América Latina: a pandemia soma-se a outras crises

Quarta-feira, 8 de abril de 2020 — Tradução de uma entrevista de Vittorio de Filippis a Pierre Salama no site Europe Solidaire sans Frontières.

Para o economista e pesquisador do Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS) Pierre Salama, a epidemia do novo coronavírus vai enfraquecer economias já vulneráveis ​​devido às novas formas adotadas pela globalização, a saber, o rompimento internacional da cadeia de valor da produção. Acredita que a pandemia, além dos seus efeitos na saúde e na vulnerabilidade dos mais fracos, multiplicará as muitas crises que já afetavam a maioria dos países do continente.

Vittorio De Filippis —A pandemia está a causar uma crise de escala sem precedentes no mundo: em toda parte a produção afunda-se, o desemprego aumenta, os rendimentos caem. O que acha das respostas dadas até agora?

Pierre Salama —O que vemos no futuro imediato são por vezes governos que intervêm fortemente, derrubando os princípios sagrados aos quais estavam ligados ainda ontem. O mesmo ocorre com o tamanho dos défices públicos, o apoio parcial ao desemprego pelos Estados, possíveis nacionalizações em setores considerados estratégicos... E amanhã, provavelmente, esses governos que ontem ainda eram adeptos de uma intervenção de importância cada vez menor do Estado na economia e do alinhamento dos serviços públicos pelas regras do mercado, aceitarão derrogar estas regras e pensarão em redefinir as fronteiras entre o mercado e o Estado a fim de recuperar um mínimo de soberania sanitária, ou ainda mais alargadamente industrial, se, de qualquer modo, formos capazes lhes fazer recordar isso. Estamos diante de uma crise manifesta da globalização.

A ironia da história é que a crise da globalização chegou quando nenhum economista, sociólogo ou político a previra?

Nenhum. Mesmo que algumas pessoas já estejam tentar fingir que a tinham previsto. É certo que, sejam eles da direita, muitas vezes extremos, ou da esquerda, houve muitos críticos da globalização. Alguns, propondo a sua conceção de nação, defendiam um retorno ao protecionismo que, às vezes, podia parecer-se com a autarcia. Outros, principalmente da esquerda e das fileiras ecologistas, defenderam um alterglobalismo, recusar as fronteiras, buscar a cooperação entre estados para impor padrões éticos muito mais rigorosos (como trabalho decente) e ambientais. Mas ninguém poderia pensar que as novas formas adotadas pela globalização, ou seja, o colapso internacional da cadeia de valor da produção, poderiam enfraquecer as várias economias a ponto de torná-las extremamente vulneráveis.

Os teóricos do caos mostraram que o bater das asas de uma borboleta poderia causar um colapso do outro lado da Terra, e que essa espada de Dâmocles poderia cair a qualquer momento e causar desastres...

Sim. Além disso, esta tese, que é aplicada, por exemplo, à finança, nunca foi aplicada à globalização. Foi só necessária uma pandemia para o atual sistema económico entrar em colapso de uma só vez, com efeitos em cadeia a alimentar-se uns aos outros. A incapacidade de fornecer segmentos de produtos de uma cadeia de valor internacional, dispersa à mercê dos baixos custos do trabalho, resulta, noutros lados, ou seja, noutros países, em paragens da produção mais ou menos importantes, no aumento do desemprego e, consequentemente, na queda da procura, a qual precipita uma depressão económica. Essa agitação das asas da borboleta revela, acima de tudo, que a desindustrialização, a simetria dessa globalização, a considerável perda de soberania, notavelmente e sobretudo na indústria farmacêutica, não se traduz apenas em custos financeiros, mas sobretudo num monte de mortos.

Como é que esta crise se arrisca a afetar os países da América Latina?

Esses países estão passar por várias crises ao mesmo tempo, que se alimentam umas às outras. A crise é profunda. É estrutural, pois põe em causa os próprios modos de expansão do capitalismo nas últimas décadas. Na América Latina, a crise da pandemia é adicionada a outras crises latentes ou presentes. A mistura é ainda mais explosiva, pois vários governos parecem não ter medido a extensão do perigo, ao não adotar políticas económicas “anticíclicas” [estímulo orçamental], à medida do evento, ou mesmo reduzindo os perigos. "Um amuleto pode servir de cura para a pandemia", disse o presidente do México. "Uma gripezinha" para o presidente do Brasil, argumentando com os seus próprios ministros para que não implementem medidas que possam derrubar a economia.

A crise não teria então só uma dimensão?

Não. Além disso, ela não chega a um "corpo saudável" pronto para recuperar após a pandemia ter passado. Primeiro, quase todos os países da região, e especialmente os maiores e mais poderosos deles, Argentina, Brasil e México, sofrem de uma tendência de taxas de crescimento estagnadas. A taxa de crescimento do PIB per capita foi de apenas 0,8% em média por ano entre 1983 e 2017, muito menor do que a dos Estados Unidos no mesmo período. E isso por várias razões: desigualdades muito acentuadas dos rendimentos e da riqueza, desindustrialização mais ou menos forte ligada à concentração de exportações de matérias-primas, principalmente agrícolas no caso da Argentina (soja), mais diversificadas no Brasil e Peru. O México, fora o petróleo, em crise, exporta muito poucas matérias-primas, mas mais produtos industriais montados. Mais aberto que outros países, não tirou daí nenhum benefício em termos de crescimento, pelo contrário; e a sua indústria, voltada para o mercado interno, está a enfraquecer cada vez mais. Esses países têm baixas taxas de investimento —entre 16% e 20 por ano — na sequência de comportamentos rentistas ​​cada vez mais pronunciados, financialização excessiva da sua economia, fuga de capitais, especialmente na Argentina, e gastos em pesquisa e desenvolvimento reduzidos aos adquiridos (entre 0,5% e 1,1% do PIB). Além disso, alguns destes países sofrem com uma profunda crise económica, associada à inflação que se tornou mais ou menos incontrolável (Venezuela, Argentina), incapacidade de recuperar após o fim da crise (Brasil), uma recessão (México), desaceleração da atividade económica (Colômbia). Por fim, a forte queda no preço das matérias-primas exportadas terá impactos negativos na maioria desses países.

As repercussões dessa crise da globalização nessas economias relativamente fechadas nestes países podem ser mitigadas?

Não será esse o caso, porque as repercussões da crise vêm da nova divisão internacional do trabalho, baseada, para a maioria desses países, na exploração dos seus recursos naturais. A queda no preço das matérias-primas, acentuada pela crise — as vendas à China baixaram —, mas também no que diz respeito ao petróleo, pelas estratégias seguidas pela Rússia e pela Arábia Saudita em relação aos Estados Unidos, que se tornaram exportadores líquidos de petróleo, reduz bastante a capacidade de exportação de muitos países da América Latina. Alguns desses países sofrerão quedas acentuadas nas suas receitas fiscais, devido ao declínio nas exportações de matérias-primas, somada à queda nos preços mundiais. Isso poderia levar a uma crise fiscal, reduzindo mais ainda a sua capacidade orçamental para responder à crise económica e social.

A crise devida à pandemia tem por vetor a globalização. Enxerta-se num tecido económico extremamente fraco. As primeiras vítimas são as mais pobres...

A informalidade (70% na Bolívia, 63% no Peru, 47% no Brasil) e a pobreza continuam muito altas na América Latina. Na Argentina, o setor informal atinge 50% das pessoas. Nos últimos anos, a informalidade e a pobreza tenderam a aumentar novamente, principalmente no Brasil e na Argentina. O acesso aos cuidados, muitas vezes, está ligado ao nível de rendimento. Como observam vários sociólogos e médicos, os pobres doentes não podem pagar ou sequer ter tempo para ir ao hospital. Muitas pessoas morrem em casa ou à porta do hospital. Muitas vezes, é impossível impor quarentena nas favelas mais miseráveis ​​(13 milhões no Brasil), por razões óbvias: a superlotação dificulta o distanciamento social, condições sanitárias desastrosas que causam grande dificuldade em lavar frequentemente as mãos e, acima de tudo, informalidade e pobreza combinadas significam que o direito a recolher-se é uma abstração, que a escolha é de fato entre trabalhar ou morrer de fome.

Você é muito pessimista.

Quando os governos subestimam o perigo e não têm políticas de prevenção, como o distanciamento social, de interdição como a quarentena, não decidem pagar aos mais pobres uma renda mínima ou o fazem de forma insuficiente; quando os presidentes se opõem aos seus ministros e imploram pela manutenção do nível de atividade económica, troçando de quem sobrestima a crise da saúde quando o verdadeiro desastre seria a crise económica; quando as seitas religiosas, cada vez mais influentes, dizem que pela oração coletiva podemos repelir Satanás, cavalo de Tróia da pandemia... então só podemos ser pessimistas. Todos são atingidos, mas de maneira desigual. A dupla penalização para os pobres é tanto a pandemia como a crise económica, ainda mais porque é enxertada num tecido económico muito mau. É uma crise que exige uma renovação completa da maneira de pensar económica e politicamente. Infelizmente, pode resultar na ascensão do irracional, na busca de bodes expiatórios, em formas extremas de populismo. Mas também podem ter resultados mais positivos. Também podemos esperar que o pessimismo da razão possa ser o otimismo do coração (como Valéry) e da vontade (como Gramsci).

Publicado inicialmente em Libération

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