade de um autoritário.

Quando esta pandemia passar e a contabilidade necessária tiver lugar, é provável que milhares de norte-americanos tenham morrido devido à manifestação da incompetência e negligência de um homem: Donald Trump.

Ele deve ser batido em novembro. Para fazer isto, Biden precisará de forjar um esforço genuíno para alistar Sanders e os seus apoiantes como parceiros para formar um novo Partido Democrata, que dispense a hipérbole desonesta sobre justiça e igualdade e, em vez disso, se comprometa a tornar a justiça e a igualdade o núcleo, os princípios dominantes de uma Administração Biden.

Caso contrário, Biden repetirá o destino ignominioso de Hillary Clinton, enquanto inúmeros norte-americanos sofrerão o trauma desfigurante de Trump por mais quatro anos.


* Nos EUA um bilião corresponde a mil milhões na Europa (1×109); um trilião a um milhão de milhões (1×1012); na Europa o bilião corresponde a um milhão de milhões (1×1012). Ou seja, a série milhões, biliões, triliões progride em múltiplos do milhão na Europa e em múltiplos de mil nos EUA.

** Traduzi sempre americano por norte-americano, porque acho abusivo os cidadãos dos EUA arrogarem-se o direito de só eles serem os naturais das Américas. Mesmo norte-americano deveria ser partilhado com canadianos e mexicanos, mas acabo por usar o termo, geralmente entendido com referido aos cidadãos dos EUA.

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