Cooperação & Agressão: é complicado...

Há uma discussão entre estudiosos da evolução, sobre se os fatores que decidem a adaptação são puramente genéticos ou também culturais; se o gene é puramente egoísta ou se o altruísmo conta, e de que forma, na sobrevivência das espécies ou das sociedades humanas. O Evolution Institute é um think tank fundado pelo biológo evolucionário David Sloan Wilson para defender as perspetivas que valorizam o altruísmo em evolução. O artigo Cooperação através da seleção de grupos culturais vem do Evolution Institute

Os seres humanos dão-se bem em escalas surpreendentes, mas não é preciso um historiador de renome para se dar conta de um ethos recorrente: ajudar os amigos e prejudicar os inimigos. Pode tratar-se de senso comum, mas mantêm-se questões sérias sobre porque é que esta atitude existe e como funciona. Pode uma teoria abrangente da cooperação humana ser verificada cientificamente?

Um novo estudo das antropólogas Carla Handley e Sara Mathews, publicado na Nature Communications, põe essa intuição milenar à prova. Examinando o complexo relacionamento das tribos pastoris no norte do Quénia, elas apresentam evidências empíricas de que, sob a pressão da competição entre grupos, a solidariedade étnica é o resultado direto da seleção de grupos culturais. Argumentam que os efeitos das forças culturais são muito maiores que a predisposição genética ou a proximidade geográfica, na promoção da cooperação com os não familiares. Ambas as pesquisadoras fizeram um extenso trabalho de campo na região, e a sua rica experiência pessoal sustenta uma rigorosa análise quantitativa.

Homem Turkana e crianças em vestes tradicionais.
O artigo original usava, erradamente, uma foto dos Masai. Usei fotos dos povos mencionados da Wikipédia (Turkana), do Jetset Bunny (Samburu e Rendille) e de Seya Tours (Borana)

As tribos do norte do Quénia

Há milénios, rudes comunidades pastoris lutam pela sobrevivência na árida paisagem queniana, combatendo secas e doenças e, mais significativamente, entre si. Os poços de água e os territórios de pastagem são severamente limitados. Sortidas brutais para roubo de gado são uma característica da vida cotidiana.

A experiência de Handley e Mathews concentra-se em quatro grupos etnolinguísticos da região: Turkana, Samburu, Borana e Rendille. Foram entrevistados 793 indivíduos de nove clãs diferentes dentro desses grupos mais amplos, para identificar os contornos das suas diferenças culturais. Uma pesquisa inicial identificou variações nas normas relativas ao roubo de gado, marcadores culturais, cooperação, dinâmica familiar e crime e castigo. Destas, as maiores diferenças estavam relacionadas com sortidas e marcadores culturais — especialmente códigos de conduta relacionados com o roubo de gado.

Dança Samburu num casamento

A pesquisa inicial era composta por 49 declarações normativas. Perguntou-se aos sujeitos se concordavam ou discordavam de itens culturalmente significativos, como:

  • É permitido sequestrar mulheres ou filhos do inimigo durante uma sortida.
  • Um grupo de ataque não deve partir se não tiver recebido bênçãos dos anciãos ou de um adivinho.
  • Somente homens solteiros devem fazer sortidas.
  • Durante uma sortida, se a luta for difícil, pode-se deixar um homem ferido para ser morto pelo inimigo.
  • É bom para um guerreiro gabar-se das sortidas que fez na sua canção do touro.

Para os pastores quenianos, a questão ética não é se deve fazer sortidas, mas como. Cada um dos quatro grupos estudados varia bastante nessas normas. A única consistência diz respeito a sortidas ao próprio grupo.

Mulher do povo Rendille

Por exemplo, os Turkana são bastante hábeis a roubar gado a pastores apanhados de surpresa. Como em grande parte do mundo pré-moderno, esse comportamento não é considerado "roubo", é simplesmente um modo de vida. A coragem é de primordial importância, e os jovens que recuam na batalha são envergonhados e espancados pelos seus pares. Na secção territorial noroeste dos Turkana, Handley e Mathews informam-nos que 50% da mortalidade masculina adulta é resultante de sortidas ao gado. A competição pela sobrevivência é feroz. Mas os Turkana não são desprovidos de piedade. Por uma questão de princípio, poupam o confrades Turkana.

Para elucidar as atitudes implícitas de cada grupo em relação à solidariedade étnica, foram apresentados aos sujeitos do estudo 16 cenários nos quais eles decidiriam como responder a vários dilemas éticos. Uma narrativa envolve a descoberta de boas pastagens, seguida de um encontro com outro pastor de gado de um grupo étnico específico. Deixam-no entrar na pastagem boa ou não? Noutros cenários, os indivíduos foram convidados a imaginar uma oportunidade de roubar uma cabra desprotegida ou que encontraram um clã vizinho sob ataque. Em cada caso, a etnia do alvo é sublinhada. Ajudamos? Prejudicamos?

Se o alvo do cenário fosse do mesmo clã, a cooperação era basicamente um dado adquirido. No entanto, quanto maior a diferença cultural, maior a probabilidade do entrevistado negar ajuda ou prejudicar ativamente. Embora cada grupo exiba variações interessantes, as taxas de cooperação para alvos de um grupo etnolinguístico diferente oscilavam entre 0,4 e 0,6, enquanto as taxas de cooperação para os do mesmo grupo estavam bem acima de 0,8.

Os resultados sugerem que, num ambiente de constante competição entre grupos, a cooperação local emergirá. Quando os vizinhos são propensos a ataques não provocados, é aconselhável reservar o leite da bondade humana para nós. Mas não devemos encolher os ombros por já sabermos disso. As implicações teóricas do estudo são significativas.

Teste para seleção de grupo cultural

Handley e Mathews estão entre as primeiras a testar sistematicamente a teoria da seleção de grupos culturais em relação a dados quantitativos. Nas suas formulações mais importantes, essa teoria afirma que a seleção natural pode favorecer ou eliminar a cultura compartilhada de um grupo humano. O processo é semelhante às pressões ambientais sobre variações biológicas, como o veneno de uma aranha ou a camuflagem de um leopardo. Num dado ambiente, algumas normas culturais sair-se-ão melhor que outras.

Podemos argumentar que, em condições sociais hostis, comportamentos como o puro egoísmo ou a bondade indiscriminada tenderão a desaparecer. O solitário será subjugado pelo maior número. Os que tudo dão ficarão sem tudo. Uma estratégia de sucesso deve estar algures no meio.

Podemos ter a certeza de que a lealdade ao grupo etnolinguístico é o resultado da semelhança cultural e não da perceção de uma relação genética? Não inteiramente, e alguma interação biocultural é bastante provável. Mas há razões para acreditar que a identidade cultural é o principal objeto de afinidade ou aversão, em vez da linhagem. No caso do norte do Quénia, o índice de fixação genética é muito menor que a diferenciação cultural. Fora da família imediata, não há diferença suficiente para se perceber. Qualquer sentido de parentesco tribal é amplamente fictício. Numa população ampla com um alto grau de relacionamento genético, o clã só pode ser reconhecido por marcadores culturais e normas idiossincráticas.

Handley e Mathews também descartam a proximidade geográfica como um componente crítico do viés dos quenianos a favor do grupo restrito. De facto, as suas descobertas sugerem que a afiliação etnolinguística transcende a distância física, apesar dos seus entrevistados mostrarem uma tendência maior a cooperar com os vizinhos geográficos. Em geral, os efeitos da diferenciação cultural são muito mais significativos.

De acordo com o modelo causal das autoras, a distância geográfica leva a variações culturais ao longo do tempo. Dado um ambiente de agressão entre grupos, universal nas sociedades pré-modernas, a seleção de grupos culturais tenderá a favorecer um ethos guerreiro que mostre preferência pela co-etnicidade.

Além de isolar a cultura como a força de ligação que sustenta a cooperação com os não familiares, Handley e Mathews também argumentam que o grupo etnolinguístico é uma unidade particularmente estável da organização social. No cenário pastoril queniano, essa lealdade étnica parece ser um centro de gravidade muito mais forte do que o clã ou o estado-nação. Eu acrescentaria que essa tendência não se limita à cultura africana. Enquanto observamos a União Europeia e outras alianças pan-culturais fraturadas ao longo de linhas etnolinguísticas, pode-se suspeitar que a cooperação humana tende a estabilizar-se nessa escala social.

Realidades complicadas no terreno

O comprometimento estrito com o grupo etnolinguístico dificilmente é um modo cultural homogéneo. Handley e Mathews têm o cuidado de observar os contornos subtis da resposta de cada grupo, independentemente do grupo étnico. Por exemplo, os Borana são muito mais propensos a cooperar com os outros, independentemente da etnia. Dada a influência generalizada do Islão entre os Borana, pode ser que uma religião universalizante subverta até certo ponto as barreiras paroquiais que naturalmente surgem em ambientes competitivos.

Outra descoberta interessante é que os militarmente fracos Rendille tendem a cooperar com os Samburu mais dominantes — mesmo acima de outros clãs Rendille. Nesse caso, parece que a submissão a um poder político maior também pode subverter a lealdade tribal, pelo menos enquanto a desigualdade persistir.

Em relação à gentileza pessoal, muitos sujeitos reagiram com compaixão a um dos cenários hipotéticos do estudo. Nele, o sujeito encontra um homem ferido de uma tribo rival que precisa de ser transportado para o hospital. A resposta esmagadora dos quatro grupos foi ser o bom samaritano e ajudá-lo.

Mulheres do povo Borana

Ainda assim, as exceções não refutam a regra. O estudo de Handley e Mathews é consistente com uma experiência recente realizada com trabalhadores nos EUA, Alemanha e França. Em cada caso, as equipas de empresas que enfrentavam intensa concorrência de empresas rivais eram muito mais propensas a deixar de lado os seus egos e demonstrar solidariedade de grupo contra os outros. Felizmente, mais pesquisas serão conduzidas nessa direção. Evidências quantitativas de maior individualismo e simpatia por grupos externos em sociedades não competitivas serão um ponto crítico de comparação.

Se ambientes competitivos tendem a produzir cooperação paroquial por meio da seleção de grupos culturais — e se esse é um princípio emergente na natureza humana —, as implicações são enormes. Por um lado, destaca-se a potencial flexibilidade da aliança humana. Instituições culturais eficazes podem superar o fascínio perene do sangue e do solo. Por outro lado, esse modelo teórico revela as origens sombrias dos vínculos sociais em larga escala. Se a cooperação humana é uma resposta evolutiva bem-sucedida aos conflitos entre parentes fictícios, um aspirante a construtor de equipa provavelmente deve deixar a paz e o amor de lado e enfatizar os laços que resistiram ao teste do tempo.

Para mais, ler “Human large-scale cooperation as a product of competition between cultural groups” in Nature Communications.

Publicado: 25 maio, 2020


Joe Allen
"Joe Allen é um colega primata que se pergunta porque descemos das árvores. Formou-se no programa "Religião e Ciência" da Universidade de Boston, sujou as mãos como agrimensor, lavrador comunal, professor universitário e, há quinze anos, escalou o aço como gerente de um parque de diversões. Os seus escritos aparecem em várias saídas, da esquerda à direita, porque prefere a liberdade à segurança."

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