Trump e a atenção seletiva


Escolhi traduzir este artigo no sire S-USIH, Society for US International History, The History of Donald Trump: From Master of Selective Attention to Warrior Leader, de Paul J. Croce, pelo tratamento do fenómeno da atenção seletiva, extremamente importante neste momento de multidões irracionais e de manipulação de massas. É curiosa esta aproximação aos problemas concretos, que me recorda a do 'radical' Bernie Sanders, que se recusa a descartar os apoiantes de Trump, propondo focar o discurso em assuntos que podem interessá-los enquanto porte do povo, como o emprego e o acesso à saúde.


A história de Donald Trump:

de mestre da atenção seletiva a líder guerreiro

E se dessem uma guerra e ninguém aparecesse?
Charlotte Keyes (1966), adaptando um poema de Carl Sandburg (1936)

Quando vi o ex-presidente Donald Trump a criticar a grande imprensa ou a desafiar os resultados eleitorais, pensei em William James (1842-1910). Eles formam um par estranho, mas o político famoso tem feito um uso magistral da atenção seletiva, esse guarda-portão1 mental que o professor e fundador da psicologia americana retratou como central na mente humana.

Trump capturou a atenção dos americanos, primeiro em negócios imobiliários ousados e como estrela de TV, depois com falsas acusações de que o presidente Obama não nasceu nos Estados Unidos. Isto antevê o estilo da sua campanha em 2016, com comentários atrevidos que se tornaram em cantos insidiosos, como “Construir o muro!”

Trump fez uso seletivo dos insights de James sobre o poder dos sentimentos, mesmo no pensamento racional, para mobilizar emoções para a formação de compromissos ideológicos.

James retratou como a atenção mental molda as escolhas de pontos de partida mentais, com as tradições, interesses ou gostos de cada pessoa a motivar o compromisso contínuo. Como um guarda-portão2 da seleção, a atenção classifica as experiências abundantes, amplificando algumas e deixando outras de lado. Uma criança a brincar, por exemplo, pode atrair a nossa atenção, enquanto as preocupações com o trabalho desaparecem temporariamente.

No nosso tempo, uma variedade de media amplia vividamente a observação de James de que o "muito intenso, volumoso ou súbito" pode capturar prontamente a nossa atenção e afastar outras experiências - ou levar-nos a ignorar factos e interpretações que sustentam pontos de vista contrastantes.

Vivemos com amplificações sociais e tecnológicas desse amplificador mental, a atenção. E Trump é especialista em orquestrar os amplificadores. Na verdade, a sua liderança era adequada à guerra, com estilo pronto para reunir as tropas, usando o que o falecido psicólogo Lawrence Leshan chamou "modo mítico de pensamento" para focar a atenção no inimigo e aumentar as expectativas de que a luta trará transformações gloriosas.

Embora James não tenha antecipado nem se tenha envolvido no tipo de captação de atenção de Trump, o 45º presidente dos EUA exibiu as erosões relativistas dos padrões públicos que os conservadores tradicionais temiam, sobre o tipo de crítica modernista de James à verdade absoluta. Com seu questionar de factos amplamente aceites e desafios às normas, Trump usou prontamente o pensamento liberal modernista, anti-absolutista, sobre a relatividade da verdade, para com fins conservadores.

Apesar dos seus gritos de guerra, as táticas de Trump nunca persuadiram as maiorias. Ele adotou um método refinado por Karl Rove, o conselheiro do governador do Texas e depois presidente George W. Bush. Ao contrário da maioria dos estrategos políticos anteriores, que apontavam ao centro político para ganhar maiorias, Rove procurou 50% + 1 dos votos. Por outras palavras, apelar intensamente àqueles que já estão do seu lado (os “50%” que o apoiam) e retratar o outro lado o pior possível. A vitória vem com o mínimo necessário “+1”, e na eleição de 2000, Bush ganhou a presidência com um número quase tão baixo como isso na contagem da Florida.

Ampliando a abordagem de Rove, Trump reuniu ferozmente os seus partidários, mesmo quando esse apelo afastava de imediato a maioria dos eleitores. Mas, em geral, manteve-se competitivo, porque a intensidade dos seus entusiastas transformou as suas campanhas em movimentos que apelaram a eleitores anteriormente alienados da política, e porque o Colégio Eleitoral permitiu que pequenas maiorias nalguns estados tornassem a vitória possível, apesar do seu apelo geral minoritário.

Com alegações de fraude generalizada na eleição de 2020, Trump confiou na intensidade da sua minoria leal para contestações judiciais, tentativas de persuasão pública e até mesmo para apoiar o ataque militante ao Congresso. Como uma criança que, perto de bater, brinca “Eu não estou a tocar; não podes zangar-te!", ele alegou não ser responsável pelo ataque de 6 de janeiro. No entanto, no seu discurso "Salvem a América" a incitar à multidão entusiástica pouco antes do ataque, referiu-se a "lutar" mais de vinte vezes. E o padrão legal para o incitamento não é a participação direta na insurreição, mas “ajuda e conforto”, nas palavras da 14ª Emenda da Constituição dos EUA, Secção 3, no apoio a esses agentes ativos.

Mesmo sem maioria, o desafio furioso de Trump a factos amplamente aceites pode garantir-lhe um lugar nos debates políticos em curso. Pode afirmar que está a revoltar-se contra o poder da corrente dominante e da elite, enquanto, ironicamente beneficia dos media dominantes, se eles continuarem a prestar atenção às suas afirmações ousadas, porque resultam em boas histórias. Isto foi fundamental para os seus movimentos drásticos improváveis para manter o seu cargo, e poderia garantir o seu estatuto como Celebridade Política Sem Cargo. Na sua posição pós-presidencial, poderia embarcar na oposição violenta ao novo presidente, Joe Biden. O poder de persuasão presidencial poderia continuar com este ex-presidente.

Os americanos enfrentam uma escolha: será a política um teatro de guerra? O caminho da hostilidade inclui atenção seletiva ao pior aspeto dos oponentes, em vez de governar para congregar o melhor de toda a gente. Trump travou uma guerra cultural, elogiando as boas qualidades e ambições só dos apoiantes e denegrindo aqueles a quem se opõe – e alguns no seu movimento interpretaram a sua linguagem provocatória literalmente, apelando ao "julgamento por combate", como o advogado de Trump, Rudolph Giuliani, explicitamente defendeu mesmo antes da própria tentativa violenta de impedir a transferência pacífica do poder.

Quem foi William James

William James é considerado o pai da psicologia nos EUA. O seu contributo está ligado a uma versão menos especulativa da psicologia, mais ligada à experimentação.

Célebre é o exemplo do urso:

Fugimos de um urso porque temos medo ou temos medo porque corremos? Propôs que a resposta óbvia, que corremos porque temos medo, estava errada e, em vez disso, argumentou que estamos com medo porque corremos:

"A nossa maneira natural de pensar sobre... emoções é que a perceção mental de algum facto excita a afeição mental chamada emoção, e que este último estado de espírito dá origem à expressão corporal. A minha teoria, ao contrário, é que as mudanças corporais seguem diretamente a percepção do fato emocionante, e que a nossa sensação das mesmas mudanças à medida que ocorrem é que é a emoção."

António Damásio recuperou a visão de James. Propôs que as emoções são parte da regulação homeostática e estão enraizadas em mecanismos de recompensa/punição. Recuperou a perspetiva de William James sobre os sentimentos como uma leitura dos estados do corpo, mas expandiu-a com um dispositivo "como o corpo", que permite que o substrato dos sentimentos seja simulado em vez de real (prenunciando o processo de simulação mais tarde descoberto nos neurónios-espelho). Demonstrou experimentalmente que o córtex insular é uma plataforma crítica para sentimentos, uma descoberta que foi amplamente replicada, e descobriu locais de indução cortical e subcortical para emoções humanas, por ex. no córtex pré-frontal ventromedial e amígdala. Damásio também demonstrou que, embora o córtex insular desempenhe um papel importante nos sentimentos, não é necessário que os sentimentos ocorram, sugerindo que as estruturas do tronco cerebral desempenham um papel básico no processo de sentimento.

William James também é importante em filosofia, sendo um dos proponentes do empirismo radical.

É claro que cada um dos inimigos visados por Trump mostra problemas: alguns muçulmanos são extremistas, voltando-se para o terrorismo; alguns mexicanos envolvem se no narcotráfico e no crime; e muitas políticas comerciais chinesas têm sido injustas. Apoiando-se na política como guerra, Trump não só esquece os problemas entre alguns de seus apoiantes, incluindo o terrorismo doméstico, mas também seleciona os piores problemas nos seus inimigos declarados e rejeita os seus potenciais fatores positivos encorajadores.

Procurar potenciais benefícios é o que James quis dizer com meliorismo, ou seja, procurar pontos a aperfeiçoar, que sirvam como pontos de apoio para melhoramento. Isso significa uma prontidão em ouvir atentamente todos os cidadãos, até mesmo as esperanças e temores daquelas pessoas que os adversários ideológicos tão prontamente categorizam em Nós e Eles. Promover as melhores possibilidades, mesmo que fugidias — na verdade, especialmente se fugidias, porque é então que esses esforços são mais necessários. O mundo é um pluralismo de bons e maus traços, apontou James; a liderança “consiste principalmente num esforço para resgatar” experiências de qualquer potencial errático.

Apesar dessas possibilidades, os americanos podem escolher a guerra política. Para quem se sente ameaçado, parece vital. Mas, como quando se come uma sobremesa em vez de uma refeição robusta, pode-se ficar com uma pedrada de açúcar. Os benefícios do confronto duram geralmente pouco, para obter segurança imediata diante do perigo ou para enfrentar um comportamento terrível.

Usar a atenção seletiva para buscar melhores qualidades, mesmo entre supostos inimigos, pode plantar sementes para soluções de longo prazo. A seleção para prevenção pode direcionar energias para a resolução construtiva de problemas. Em contraste, a guerra estilizada da política recente permitiu chafurdar nas emoções breves do combate. Para aqueles que foram animados pelo espírito guerreiro de Trump – ou chamados a declarar-lhe guerra – até mesmo esses sentimentos podem ser convocados para, em vez disso, resolver problemas.

A energia e os recursos despendidos em hostilidades mostram o poder político disponível para enfrentar a hemorragia de questões sociais e morais que assolam a nação. Com mais atenção pública a questões tangíveis, e se Trump continuasse a declarar guerra cultural e ninguém aparecesse?

Parece improvável? A rejeição de tais esforços para se desviar das hostilidades incentiva tacitamente mais guerra cultural. No entanto, um futuro melhorado pode começar, parafraseando o Isaías do Antigo Testamento, com qualquer espada de hostilidade convertida num arado para resolver um problema particular.

Em vez de tanta aflição com a indefinição dos ideais e do sangue a ferver com os males do outro lado, comecemos a trabalhar para tornar os ideais um pouco mais reais. Isso seria um uso mais magistral da nossa tendência de prestar atenção seletivamente.


Paul J. Croce é professor de História e diretor de Estudos Americanos na Stetson University, Florida, autor de “Young William James Thinking” (Johns Hopkins University Press, 2018) e presidente até há pouco da William James Society. Escreve para o Public Classroom e os seus ensaios recentes foram publicados em Civil American, History News Network, Huffington Post, Origins, Public Seminar e Washington Post.


1, 2 Guarda-portão é a tradução de gatekeeper, um conceito importante em teoria da comunicação e sociologia. Inicialmente referia-se a quem garantia que uma organização noticiosa mencionaria só os eventos que interessam à elite. Os outros, de eventual interesse para os marginalizados, seriam excluídos pelos gatekeepers. Mais tarde o conceito foi alargado para todos os indivíduos ou instituições que vigiam o acesso a bens e serviços reservados a uma elite. Neste caso particular, a atenção seletiva funciona como guarda-portão, porteiro, gatekeeper, ao assegurar que certos factos tenham acesso à consciência e que outros não. [VOLTAR À NOTA 1] [VOLTAR À NOTA 2]

 

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