Os chineses comem realmente morcegos?

Guia para principiantes sobre a sobrevivência à praga, parte 5 — Osten Cramer

O verdadeiro comércio de animais silvestres não é o que se pensa e podemos fazer parte dele sem perceber. Tradução da opinião do antropólogo Osten Cramer, que tem estudado o comércio de animais selvagens na China e arredores, no seu mural do Facebook.

Olá, gente. Ainda estou a recuperar, mas acontece que tenho que ir com calma. Esperava fazer um post por dia, mas ainda parece um pouco fora do meu alcance. Mas a dinâmica social dessa pandemia ainda é fascinante, ainda estou em quarentena e ainda estou a pensar em como os antropólogos podem contribuir para entender a pandemia e, já que a minha pesquisa é sobre o comércio da vida selvagem, muitos me têm me pedindo para criar este post. Aqui vamos nós! É hora de falar sobre o comércio real de vida selvagem na Ásia e alhures. Não se trata exatamente da doença, mas de muitos dos preconceitos que as pessoas têm sobre a origem do vírus.

CORREÇÃO: Antes de ler isto, quero que todos considerem mudar a forma como enquadram a pergunta. Muitos perguntam "Os chineses comem animais selvagens?" mas ninguém está em posição de responder a uma pergunta de tão grande escala. Em vez disso, vamos pôr a questão: "Conheço algum chinês que comeu X?" A resposta pode ser sim, mas este nível de especificidade — exatamente quem, onde e porque está isto a acontecer é importante.

É fácil formar opiniões sobre grandes grupos de pessoas com base em inferências gerais que parecem lógicas. Mas quanto mais conhecemos as pessoas, mais estes pressupostos são derrubados. E este é o ponto exato deste post. Assim, eu adoraria conversar com alguém sobre o que pode ter visto ou experimentado, ou ter sido informado por pessoas que conhecem, mas, por favor, entenda que, sem um contexto para a experiência pessoal, estamos inevitavelmente a filtrar detalhes seletivos sobre a China através de uma lente baseada nas nossas próprias expectativas.

Pus essa sugestão aqui agora, porque estas publicações estão a ser compartilhadas bem para lá da minha capacidade de interagir com todos os comentadores, e gostaria que refletissem sobre essa questão, mesmo que eu não esteja lá para a pôr.

Os médicos tratam a doença. Eu não sou um deles. Os cientistas pesquisam o vírus. Também não sou um deles. Mas toda a pandemia também é um fenómeno social. A maneira como reagimos a ela, a forma como a divulgamos e a forma como falamos sobre ela são moldadas por forças culturais e sociais. E como antropólogo, sinto-me numa posição única para ajudar a contribuir para a compreensão desse aspeto da doença.

Para quem não me conhece (sinta-se à vontade para partilhar!) Eu sou um antropólogo trabalhando na minha dissertação, que envolve o comércio de animais bravos no Nepal, China e em todo o mundo. Eu preferia estar em Dolpo1 agora, fazendo o rastreio de leopardos da neve, mas estou em casa em Seattle, doente e em quarentena. Antes do meu projeto atual, escrevi uma tese de mestrado sobre formas e mercados globais de comida chinesa e passei a melhor metade da minha vida adulta a viver na China.

Quando se trata de pandemias, este não é o meu primeiro carnaval. Vivi quatro pandemias ou quase pandemias: a SARS em 2002-3, a gripe aviária H5N1 em 2006, a gripe suína H1N1 em 2009 e agora a COVID-19 em 2020. Dessas quatro, na verdade adoeci com SARS, H1N1, e COVID-19.

No último post, falei sobre os mercados húmidos, como a doença provavelmente não começou por aí e como os mercados húmidos vendem principalmente peixes, não animais exóticos. No entanto, muitas perguntas ainda persistem. Como alguém que viveu na China, a ideia de que o povo chinês está constantemente a comer morcegos e pangolins, e é por isto que as doenças se espalham da China é risível. Mas rir da desinformação na Internet não é muito eficaz, e a maioria de vocês não teve a ocasião de viver na China como eu. Por isso, quero esclarecer mais a realidade do comércio da vida selvagem. E isto é importante, porque este comércio não é apenas impulsionado pelo povo chinês — é uma questão global e precisamos de fazer a nossa parte.

E aperte o cinto, porque este post é longo.

Pode-se contrair a doença por comer um morcego? (não)

A primeira coisa que precisamos abordar é um equívoco comum que se vê nas redes sociais, e entre os membros republicanos do Congresso dos EUA, de que esta doença surgiu na China porque o povo chinês come morcegos, ratos, gatos e cães. Existem versões mais subtis desse argumento, mas vamos começar pela forma mais simples: pode-se apanhar o vírus por comer um morcego?

A resposta é não.

O Covid-19 não é uma forma de intoxicação alimentar. É uma infeção respiratória. Eu refiro-me mais nos meus posts anteriores sobre como se espalha exatamente, mas basicamente, não vem da carne. Apanha-se por respirar o ar que outra pessoa expirou ou por tocar em algo sobre que expirou. Também se pode apanhar por respirar o ar contaminado por fezes de animais. Isto pode acontecer se se estiver próximo de animais selvagens, mas não se estiverem mortos.

A maioria dos nossos procedimentos de segurança alimentar foi projetada para a contaminação bacteriana, porque as bactérias causam a maioria das formas de intoxicação alimentar. E-Coli, botulismo, salmonela, febre tifóide, cólera, Vibrio e tifo são todos causados ​​por bactérias. O problema é que as precauções que costumamos tomar para nos proteger contra doenças bacterianas não nos protegem contra vírus. Se pensamos num vírus como uma bactéria, faremos tudo errado.

Fui informado de que a criação de morcegos para consumo pode levar à exposição a matéria fecal que pode contaminar o ar. Portanto, há uma pequena hipótese de que, se andarmos a abater morcegos sem precauções, possamos contrair a doença. No entanto, a maioria dos virologistas com quem conversei acredita que é muitíssimo mais provável que a exposição constante a morcegos que vivem em áreas urbanas seja a melhor explicação da sua disseminação nas populações urbanas.

Mas não vivem nos mercados animais que espalham a doença? (sim)

Este argumento é mais matizado, e não está completamente errado. Mercados que mantêm grandes quantidades de animais vivos em gaiolas são definitivamente vetores de doenças. No entanto, estes mercados nem sempre são o que se pensa. Por exemplo, na última vez mencionei os Mercados de Pássaros e Flores, onde muitos animais são vendidos como animais de estimação, e os padrões de saneamento são mais baixos. Representam um grande risco para a saúde e parecem ter desempenhado um papel importante no surto de SARS de 2003. O comércio de animais exóticos é absolutamente mau, mas não é exclusivo da China. Por exemplo, na Florida. Basta ver o Tiger King2.

No entanto, não se vê muitos pássaros e mamíferos vivos nos mercados de alimentos na China. As razões, em parte, são práticas. Enquanto muitos chineses não se importam em matar e esquartejar um peixe no seu lava-loiças, matar e esquartejar um porco, um porco-espinho, uma vaca ou um morcego é muito mais difícil de fazer em casa, especialmente se se mora num apartamento. Confiem em mim, eu tentei. É por isto que a maioria das pessoas compra a sua carne aos talhantes, não viva. Os agricultores do interior compram animais vivos, tal como os agricultores em todo o lado, mas não se vê nenhum deles no meio de uma cidade grande como Wuhan.

A outra razão para isto é legal. Tanto o manter como o vender animais vivos são rigorosamente regulamentados na China e, embora a capacidade de fazer cumprir as leis no campo seja limitada, nas principais cidades, a polícia certamente daria por isso. Isso quer dizer que a maioria dos mercados de carne não tem animais vivos, enquanto os "Mercados Húmidos" podem ter vários animais vivos que podem ser mantidos em baldes de água, mas não muitos em gaiolas. Pode-se ver alguns animais em vários mercados húmidos que não se veria num supermercado norte-americano, mas quase sempre estão mortos, o que significa que não estão a espalhar o SARS-CoV-2. Também pode surpreender-nos descobrir como poucos desses animais são mesmo selvagens.

Mas a sério, os chineses comem morcegos? (talvez)

Essa é uma pergunta que muitas vezes ouço formulada como "porque é que os chineses não param de comer morcegos?" ou "os chineses têm de parar de comer morcegos!", e ambas as formas já presumem que o facto do povo chinês comer morcegos está fora de disputa. Mas se perguntarmos a um chinês "porque é que você não para de comer morcegos?", dez vezes em cada dez, a resposta será: "Eu não como morcegos. Isso é uma estupidez"

Mas as coisas não assim são tão simples. Viajei por toda a China por mais de uma década, vi centenas de mercados e conversei com milhares de chineses sobre comida e meio ambiente. Nunca conheci um chinês que comesse um morcego. Nem um. Mas, por outro lado, a maioria dos chineses com quem conversei acredita que outros na China comem mesmo morcegos e outros animais estranhos.

Claramente, comer morcegos não é comum. Se fosse, eu seria capaz de encontrar pelo menos uma pessoa. Eu nunca conheci um chinês cujo prato favorito fosse morcego. Nunca conheci um chinês cuja avó tenha uma ótima receita de morcego. Nunca estive num mercado com um chinês a dizer: "Esperem, onde está o morcego?" Comer morcegos na China é tão incomum como seria nos Estados Unidos, mas isto não significa que não aconteça, apenas que não é comum. E, ainda mais interessante, também é uma crença profundamente enraizada, não apenas entre os ocidentais, mas entre os próprios chineses, que as pessoas na China comem animais selvagens exóticos.

Para um antropólogo, é um aviso gigante a sugerir que há um trabalho importante a ser feito, para entender os contextos culturais que conduzem a essa aparente contradição. Assim, o objetivo real deste post é explorar o comércio real da vida selvagem, em palavras e ações, para descobrir o que está a acontecer.

Na minha própria pesquisa, cerca de metade das pessoas com quem conversei opõem-se firmemente a comer animais selvagens. Cerca de um quarto das pessoas com quem conversei afirmam ter comido algum tipo de animal selvagem pelo menos uma vez na vida. E só encontrei cerca de uma em cem que comeu mesmo algo em perigo ou ilegal. Os estudos académicos quantitativos refletem amplamente estes números, com a exceção de que eles descobriram que cerca de 4 a 5% dos entrevistados afirmam ter comido animais ameaçados de extinção, o que faz sentido, porque a minha pesquisa tende a ser entre pessoas que não teriam meios económicos de o fazer.

Mas estes dados podem ser enganosos. Se eu perguntar simplesmente a chineses se comeram animais selvagens ou ameaçados de extinção, as respostas que receberei podem não ser precisas, porque o meu entendimento dos termos pode não corresponder ao seu próprio entendimento. Portanto, a melhor solução é ser mais específico.

Alguns animais não são tão selvagens como se pensa

Vale a pena notar que estes números sobre comer animais selvagens são na verdade mais baixos do que o que encontrei nos EUA, embora isto possa ser distorcido com base nas pessoas com quem ando. Muitos norte-americanos comem carne silvestre, e não apenas caçadores, mas famílias e vizinhos de caçadores, e até clientes de matadouros artesanais locais e restaurantes da-quinta-para-a-mesa. Mas essas refeições nem sempre são tão selvagens como se pensa.

Quando os chineses dizem que comeram algo selvagem, geralmente não estão em posição de ter a certeza. O que querem realmente dizer é que comeram um animal que consideram selvagem. O atum, por exemplo, é um animal selvagem que quase todos nós já comemos, mas não pensamos nisso como "vida selvagem", em grande parte porque raramente pensamos nos corpos de água como selvagens.

Por outro lado, a maioria das pessoas, na China e nos EUA pensa nos veados como "selvagens" e, portanto, presume que comer carne de veado significa que estão a comer animais selvagens. No entanto, a verdade é que a maioria dos veados na China são criados em quintas.

Num mercado chinês, podemos encontrar muitas coisas incomuns para os padrões norte-americanos e, honestamente, até para os padrões chineses. Muitas vezes, quando converso com turistas norte-americanos na China, misturam "estranho" com "selvagem". Começam a falar sobre os mercados e restaurantes chineses estarem cheios de comida selvagem. Mas quando peço detalhes, normalmente citam coisas que na verdade não são selvagens. Por exemplo, línguas de pato, os pulmões de ovelhas e pés de porco não são incomuns nas diferentes cozinhas regionais da China, mas não são selvagens. São apenas cortes variados de carne de animais domesticados. A China é um país com grande memória da fome; assim, enquanto a maioria dos chineses da minha idade cresceu com refeições muito mais mundanas, os seus pais, que viveram o Grande Salto em Frente e a Revolução Cultural, frequentemente protestam que é horrível desperdiçar qualquer parte de um animal.

Outras vezes, existem animais aparentemente exóticos que as pessoas não conhecem o suficiente para identificar. Por exemplo, a sopa de tartaruga é bastante comum na China e podem ver-se tartarugas moles na maioria dos mercados húmidos. Muitas espécies de tartarugas marinhas na Ásia estão ameaçadas. Por exemplo, a tartaruga gigante de casca mole do rio Yangtzé (Rafetus swinhoei) está criticamente ameaçada, mas sabe-se que só há três indivíduos vivos, portanto você certamente não está a comer essa tartaruga. A tartaruga gigante asiática de casca mole (Pelochelys cantorii) está em perigo, e eu já as vi no comércio de animais selvagens, mas nunca num mercado ou restaurante. Colocar essa tartaruga no mercado negro custaria milhares de dólares, o que está muito fora do alcance de qualquer fornecedor num mercado húmido. Se não está a pagar milhares de dólares no mercado negro, a tartaruga que está a comer é provavelmente a tartaruga chinesa de casca mole (Pelodiscus sinensis), que é a tartaruga de criação mais comum na China e não faz parte do comércio de animais selvagens.

Vi um artigo em que um jornalista alegou ter visto um castor à venda num mercado "húmido", evidenciando que os mercados chineses estavam cheios de comida selvagem, ou pelo menos "estranha". Agora, o castor da Eurásia (Castor fiber) não está ameaçado, mas mantém-se na lista vermelha da IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza). No entanto, a subespécie de Castor fiber encontrada no leste da Ásia, o castor asiático (Castor fiber birulai), é extraordinariamente rara, com uma população de apenas algumas centenas, e estão apenas na bacia do rio Ulungur, na fronteira entre Xinjiang e Mongólia.

No entanto, se virmos um castor na China e não estamos numa expedição biológica às pradarias remotas, provavelmente estamos a olhar para um castor canadiano (Castor canadensis). Esses castores são caçados em armadilhas na América do Norte, principalmente pelas peles, carne e castóreo, que é usado como aroma artificial de baunilha que você provavelmente já comeu. Estes castores também são importados ou contrabandeados para a China, mas, como muitos aspetos do comércio de animais silvestres, na verdade a fonte desse comércio são os EUA e a China é um consumidor relativamente menor. Os castores também foram comidos regularmente no Canadá e no oeste americano, e foram comidos com tanto entusiasmo na Europa que quase foram levados à extinção na Idade Média, quando a Igreja Católica os considerou "peixes" e, portanto, apropriados para comer às as sextas-feiras e durante a Quaresma.

Tartaruga chinesa de casca mole (Pelodiscus sinensis)

Outro exemplo de animais que não são selvagens e não são chineses é a carne de jacaré. A maioria dos chineses não come jacaré. É certamente considerado "estranho" na China. Mas algumas pessoas gostam de tentar coisas estranhas. Isso é verdade em todo o lado. Os jacarés do Yangtzé (Alligator sinensis) nos rios da China já foram comuns, mas agora estão criticamente ameaçados. Restam apenas 32 adultos em estado selvagem, e podem ser menos desde a última vez que verifiquei. Então, ao ver, uma vez, uma dúzia de jacarés mortos empilhados num mercado, não foi difícil deduzir que este mercado não estava a vender quase metade da espécie de uma só vez.

Como não sou especialista em répteis, perguntei, e o comerciante disse-me orgulhosamente que os seus jacarés eram norte-americanos como eu, e que os tinha importado de uma quinta na Florida. Explicou que, além de não serem ilegais ou ameaçados de extinção, os jacarés americanos (Alligator mississippiensis) eram preferíveis porque, como a maioria dos americanos, eram maiores, mais gordos e produziam couro melhor. Portanto, ver jacarés num mercado pode parecer uma prova do comércio de animais silvestres, mas não é o que parece. Os jacarés são criados na América do Norte, e pode-se encontrar carne de jacaré na secção exótica dos congelados de muitos supermercados.

Com que frequência os chineses comem animais selvagens?

Frequentemente não. Obviamente, é impossível generalizar sobre um vasto país com mais de mil milhões de pessoas. A maioria dos chineses come um leque muito estreito de animais. Muitos comem apenas carne de porco e carpa. Frango, cordeiro e vaca também são comuns, mas há muitas pessoas que nem sequer as comem, por um motivo ou outro. Pato, ganso e coelho completam qualquer menu geral. Tartarugas, pombos e sapos, todos criados em fazendas, são tão exóticos que se encontram numa visita regular ao mercado.

As pessoas que comem mais carne silvestre estarão no campo, especialmente agricultores de subsistência e caçadores em comunidades remotas. Passei algum tempo a pesquisar com caçadores Hmong na província de Guizhou, e a caça é uma parte importante da sua cultura. Mas a caça não é abundante. A maior parte do que caçam são esquilos, porcos bravos e galinhas bravas. A caça pela carne prejudica espécies ameaçadas de extinção em muitos sítios, especialmente no Sueste Asiático, mas não é isto que se vê nos mercados; é caçada e consumida no local. Mais importante ainda, não faz parte da dieta chinesa normal ou da cultura culinária chinesa. Em geral, recorrer a animais selvagens para alimentação é visto como uma privação, e enquanto muitos chineses sabem como é comer não importa o quê para sobreviver, a maioria orgulha-se mais de um prato de barriga de porco braseada do de que esquilos ou pardais.

Mercado húmido em Guangdong

Muitos chineses com mais de quarenta anos podem muito bem ter crescido a comer animais selvagens durante a fome, mas outros já os comeram em raras ocasiões, por curiosidade ou por desafio. O caso mais comum é uma proeza para alardear masculinidade a que já assisti por toda a Ásia, onde o coração de uma cobra é metido num copo de bebida e se é desafiado a beber. Até ouvi falar de uma coisa assim usada em praxes nas forças especiais tailandesas. Mais uma vez, muitas dessas cobras são criadas em quintas, e principalmente para o couro, mas não é incomum encontrar um indivíduo chinês que confesse ter feito isto num desafio — muitas vezes mais envergonhado que orgulhoso. Dirá que consumiu animais bravos (tanto quanto sabe), mas isso não se pode ser considerar comê-los regularmente, assim como não consideramos o que se come no reality show Fear Factor como parte da dieta comum.

Tudo isto me lembra uma discussão que tive com alguns de meus alunos em 2006. Na época, houve um surto de encefalopatia espongiforme bovina (doença das vacas loucas) e o Japão tinha acabado de proibir que a carne americana fosse importada, devido a preocupações com o assunto. Os meus alunos eram categóricos que não era de surpreender que os Estados Unidos tivessem um surto dessa doença, porque tinham visto programas de viagens na televisão, onde os concorrentes viajavam para Montana e comiam "Ostras da Montanha Rochosa" (túbaros de boi), o que os chocava. Eles queriam saber porque é que os norte-americanos insistiam em comer testículos de touros, apesar de haver uma doença grave, e tinham a certeza que a prática de comer os órgãos sexuais do gado era parte do que causou o surto. Tentei explicar-lhes que isto não era normal para a maioria dos norte-americanos e, de qualquer maneira, não foi assim que a doença se espalhou, e que não houve casos em humanos. Mas eles não acreditaram em mim. Eles acreditaram no que viram na TV e no que ouviram de outros chineses. Agora o sapato está no outro pé, suponho?

Então, por que todos pensam que as pessoas comem animais selvagens?

A pergunta mais interessante para mim é, porque é que toda a gente na China tem tanta certeza de que outros andam a comer animais selvagens, mesmo que eles próprios nunca comam. Assim, eu perguntei. A resposta mais comum é: "Entre 1,5 mil milhões de pessoas, encontrará-se-á sempre pelo menos uma pessoa que faça não importa o quê." Outros salientaram que os imperadores chineses banqueteavam-se com animais exóticos e alguns dos ultra-ricos de hoje tentam imitar velhos excessos imperiais, o que em breve irei abordar. Mas as respostas mais interessantes são as que revelam os complexos estereótipos étnicos e regionais que existem na China.

Enquanto os ocidentais certamente orientalizam a China, não são os únicos. A China é uma sociedade multicultural complexa. Sempre que se reúne uma quantidade de pessoas diferentes, os estereótipos costumam surgir e, na China, estes estereótipos seguem uma linha ténue entre o humor e o sério. Por exemplo, há uma grande piada que diz que as pessoas de Guangdong comem qualquer coisa com asas, exceto um avião, e qualquer coisa com pernas, exceto a mesa.

E até ouvi essa piada do povo cantonês. Mas quando pergunto que tipo de coisa louca é que eles pessoalmente comeram, rapidamente recuam e explicam que eles pessoalmente não comem nada de especial, estavam só a brincar com como são os cantoneses e não queriam ofender. É assim que os estereótipos são — são divertidos e inofensivos, até que alguém seja considerado culpado por uma pandemia global. (A propósito, Guangdong está a milhares de quilómetros de Wuhan e não teve nada a ver com o surgimento do Covid-19, até onde sabemos. O fato de a os meios de comunicação usarem imagens dos mercados de Guangdong para artigos sobre Wuhan é um pouco como se um jornal usasse uma foto de palmeiras na Florida para um artigo sobre o Missouri.)

Outras vezes, os estereótipos são étnicos. Isto geralmente anda à volta de acusações de comer cão. Até agora, muitos de vocês já devem ter ouvido falar do festival Yulin Dog Meat, na província de Guilin. Os meios de comunicação globais, celebridades de destaque e a maioria dos chineses que conheço ficam regularmente indignados com este festival supostamente "tradicional". No entanto, há menos aqui do que parece.

O festival não é uma tradição. Foi elaborado por promotores que procuravam causar controvérsia e atrair atenção. Muitas vezes, põem à venda cães em gaiolas por dez vezes o preço, para que o público tente poupá-los à panela. Este golpe não é invulgar na China. Outras vezes, estes sensacionalistas matam e cozinham mesmo cães, mas as pessoas a quem os servem não são locais famintos. São turistas. Tudo aquilo foi produzido para maximizar o dinheiro do turista, vendendo carne de cão para machistas que se querem gabar de comer algo polémico e vendendo cães vivos a turistas compassivos que querem salvá-los.

Mas se o teatro da barbárie é a parte mais obviamente perturbadora do festival, a parte mais insidiosa é o racismo. Note-se, estes promotores não são locais e não são zhuang, hmong ou dong. São empresários han que vieram ao sul para criar este espetáculo étnico falso para alimentar os estereótipos dos turistas.

No norte da China, muitos encaram os grupos étnicos do sul com uma mistura de fascínio exótico e suspeita escandalizada. Existem lendas urbanas dos hmong fazerem venenos poderosos, ou os yi treinarem cobras venenosas como instrumentos de assassínio. Nada disso é verdade. Ouvi um pai em Pequim dizer a uma criança que passeava o cão para segurar a trela com força, porque se deixasse o cão fugir, o povo Hmong apanhava-o e levava-o para o sul para o comer. Tudo isto é meio a brincar, mas alguns acreditam que as piadas são reais. E este foi um ponto importante de indignação entre os hmong que estudei, cujos cães de caça eram não só animais de estimação amados, mas também dificilmente entrariam pacificamente na panela. Quem se dispuser lutar com um cão que pode matar um javali, é mais corajoso que eu.

Portanto, uma das principais razões pelas quais muitos chineses continuam convencidos de que alguém, nalgum sítio, anda a comer animais exóticos é por causa de estereótipos raciais. E essas suspeitas tornam-se profecias auto-realizadas, quando os turistas chineses aparecem nas montanhas e mercados do sul a exigir animais exóticos que acham que os habitantes comem. E os turistas chineses não são os únicos a propulsionar este setor. Os turistas norte-americanos e europeus são igualmente culpados, porque aderem aos mesmos espetáculos e estereótipos falsos.

Come o rico antes que ele te coma

No entanto, todos estes exemplos dizem respeito a animais relativamente banais. Os turistas não comem espécies ameaçadas — não têm as ligações ou o dinheiro. O comércio real da vida selvagem envolve os ultra-ricos.

A China tem uma longa história de consumo ostentatório. A cozinha imperial envolvia vários pratos exóticos, apenas comidos para provar que os clientes eram tão ricos que podiam pagar algo tão extraordinário. Isso não é exclusivo da China. Os reis franceses (e, mais recentemente, François Mitterrand) comiam pássaros em extinção, afogados em brandy. Os industriais americanos do século XIX decoravam os seus escritórios com pés de elefante e peles de tigre. São mesmo típicos da China, França ou América e dos seu povos? Não. São típicos de uma classe global de pessoas ultra-ricas que procuram troféus exóticos para competir entre si.

Estas pessoas são um problema, mas não são um problema chinês. São um problema global. O comércio de vida selvagem é uma indústria extrativa. A razão pela qual se pode encontrar mercados negros que traficam animais exóticos na China é porque a China é onde se encontram os animais, não porque os chineses sejam os únicos que os compram. Já vi compradores no comércio de animais selvagens oriundos do Japão, Singapura, Rússia, França, Nigéria, África do Sul, Brasil e, claro, dos EUA.

Este consumo ostentatório também está na raiz do comércio de "medicamentos". A Medicina Tradicional Chinesa usa prescrições de ervas para equilibrar elementos e energias no corpo. Por exemplo, a quem sente o corpo muito frio, um médico da MTC pode dizer que precisa de um tónico para aumentar a sua energia yang. Normalmente, prescrevem algo como gengibre ou ginseng para aquecer. O comércio de ginseng tem algumas consequências ecológicas, mas não é o maior problema que enfrentamos.

Coisas exóticas como o chifre de rinoceronte, por outro lado, não fazem parte da Medicina Tradicional Chinesa. São uma parte da afluência tradicional chinesa. Mais uma vez, as pessoas ricas à procura de troféus exóticos geralmente tentam tratamentos médicos com pouca justificação. Não é preciso ser Sigmund Freud para entender porque é que há pessoas ricas que pensam que um chifre de rinoceronte os ajudará a ter um melhor desempenho na cama. Outras espécies exóticas, como os pangolins, fazem parte de uma extravagância semelhante. A garra de urso, os pangolins, os morcegos voadores e outros animais exóticos (geralmente nem sequer encontrados na China) não fazem parte da medicina chinesa normal, mas são populares como troféus exóticos para os ricos, e as pessoas costumam fazer alegações não médicas estranhas, como que comer as asas de um morcego raposa voadora fará a mulher dar à luz uma criança fadada a obter grande riqueza, ou comer um feto de pangolim seco exorcizará fantasmas e demónios de casa.

Como as peles, os remédios e as iguarias transgressivas, o comércio de animais silvestres na China é um problema. Mas ocorre no mercado negro, fora da vista, não nos mercados húmidos. Os seus clientes são as elites ricas, não as pessoas comuns. E essas elites vêm de todo o mundo, não apenas da China.

E é por isto que as pessoas estão a culpar os mercados húmidos. Fazem vista grossa ao comércio real de vida selvagem e, em vez disso, tentam concentrar a nossa cólera nas pessoas pobres que nada têm a ver com isto. Enquanto acharmos que o comércio de animais silvestres é um problema "chinês", continuaremos a não conseguir parar ou até mesmo retardá-lo. Honestamente, existem muito poucos casos em que pessoas ricas sejam processadas por tráfico de vida selvagem. Às vezes, os pobres contratados para coletar ou contrabandear peças de animais são presos, mas os compradores e vendedores permanecem seguros. E até mudarmos isto e desafiarmos os clientes ricos que alimentam este comércio, somos todos cúmplices no comércio de animais silvestres.


Zona remota e inacessível do Nepal.

Filme-documentário sobre um crime real entre criadores, zoos e traficantes de tigres na Florida.

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